Como salvar a repercussão geral: Ideias simples para reverter um fracasso

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repercussão geralProjeto Exame de Ordem | Cursos Online

Luís Roberto Barroso e Frederico Montedonio Rego

  1. Introdução

O instituto da repercussão geral completou dez anos sem ter sido capaz de atender as expectativas criadas com a sua introdução no sistema processual brasileiro. O artigo que se segue procura fazer um balanço do período, apontar as falhas na sua aplicação e apresentar algumas ideias para aperfeiçoá-lo. O tema aqui versado é, de longa data, objeto de preocupações do primeiro autor1. No ano passado, serviu de inspiração para a dissertação de mestrado do segundo autor2, que trabalhou como juiz auxiliar e instrutor no STF entre 2013 e 2017. No início deste ano, a Revista Brasileira de Políticas Públicas publicou um artigo acadêmico de nossa autoria, intitulado “Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o Supremo Tribunal vai julgar”3. O texto que se segue contém um resumo sumário das ideias ali apresentadas.

O propósito do trabalho é fazer um diagnóstico dos problemas associados à má compreensão e à má aplicação do instituto da repercussão geral ao longo dos anos. Constatadas as dificuldades, apresentamos um conjunto de propostas de solução. Todas simples e implementáveis sem a necessidade de reformas constitucionais ou legais. Uma última observação inicial: muitas das reflexões feitas a seguir foram debatidas informalmente com diversos ministros do STF e suas assessorias, num contexto que revela a percepção consensual de que mudanças substanciais precisam ser feitas para aperfeiçoamento do sistema de repercussão geral e da própria jurisdição constitucional no Brasil.

Há uma frase boa do intelectual americano Henry Louis Mencken, de que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”4. Por vezes isto ocorre mesmo. Mas não invariavelmente. Há momentos em que se passa justamente o contrário: o imaginário do excesso de complexidade leva à paralisia, ao desânimo na busca de qualquer solução. Porém, quem trafega pela vida sem ver uma dificuldade em cada esquina sabe que existem duas palavras que abrem muitas portas: “puxe” e “empurre”. Vale dizer: a vida às vezes é simples mesmo. Esperamos ser capazes de demonstrar que há soluções relativamente singelas e factíveis para os problemas da repercussão geral. Para implementá-las, basta desapego às coisas que não funcionam.

II Os números espantosos que documentam o fracasso da repercussão geral tal como praticada

A repercussão geral completou uma década de funcionamento em 2017. Criada pela EC 45/04 e inicialmente disciplinada pela lei 11.418/06, a sistemática só foi efetivamente implementada com a emenda 21, de 30 de abril de 2007, ao regimento interno do STF. De acordo com o Relatório Final da Comissão Mista de Reforma do Poder Judiciário, a inovação deveria servir para “restaurar o caráter paradigmático das decisões do STF, à medida que possibilitará que essa Corte examine apenas as grandes questões do país discutidas no Poder Judiciário”5. O prognóstico, entretanto, não se confirmou.

É certo que, num momento inicial, o novo instituto produziu algum impacto sobre o número de processos distribuídos ao STF. Assim, em 2006 – i.e., no ano anterior ao início de vigência da repercussão geral –, foram protocolados no Tribunal 127.535 novos processos. A partir de 2007, este número começou a cair, chegando a 64.018 em 2011. Desnecessário enfatizar que os números continuaram ridiculamente elevados. Para que se tenha um parâmetro de comparação, a Suprema Corte dos EUA recebe de 7.000 a 8.000 casos por ano, dos quais apenas 80 terão sustentações orais ouvidas e serão decididos pelo plenário6. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal recebe cerca de 6.000 casos por ano, dos quais 99% são considerados sem significação constitucional fundamental7, restando, portanto, cerca de 60 casos.

