A compreensão de militar da reserva no inciso III do art. 9º do CPM

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19 de fevereiro7 min. de leitura

Como se sabe, o militar da reserva pode cometer crime militar, de acordo com o inciso III do art. 9º do CPM.

Mas qual a abrangência dessa premissa? Estariam compreendidos aqui os militares da reserva não remunerada?

Vamos construir a resposta partindo da distinção das espécies de militares da reserva.

A condição de militar da reserva possui duas possibilidades: reserva remunerada e reserva não remunerada.

Militar da reserva remunerada é aquele que, deixando o serviço ativo, não o faz de forma definitiva, podendo haver sua reversão (designação), convocação ou mobilização. Exemplificativamente, ingressa na reserva remunerada o oficial que completar seu tempo de serviço e pedir sua inativação ou o militar que, na ativa, e após ser agregado para concorrer a cargo eletivo, possuindo mais de dez anos de serviço (art. 14 da CF), seja diplomado em cargo eletivo (art. 52, b, do Estatuto dos Militares), percebendo, neste último caso, remuneração proporcional ao seu tempo na instituição militar de forma cumulativa à remuneração de parlamentar, possibilidade verificada no
§ 11 do art. 40 da CF.

A reserva não remunerada consiste na inativação do militar por ato que corte seu vínculo com a instituição, não podendo haver sua reversão (designação) ao serviço ativo. É o que ocorre com o militar que tome posse em cargo público de natureza civil e de provimento definitivo (ex.: no âmbito das Forças Armadas, vide art. 117 do Estatuto dos Militares) ou aquele que peça exoneração (ex: art. 39, I e II e § 2º do Decreto-lei n. 260/1970, no Estado de São Paulo).

Prosseguindo na distinção, mais uma vez sob a disciplina para as Forças Armadas, a letra b do inciso I do art. 4º do Estatuto dos Militares traz uma condição individual de reserva, obviamente não remunerada, para todos os cidadãos em condições de convocação ou de mobilização – que não se trata de reversão ou de designação – para a ativa. Assim, podemos dizer que a reserva não remunerada para as Forças Armadas possui uma abrangência maior, e, por razões óbvias, atingindo o cidadão comum. Mais ainda, essa reserva não remunerada é convocável e mobilizável.

Acrescente-se, por fim, nessa construção inicial, a figura do reformado, que é aquele que, deixando o serviço ativo, não mais poderá ser revertido (designado) regularmente a este. Como parâmetro, além do já citado Estatuto dos Militares, tome-se o art. 27 do Decreto-Lei n. 260, de 29 de maio de 1970, do Estado de São Paulo, que dispõe que reforma “é a situação de inatividade do militar definitivamente desligado do serviço ativo, com a manutenção do vínculo estatutário com a Polícia Militar do Estado de São Paulo”, prossegue a norma estatutária paulista dispondo que a “reforma será processada apenas ‘ex officio’”. Podemos citar como exemplo de reformado, o oficial da ativa que sofre um acidente que o torne incapaz definitivamente para o serviço militar.

Feita a distinção, pode-se afirmar que os reformados podem figurar como sujeito ativo, nos termos do inciso III, mas essa compreensão não é tão tranquila em relação ao militar da reserva.

Como se denota da leitura do inciso III, a lei penal militar não faz distinção entre reserva remunerada e não remunerada (“os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos”), donde surge a indagação se ambos poderiam ser sujeito ativo, na condição de militar, nos termos do mencionado inciso.

Em resposta, entende-se inadequada a aplicação do inciso III aos militares da reserva não remunerada, na condição de “militar”, mas devendo ser enquadrados, ainda que no mesmo inciso, na condição de “civil”.

Parece um tanto quanto exagerado prender em flagrante, por desacato a superior (art. 298 do CPM), por exemplo, um militar que pediu exoneração dos quadros de uma instituição militar, considerando-o como militar inativo para fins penais militares. Mais bizarra ainda a situação se for considerado que o sujeito ativo tenha tomado posse em outro cargo público, como o de Promotor de Justiça. Ora, se o Direito Penal Militar busca manter a regularidade das instituições militares como um de seus principais focos – especialmente no inciso III do art. 9º do CPM, quando exige a agressão contra as instituições militares –, deve restringir-se aos casos em que, potencialmente, essa regularidade possa ser afrontada. Aquele que não possui sequer vínculo pecuniário com a instituição está inócuo, sem possibilidade de lesar, por exemplo, a disciplina dos quartéis; mesmo que tente fazê-lo, o Código Penal comum possui instrumentos para a sua responsabilização (v. g., o crime de desacato – art. 331 do CP). Poderá, eventualmente, responder por delito militar, sendo, porém, visto como civil. Nessa construção há de se acrescentar que o militar da reserva não remunerada nem sequer está sujeito à disciplina militar, por força do Regulamento Disciplinar, sendo uma incongruência impor-lhe a intervenção penal, mais gravosa, na condição específica de militar inativo.

