As constituições brasileiras, desde a Constituição do Império, preveem limitações ao poder de tributar: disposições destinadas a demarcar as fronteiras da competência para cobrar impostos e regular seu exercício. Nessas limitações, compreendem-se as imunidades, que demarcam negativamente o espaço de competência impositiva, e os princípios, que orientam a forma, o momento e a intensidade de seu exercício.
Não há, contudo, na Constituição de 1988, referência textual a “direitos fundamentais dos contribuintes”. A ausência, no entanto, não impede que o tema ganhe cada vez mais espaço no discurso jurídico contemporâneo, tanto em sede doutrinária quanto nas decisões judiciais. É comum que doutrina e jurisprudência afirmem direitos fundamentais do contribuinte, extraindo das tradicionais limitações constitucionais ao poder de tributar verdadeiros direitos subjetivos em favor do cidadão. O rol desses direitos que compõem o Estatuto do Contribuinte,[1] atualmente, só se amplia e ganha destaque no Direito Tributário brasileiro.
Mas, afinal, que são direitos fundamentais do contribuinte e qual a importância prática deste debate? A tendência de aproximação entre estes dois discursos – o dos direitos fundamentais e o do Direito Tributário – é relativamente recente e parece encontrar sua razão de ser no protagonismo dos direitos humanos no contexto jurídico atual e na maneira como eles, em maior ou menor grau, irradiam seus efeitos por todo o ordenamento jurídico.
No caso do Brasil, é possível que, pelo menos, três razões tenham influenciado essa mudança de atitude: (1) o movimento de “publicização”, de afirmação dos direitos fundamentais e de constitucionalização de todo o Direito e também do Direito Tributário; (2) o intento de renovação e reforço do discurso das limitações ao poder de tributar, em face do crescimento da carga tributária, especialmente a partir da década de 1990; e (3) as variadas mudanças operadas no texto constitucional em matéria tributária, que obrigaram os contribuintes a se utilizarem do único parâmetro admissível para enfrentá-las: a violação a cláusulas pétreas, especialmente as do inciso IV, § 4º, do art. 60 da Constituição (“os direitos e garantias individuais”).[2]
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o leading–case é o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939, na qual se discutia a validade do Imposto sobre Movimentações Financeiras (IPMF), acrescido pela EC n. 3/1993, que oferece um importante exemplo de como os limites ao poder de tributar podem ser tomados como direitos individuais do contribuinte. Esta é a emenda do julgado:
“EMENTA: – Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, “b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, “a”, da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no paragrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III, “b” e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. – o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, “b” da Constituição); 2. – o princípio da imunidade tributaria recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I, e art. 150, VI, “a”, da C.F.); 3. – a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: “b”): templos de qualquer culto; “c”): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e “d”): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em consequência, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, “a”, “b”, “c” e “d” da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.”
O julgamento da ADI 939 merece lugar de destaque no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Dizemos isso por, pelo menos, dois motivos. O primeiro é ter consolidado o entendimento da Corte quanto ao cabimento do controle jurisdicional de constitucionalidade em relação a emendas constitucionais. O segundo é ter estendido às limitações constitucionais ao poder de tributar o manto de imutabilidade, previsto no art. 60, § 4o, IV, da Constituição Federal de 1988.[3]
Vamos entender o caso. Foi proposta uma ação direta de inconstitucionalidade contra a criação do Imposto sobre Movimentações Financeiras (IPMF), previsto na Emenda Constitucional n. 3, de 17 março de 1993, e instituído pela Lei Complementar n. 77, de 13 de julho de 1993.
Entre os argumentos, afirmava-se que a emenda teria violado o art. 60, § 4o, da CF 88, ao determinar que ao novo imposto não deveriam se aplicar as disposições do art. 150, III, “b”, e VI, nem o disposto no § 5º do art. 153 da Constituição. Ou seja, o IPMF escaparia à aplicação do princípio da anterioridade e das imunidades recíprocas de templos de qualquer culto, de partidos políticos e suas fundações, de entidades educacionais e de assistência social, bem como de livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão.
O STF decidiu que a emenda, nesse ponto, era inconstitucional, por ferir cláusulas pétreas: a do inciso I, “a forma federativa”, e a do inciso IV, “os direitos e garantias individuais”. Por quê? Por entender que afastar a imunidade recíproca e as limitações constitucionais ao poder de tributar positivadas em defesa do contribuinte significaria violar essas mesmas cláusulas pétreas.