Pois bem: entre nós, após uma melhora inicial com a implantação do sistema de repercussão geral, a situação começou a regredir, fazendo com que os números começassem a se aproximar dos que existiam anteriormente a 2007. E com uma série de efeitos colaterais, como se demonstrará logo adiante. De fato, a partir de 2012, o número de novos processos no STF voltou a subir progressivamente, chegando a 103.650 no ano de 2017. O quadro abaixo exibe a disfuncionalidade do sistema:

Dados que procuram enfatizar a produtividade do Tribunal, de seus ministros e de suas equipes – produtividade que, de fato, é admirável – não servem para encobrir o absurdo do sistema. Segundo informações do sítio do STF8, somente em 2017 a Corte proferiu 126.530 decisões. Foram recebidos 103.506 processos novos durante o ano de 2017 e baixados 115.395 no mesmo período. Em 31/12/2016, o acervo era de 57.175 processos; em 5/01/2018, é de 45.511. A triste verdade, no entanto, é que todos nos acostumamos a números absolutamente incompatíveis com uma produção jurisdicional de qualidade, especialmente por parte da Suprema Corte. Isto sem falar na anomalia de o STF ter se tornado um Tribunal essencialmente monocrático, com os ministros atuando isoladamente, e nem sempre na mesma direção.

Atente-se, agora, especificamente, para as estatísticas atinentes à repercussão geral, com dados que vêm desde o início de sua implementação até o final de 20179:

(i) 974 questões foram afetadas ao regime de repercussão geral;

(ii) em 317 temas ela foi negada, significando que recursos versando aquelas matérias não subirão mais;

(iii) das 657 questões remanescentes, 359 haviam sido julgadas;

(iv) 298 ainda estavam pendentes10; e

(v) a média de julgamento ao longo do período foi de aproximadamente 34 temas com repercussão geral por ano (359 em dez anos e meio).

Veja-se, então: mantida esta média, o Tribunal demoraria mais de oito anos para esgotar um estoque de 298 temas. E isso apenas se nenhum novo caso vier a ter repercussão geral reconhecida. Além disso, criou-se um novo problema: há no mínimo 1,4 milhão de processos sobrestados nas instâncias de origem aguardando as decisões a serem tomadas pelo STF nos cerca de 300 feitos pendentes afetados ao regime da repercussão geral11. É bem de ver que, na sistemática anterior à criação do filtro, estes casos estariam tramitando. Considerando que as decisões tomadas em regime de repercussão geral até 22.05.2017 haviam solucionado “apenas” 400.625 processos nas instâncias de origem12, o saldo é bastante negativo: há ao menos três processos sobrestados para cada um resolvido por julgamento de mérito de repercussão geral.

Faz-se aqui breve desvio para um registro importante, que consiste em três propostas feitas pelo primeiro autor desde seu ingresso no Supremo:

a) o Tribunal não deveria reconhecer mais repercussões gerais do que possa julgar em um ano;

b) até a eliminação do estoque existente, o Tribunal só deveria reconhecer 20 repercussões gerais por semestre, sendo que a seleção deveria ser feita em junho e em dezembro, para permitir um critério comparativo do que é mais importante;

c) os casos selecionados em junho, teriam a sua data de julgamento designada a partir de fevereiro do ano seguinte; os que fossem selecionados em dezembro, teriam a data de julgamento designada a partir de agosto do ano seguinte.

Funcionaria assim: a repercussão geral 1, reconhecida em junho, seria julgada como primeiro processo da pauta da primeira 4a feira de fevereiro seguinte; a repercussão geral 2 seria o primeiro processo da pauta da segunda 4ª feira de fevereiro seguinte; e assim, sucessivamente. A mesma lógica se aplicaria aos casos selecionados em dezembro. Vantagens importantes: (i) processos não ficariam sobrestados em nenhuma hipótese por mais de um ano; (ii) ministros teriam um semestre de antecedência para se preparar, ficando praticamente eliminada a necessidade de pedidos de vista; e (iii) acabaria o desrespeitoso tratamento dado aos advogados, que se deslocam a Brasília muitas vezes, sem que seu processo seja julgado.

Como se nota, a repercussão geral é um filtro de relevância que não tem impedido a chegada de 100 mil casos por ano ao STF, nem desobrigado a Corte de proferir aproximadamente o mesmo número de decisões no mesmo intervalo. O alívio de processos verificado até 2011 foi temporário e ilusório: a diminuição dos feitos remetidos ao STF não significa que eles tenham deixado de existir, mas apenas que continuam aguardando julgamento em algum escaninho, ainda que virtual, longe da Praça dos Três Poderes. É inegável, portanto, que a sistemática, tal como praticada até hoje, fracassou.

