A mulher, militar da ativa, que constrange homem, também militar da ativa, mediante grave ameaça ou violência à prática de conjunção carnal, deve responder por qual crime militar?

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Antes de ingressarmos no estudo da questão, alguns comentários devem ser feitos a respeito da influência da Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, nos crimes militares.

Referida Lei, como sabido, alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal comum, que dispunha sobre os crimes contra os costumes, trazendo ao universo jurídico uma nova classificação: os crimes contra a dignidade sexual.

As mudanças foram várias, mas, em especial, houve a revogação de alguns crimes e, principalmente, a unificação da descrição típica do atentado violento ao pudor e do estupro, ambos hoje disciplinados no art. 213 do CP, sob a rubrica única de estupro:

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

A Lei, no entanto, nada mencionou acerca dos crimes militares, de sorte que a nova ordem ficou adstrita apenas aos crimes comuns. Assim, enquanto no Código Penal não há mais a destacada figura do atentado violento ao pudor, hoje descrito junto com o estupro, no Código Penal Militar ainda há as duas figuras destacadas, em artigos distintos (arts. 232 e 233). Nessa comparação, outros delitos foram também afetados, a exemplo da corrupção de menores (art. 234 do CPM), não mais prevista no Código Penal.

A primeira pergunta que se faz é se a Lei n. 12.015/2009 teria o condão de alterar a compreensão dos crimes militares, o que deverá comportar resposta em sentido negativo, visto que a Lei em foco nem sequer mencionou o Código Penal Militar, não se podendo entender que ela teria revogado a disciplina dos crimes sexuais do CPM (arts. 232 e s.), já que toda revogação deve ser – ou deveria ser – expressa, nos termos do que hoje dispõe o art. 9º da Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998.

Outro questionamento está na combinação desses crimes militares, outrora idênticos aos do Código Penal Militar, com os incisos do art. 9º do CPM, naquilo que se define como tipicidade indireta.

Como se sabe, o art. 9º do CPM possui três incisos. Os incisos I e II referem-se a crimes praticados por militares da ativa, enquanto o inciso III –  adotando-se uma teoria monista sobre a qual já escrevemos neste Blog – condensa as hipóteses em que um civil ou militar inativo (reformado ou da reserva remunerada) figuram como sujeitos ativos do crime militar. É fato que os incisos I e II não mencionam em seu caput o fato de se aplicarem somente a militares da ativa; contudo, sabendo que o inciso III se refere aos inativos e aos civis, o que faz expressamente, por contraposição os dois primeiros incisos só podem referir-se aos militares da ativa.

Dessa forma, deve-se verificar se aos crimes militares de estupro e atentado violento ao pudor, quando o sujeito ativo for militar da ativa, por exemplo, continuaremos aplicando as alíneas do inciso II do art. 9º ou se, pelo fato de não mais haver semelhança com a legislação penal comum, devemos aplicar o inciso I do mesmo artigo.

A nosso ver, como a comparação deve remontar à entrada em vigor do CPM, ou seja, 1º de janeiro de 1970, devemos manter a tipicidade indireta com foco nas alíneas do inciso II do art. 9º do Código Penal Castrense, de maneira que nos mencionados crimes, ao avaliarmos a tipicidade indireta, na comparação das legislações penais, deve ser considerada a redação do CP anterior à edição da Lei n. 12.015/2009.

Um outro aspecto introdutório, diz respeito a compreensão que deve ser dada a crimes contra a dignidade sexual não previstos no CPM, seja pela acima mencionada alteração, ou por outras mudanças, a exemplo do crime de importunação sexual, do art. 215-A do Código penal, trazido pela Lei n. 13.718/2018.

Esses crimes, destaque-se, podem muito bem configurar crimes militares extravagantes, por permissão da nova redação do inciso II do art. 9º do CPM, dada pela Lei n. 13.491/2017, como ocorreu, por exemplo, nos autos da Ação Penal Militar n. 7000046-56.2020.7.03.0303, em curso na 3ª Auditoria da 3ª CJM.

Pois bem, feitas as advertências iniciais, deve-se agora enfrentar a questão: A mulher, militar da ativa, que constrange homem, também militar da ativa, mediante violência ou grave ameaça, à prática de conjunção carnal deve responder por qual crime militar?

Lembremo-nos, de partida, que o crime de estupro no Código Penal Militar está no art. 232, com a seguinte previsão:

Art. 232. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena – reclusão, de três a oito anos, sem prejuízo da correspondente à violência.

Tem-se, portanto, que, embora o modo de violação sexual seja a conjunção carnal – penetração total ou parcial do pênis na vagina – o sujeito passivo apenas pode ser a mulher, de maneira que o tipo penal em destaque não poderá subsumir a conduta trazida pela questão.

Temos, então, que avaliar o crime de atentado violento ao pudor, do art. 233 do CPM:

Art. 233. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a presenciar, a praticar ou permitir que com ele pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena – reclusão, de dois a seis anos, sem prejuízo da correspondente à violência.

A análise aqui é diversa, pois, embora o sujeito ativo possa ser a mulher e o passivo o homem, o meio de violação não pode ser a conjunção carnal, mas deve ser dela diverso, ou seja, a felação a penetração anal etc. Assim, a conduta trazida pela pergunta também não pode ser subsumida pelo crime militar de atentado violento ao pudor.

Também não enxergamos possibilidade de subsunção no crime de ato de libidinagem, do art. 235 do CPM, pois se trata de crime em que os atores não estão constrangidos por ameaça grave ou violência, mas praticam o ato sexual voluntariamente, sem que haja agressão à liberdade sexual, malgrado estar capitulado nos crimes sexuais.

Pois bem, a solução que propúnhamos, antes da lei n. 13.491/2017 era a subsunção no crime militar de constrangimento ilegal (art. 222 do CPM), o que merece revisitação, em face do novo cenário normativo. E o fazíamos com arrimo nas lições de Rogério Greco (2008, p. 906) quando de seus comentários à situação antes da Lei n. 12.015/2009 – hoje, frise-se, a questão é ultrapassada no Direito Penal comum, onde a conduta será subsumida pela nova redação dada ao art. 213 do CP, no crime de estupro:

Como o ato de libidinagem importa na própria conjunção carnal, não se poderá raciocinar em atentado violento ao pudor.

A hipótese de estupro também está descartada, pois que o homem não pode ser sujeito passivo desse delito.

Resta-nos, portanto, o crime de constrangimento ilegal […].

Como bem se sabe, contudo, a Lei n. 13.491/2017 ampliou as possibilidades de ocorrência de crimes militares, alcançando crimes previstos na legislação penal comum, desde que haja a prática em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Nesta nova realidade, é perfeitamente possível subsumir a conduta, constante da questão formulada, no art. 213 do Código Penal comum, combinado com a alínea “a” do inciso II do art. 9º do CPM.

Claro, neste breve avaliação não estamos considerando as vertentes restritivas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que, em decisões reiteradas do primeiro e em algumas do segundo, não reconhecem a suficiência da condição de militar da ativa dos sujeitos ativo e passivo para a caracterização do crime militar.

Mas o raciocínio posto é um bom ponto de partida para a reflexão.

Referências:

GRECO, Rogério. Código Penal comentado. Niterói: Impetus, 2008.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. São Paulo: Saraiva, 2014.

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