Como último argumento, se considerarmos o militar da reserva não remunerada enquadrado na palavra “reserva”, para figurar como sujeito ativo do delito, estaremos enquadrando nessa condição todos os cidadãos em condições de serem convocados ou mobilizados, pois, nos termos do art. 4º do Estatuto dos Militares, como vimos, estes integram a reserva individual das Forças Armadas.

A chancelar nosso entendimento, o Superior Tribunal Militar no Habeas Corpus n. 2009.01.034680-5/DF, julgado em 20 de agosto de 2009, sob relatoria do Ministro Sergio Ernesto Alves Conforto:

HABEAS CORPUS: I – Conforme a lei e a doutrina, o Oficial da Reserva da 2ª Classe das Forças Armadas não é militar, sendo considerado civil, quando não prestando serviço militar. II – Conselho Especial de Justiça para a Marinha sorteado para julgar Oficial da Reserva de 2ª Classe da Marinha, que é considerado civil. III – Declarado nulo o Processo desde o sorteio do Conselho Especial de Justiça para a Marinha, determinando-se a remessa dos autos a um Conselho Permanente de Justiça para o Exército para nova apreciação do Feito, dado que há outros denunciados que são praças do Exército. IV – Habeas Corpus conhecido por unanimidade de votos e, por maioria, de ofício, declarado nulo o Feito.

O caso em foco discutiu a questão acerca de a qual Conselho de Justiça o militar da reserva não remunerada, no caso um Oficial da Reserva de 2ª Classe, é submetido na Justiça Militar da União: se Especial, ao qual seria submetido se considerado militar com a manutenção de seu posto para fins processuais penais militares; ou permanente, se, do contrário, fosse considerado civil, devendo-se observar que na Justiça Militar da União, na época da decisão, os civis eram processados e julgados perante Conselho de Justiça Permanente, o que foi alterado pela Lei n. 13.774/2018, que definiu a competência do Juiz Federal da Justiça Militar.

Embora o julgado tenha versado sobre uma questão eminentemente  processual penal militar, seu conteúdo empresta sentido ao Direito substantivo castrense, respaldando nossa conclusão de que militar da reserva não remunerada, para fins penais militares, é civil, embora possa haver normas outras que confiram a ele status aproximado ao de militar, como regulamentos de honras e continências, normas de cerimonial etc.

No plano doutrinário, a confirmar nossa posição, tome-se Eliezer Pereira Martins, que com muita precisão demonstra que aqueles considerados militares estão enumerados no art. 3º do Estatuto dos Militares (Lei n. 6.880/80), firmando que a reserva não remunerada não é condição de inatividade, já que esse status pertence privativamente aos oficiais da reserva remunerada ou reformados, sendo o posto nessa circunstância (reserva não remunerada) apenas uma condição honorífica[1].

Com efeito, o § 1º do art. 3º do Estatuto dos Militares, norma que pode referenciar o raciocínio, dispõe que os militares se encontram na ativa ou na inatividade. No primeiro grupo – necessário repetir, insistentemente, para fixar –, estão os militares de carreira, os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos, os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados, os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva, e, em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas. No grupo dos militares inativos, estão os militares da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização, os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União e os da reserva remunerada e, excepcionalmente, os reformados, que estejam executando tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada.

Percebe-se, claramente, que o militar da reserva não remunerada não está enumerado entre aqueles considerados militares.

Mas, como sói acontecer no estudo do Direito, o precedente acima não é reinante de maneira absoluta, aliás, parece se firmar posição oposta no próprio Superior Tribunal Militar, como se observa na seguinte decisão:

MANDADO DE SEGURANÇA. IMPETRAÇÃO DEFENSIVA. NÃO CONHECIMENTO DO ‘WRIT’. ARGUIÇÃO DA PGJM. PRELIMINAR REJEITADA. REAFORAMENTO DE PROCESSO. INADEQUAÇÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA. LEI Nº 13.774/2018. INTERPRETAÇÃO PECULIAR DA JUÍZA FEDERAL DA JUSTIÇA MILITAR. INEXISTÊNCIA DE CIVIL ‘PURO’ ENTRE OS ACUSADOS DE PRÁTICA DE CRIME DE NATUREZA MILITAR. OFICIAL DA RESERVA NÃO REMUNERADA NO MOMENTO DA PRÁTICA DO SUPOSTO DELITO. RELEVÂNCIA DE SUA CONDIÇÃO PESSOAL. MANUTENÇÃO DOS PARÂMETROS OUTRORA APRECIADOS PELO TRIBUNAL CONSUBSTANCIADORES DO DESAFORAMENTO. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. OBSERVÂNCIA. COMPETÊNCIA DO CONSELHO ESPECIAL DE JUSTIÇA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. ANULAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL DE REAFORAMENTO. DECISÃO UNÂNIME. 1. As situações configuradoras da ato tumultuário, as quais têm o condão de desafiar o manejo de Correição Parcial, podem, em caráter excepcional, diante de flagrante teratologia/ilegalidade, justificar a impetração de ‘mandamus’, notadamente no contexto de medida urgente de salvaguarda de direitos do impetrante correlacionados aos princípios constitucionais do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa. Rejeição da preliminar de não conhecimento do ‘writ’, suscitada pela PGJM. Decisão unânime. 2. A doutrina pátria desaprova a adoção do instituto jurídico do reaforamento de Processo, sobretudo por lhe faltar suporte legal. Nessa perspectiva, também reputa-se inconsistente o embasamento calcado na suposta insubsistência dos motivos ensejadores do desaforamento anterior. 3. O superveniente surgimento de circunstâncias idôneas, amparadas em lei, tem o condão de legitimar a consecução de um novo desaforamento. No entanto, exigível a observância do rigor procedimental, o qual prevê, dentre outros aspectos, a apreciação da matéria pelo Tribunal competente. 4. A alteração trazida à Lei nº 8.457/92 – LOJM (Lei de Organização Judiciária Militar) – pela Lei nº 13.774/2018 – não autoriza, em caráter monocrático, o processo e o julgamento pelo Juiz Federal da Justiça Militar de agente a quem é imputada a prática de crime militar quando, à época dos fatos, já ostentava a condição de Oficial da Reserva não remunerada. As circunstâncias, de caráter pessoal, distinguem-no do civil ‘puro’. O Oficial da Reserva das Forças Armadas (remunerada ou não) mantém, em igual patamar àquele do serviço ativo, no que concerne aos parâmetros definidores de competência em sede processual militar, via de regra, as prerrogativas e as obrigações inerentes ao Oficialato, sendo detentor de Carta Patente. A jurisdição do Conselho Especial de Justiça, na JMU, consolida o Princípio do Juiz Natural, na hipótese. Compete ao Juiz Presidente e aos pares (Oficiais de posto mais elevado ao do acusado), assumida a função de Juiz Militar, a apreciação de fatos que, em tese, profanaram os valores, a ética, a austeridade e o decoro exigíveis do Oficialato. A preservação dos cânones cultuados na caserna se interliga à base principiológica do Escabinato e perfaz a essência da JMU. Inteligência que deflui dos arts. 23 e 27, inciso I, ambos da LOJM. 5. Concessão da segurança. Decisão unânime (STM, MS n. 7000594-38.2019.7.00.0000, rel. Min. Marco Antônio de Farias, j. 22/10/2019) (g.n.).

Note-se neste julgado que, primeiro, discute-se, igualmente ao anterior, questão processual e não de direito material, como interessa ao estudo do inciso III, e, segundo, o autor era oficial da reserva não remunerada ao tempo da ação e, mesmo assim, o STM entendeu não ser o caso de ser ele processado perante o juízo monocrático, ou seja, como civil.

Com o devido respeito, sustenta-se posição oposta. Militar da reserva não remunerada deve ser considerado civil, como no precedente da Corte de 2009, acima transcrito, isso tanto para a configuração do crime militar, como para os fins processuais. Aderindo à outra linha, deveremos passar a considerar, por exemplo, crime contra superior (art. 157, art. 160, art. 298 do CPM, por exemplo) todas as condutas praticadas pelos reservistas não remunerados, seja aquele que obteve a reserva após o serviço militar obrigatório, seja o que desempenha novo cargo por aprovação em concurso público e posse (v.g., promotor de Justiça, juiz federal etc.), o que não comporta, repita-se, razoabilidade.

[1] MARTINS, Eliezer Pereira. Da impossibilidade jurídica de instauração de Conselho de Justificação para apurar conduta de oficial da reserva não remunerada. Revista Direito Militar, n. 32, p. 6-10, nov./dez. 2001.

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