III. Três causas para o fracasso da repercussão geral

Feito o diagnóstico acima, cabe identificar as causas do problema. Existem pelo menos três fatores responsáveis pelo mau funcionamento do sistema de repercussão geral:

  1. O reconhecimento da existência ou não de repercussão geral não é, como deveria ser, o primeiro exame feito pelo relator ao apreciar o recurso extraordinário (ou o agravo respectivo). Os gabinetes continuaram a praticar a mesma jurisprudência defensiva de sempre, trabalhosa e geradora de novos recursos.2. A negativa de repercussão geral, tal como praticada atualmente, incide tão somente sobre questões constitucionais abstratas, projetando automaticamente efeitos sobre todos os processos que discutam a mesma tese jurídica. Não se tem cogitado, como possível e necessário, da negativa de repercussão geral com eficácia apenas para o caso concreto, sem qualquer efeito para além do processo em que proferida a decisão.
  2. O quórum de 2/3 para a negativa de repercussão geral não significa presunção de sua existência em todo e qualquer recurso extraordinário. O quórum qualificado elevado se justifica para legitimar a motivação sumária da decisão que nega a repercussão geral.

A seguir, uma breve explicação acerca de cada uma destas causas.

III.1. A sistemática da repercussão geral só é aplicada após a utilização dos filtros ocultos tradicionais criados pela jurisprudência defensiva do STF

Nos termos do art. 102, § 3º, da Constituição Federal13, a demonstração da repercussão geral da questão constitucional discutida é requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Se o relator entender que a questão constitucional em discussão (i) não tem relevância prima facie, (ii) não foi formulada de maneira adequada ou debatida de modo suficiente ou (iii) não se destaca entre as mais significativas do período, considerada a capacidade física de julgamento no Plenário e a razoável duração do processo, deverá ele reconhecer expressamente este fato. E, consequentemente, propor negativa de seguimento ao recurso por ausência de repercussão geral, como primeiro exame a ser feito. Não é isso o que acontece.

Em lugar de proceder desta forma, o que os gabinetes fazem, de fato, é um filtro oculto de relevância. Como funciona o sistema na prática? Em meio aos milhares de recursos distribuídos (mais de 4 mil para cada ministro em 2017), os ministros selecionam os poucos casos que terão reconhecida repercussão geral, para fins de julgamento em plenário físico. Em relação a praticamente14 tudo o mais, a decisão de origem será mantida, sem qualquer reapreciação de mérito. Todavia, em lugar de explicitar que o caso e a questão não tiveram a relevância reconhecida, pratica-se a antiga e tradicional jurisprudência defensiva que se materializa em um de três clichês para negar seguimento a recurso extraordinário:

a) a matéria é infraconstitucional;

b) a solução do problema envolve matéria de fato ou revolvimento de provas; e

c) a questão constitucional não foi adequadamente prequestionada.

Existem três problemas nessa linha de atuação. O primeiro deles é que a utilização de óbices formais de admissibilidade demanda um tempo de análise processual muito superior ao que exigiria um filtro assumidamente baseado na relevância. Boa parte do corpo técnico dos gabinetes trabalha para se livrar dos processos que não serão apreciados, o que é um desperdício. Pior: proferida a decisão de negativa de seguimento, tal pronunciamento é passível de agravo, o que retarda mais ainda o desfecho do caso. E, como intuitivo, quanto maior a demora para tornar definitiva uma conclusão desfavorável, maior o incentivo para recorrer.

O segundo problema é que este modo de trabalho gera uma série de efeitos colaterais, a começar pela inflação desordenada de julgamentos, potencializando o risco de decisões contraditórias e tornando virtualmente impossível o conhecimento da jurisprudência do Tribunal. Por fim, e em terceiro lugar, há numerosos exemplos de controvérsias que passam anos sendo enquadradas pelo STF como fáticas ou infraconstitucionais. No entanto, subitamente passa-se a entender que o mesmo tema é de algum modo relevante e a matéria passa a ser reputada como constitucional, vindo o recurso a ser provido e a decisão revista15. Os muitos precedentes existentes revelam que a distinção entre o que é constitucional e o que é infraconstitucional nem sempre é singela, quando não puramente artificial.