Ao decidir pela constitucionalidade, o Tribunal reconheceu que o princípio da anterioridade e as imunidades previstas no inciso IV, “b”, “c” e “d”, do art. 150 são garantias individuais do contribuinte e, portanto, cláusulas pétreas, na ordem constitucional de 1988. A imunidade prevista no art. 150, VI, “a” (a imunidade recíproca), é exceção, uma vez que está protegida pela hipótese do inciso I do § 4º do art. 60 (forma federativa de Estado), e não pela do inciso IV do mesmo artigo (direitos e garantias individuais).
Tomar a anterioridade e as imunidades tributárias como direitos individuais do contribuinte significa reconhecer que tais prescrições não podem ser afastadas nem mesmo por força de emenda constitucional, como pretendido pelo art. 2o, § 2o, da Emenda. Por isso, mais do que apenas reforçar a importância dessas disposições, o reconhecimento das limitações constitucionais ao poder de tributar como direito do contribuinte representou uma etapa necessária do raciocínio – isto é, da ratio decidendi –, que conduziu à declaração de inconstitucionalidade da EC n. 3/1993.
A orientação[4] firmada nesse julgamento – de que as vedações previstas no art. 150 da Constituição conferem direitos fundamentais aos contribuintes – influenciou decisivamente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e foi, depois, aplicada em outros casos enfrentados pela Corte. Citem-se, como exemplo, o Recurso Extraordinário n. 587.008, de relatoria do ministro Dias Toffoli, julgado em 6.5.2011, e a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.661, de relatoria do ministro Marco Aurélio, julgada em 20.10.2011.
[1] “A expressão ‘Estatuto do Contribuinte’ denota um conjunto de normas que regula a relação entre o contribuinte e o entre tributante. Sua utilização possui conotação tanto garantista dos direitos do contribuinte como limitativa do poder de tributar”. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 12, novembro/dezembro/janeiro, 2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em: 27.6.2015. (Grifos originais).
[2] Cf. BRANCO, Paulo Gonet; MEIRA, Liziane Angelotti; CORREIA NETO, Celso de Barros. (Orgs.). Tributação e Direitos Fundamentais – conforme a jurisprudência do STF e STJ. São Paulo: Saraiva, 2012.
[3] É importante chamar atenção para as relações entre a política fiscal e o desenho institucional do sistema de controle de constitucionalidade. Em grande medida, pode-se dizer que o próprio redesenho institucional do controle abstrato nos anos que se sucederam à promulgação da Carta de 1988 tem relação direta com a necessidade de conferir certeza e segurança ao controle judicial da política fiscal do Governo Federal. Afirma, a propósito, Rafael Thomaz Favetti: “A criação da ADC pela EC n.3, que nada tinha a ver com o controle de constitucionalidade, explica-se pela urgência em criar um mecanismo para reduzir os custos transacionais da política fiscal, que começava a se consolidar fundada na centralização fiscal, por meio de contribuições sociais. A ADC n. 1 pedia, por sinal, a declaração de constitucionalidade da COFINS.” FAVETTI, Rafael Thomaz. Controle de Constitucionalidade e Política Fiscal. Porto Alegre: Sergio António Fabris Editor, 2003, p.136.
[4] O teor e o alcance da decisão não estão livres de crítica na doutrina. Veja-se, por exemplo, Ricardo Ribeiro Lodi, para quem a decisão “estabeleceu uma diretriz por demais exagerada, a partir da ideia de que todos esses direitos dos contribuintes [previstos no art. 150, VI] são cláusulas pétreas e que por isso não podem ser abolidos, restringidos e sequer excepcionados por emendas constitucionais”. RIBEIRO, Ricardo Lodi. As Cláusulas Pétreas Tributárias. Revista de Direito do Estado (RDE), v. 21, p. 625-647, 2011.
Celso Correia – Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo e graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente, Chefe de Gabinete de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor do mestrado e da graduação da Universidade Católica de Brasília e da pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público. Ministra disciplinas nas áreas de Direito Tributário, Direito Constitucional e Direito Financeiro. Autor dos livros “Tributação e Direitos Fundamentais” (Saraiva, 2012), “O Avesso do Tributo”(Almedina, 2016) e “Os Impostos e o Estado de Direito” (Almedina, 2017, no prelo), além de dezenas de artigos e capítulos de livros em revistas e obras especializadas.
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o antepenúltimo parágrafo contém, ao meu ver, dois enganos: 1 – ” ao decidir pela INconstitucionalidade; 2) inciso VI ( e não IV) b,c,e d do art 150.