III.2. A negativa de repercussão geral, como praticada, só incide sobre a questão constitucional discutida, isto é, sobre a tese jurídica em abstrato, sem que se cogite de sua rejeição com efeitos limitados ao caso concreto

Diante de um recurso extraordinário que considere sem relevância, o relator ou procede da forma descrita no item anterior (em que a falta de repercussão é encoberta por uma justificativa formal) ou propõe a negativa de relevância da questão constitucional. Nesta segunda hipótese, conforme a praxe atual, ele deve extrair do caso concreto a tese debatida, afirmar sua irrelevância in abstracto e submeter o tema ao plenário virtual. Aprovada a proposição, os efeitos deste juízo de irrelevância se projetam sobre todos os processos no país que discutam a questão. Este modo de proceder tem utilidade, sobretudo, no caso de recursos repetitivos.

A fórmula, porém, é claramente insuficiente para produzir efeitos práticos de grande monta sobre os quantitativos gerais de recursos extraordinários. Nestes dez anos de vigência do instituto, a negativa de repercussão geral foi aplicada a 317 temas, significando que recursos versando aquelas matérias não subirão mais (CPC/15, arts. 1.035, § 8º e 1.039, parágrafo único). Existem, todavia, cerca de 80 milhões de processos pendentes no Brasil16. Todos, teoricamente, podem chegar ao STF. Quantas teses são discutidas em 80 milhões de processos? Quantas teriam de ser classificadas e ter repercussão geral negada para reduzir a demanda sobre a Corte? Quantos blocos temáticos seriam necessários para agrupar 80 milhões de processos? Em dez anos, o STF não afetou nem 1.000 teses, das quais 298 estão pendentes. Atualmente, portanto, a repercussão geral é como um filtro com uma trama dilatada, capaz de conter somente pedras muito grandes (“blocos” de processos), enquanto a areia fina (processos não agrupados em “blocos”) escoa incessantemente, deixando a Corte cada vez mais soterrada.

III.3. A má compreensão do quórum de 2/3 dos membros do STF para recusa da repercussão geral

O quórum qualificado elevado nada tem a ver com a presunção de existência de repercussão geral ou com a excepcionalidade da inadmissão do recurso extraordinário. Que, como o próprio nome indica, é de natureza excepcional. Sustentar o contrário significa esquecer que a repercussão geral surgiu para limitar e racionalizar o acesso ao STF, e não para ampliá-lo. Aliás, as estatísticas demonstram que não mais do que 3% dos recursos extraordinários (e agravos) são providos com o mérito julgado. O quadro abaixo contém os dados do gabinete do primeiro autor em 2017, mas são representativos da média geral17.

A verdadeira razão de ser do quórum particularmente qualificado, assim entre nós como em outros tribunais pelo mundo afora, é que ele funciona como um contrapeso para decisões que terão de ser motivadas de forma sumária. Não é difícil compreender a impraticabilidade de se proferirem decisões analíticas a fim de demonstrar que determinada controvérsia não tem repercussão geral, i.e, não envolve “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (CPC, art. 1.035, § 1º). Seria mais fácil resolver o mérito de todos os casos, do que empreender, na análise prévia de sua admissibilidade, um debate exaustivo sobre a sua relevância.

Se a repercussão geral mostra-se uma noção vaga, e se não é possível um debate exaustivo sobre o requisito em dezenas de milhares de decisões, o constituinte considerou seguro afirmar a pouca relevância de uma controvérsia se dois terços dos ministros concordassem a respeito. Trata-se de fórmula claramente inspirada nas experiências dos EUA e da Alemanha, onde o quórum, tão ou mais qualificado, compensa a indeterminação das fórmulas dos filtros de relevância e a falta de motivação das decisões negativas.

  1. Três propostas para resgatar a repercussão geral

IV.1. A existência ou não de repercussão geral deve ser o primeiro exame a ser feito pelo relator na apreciação da admissibilidade dos recursos extraordinários

O filtro da repercussão geral deve ser o primeiro a ser aplicado no exame dos recursos extraordinários, e não o último. Não é difícil demonstrar a pertinência deste argumento. Antes, porém, cabe registrar que esta inversão lógica é alimentada pelo próprio regimento interno do STF, que prevê a análise da repercussão geral apenas “quando não for o caso de inadmissibilidade do recurso por outra razão” (art. 323). Ou seja: inadvertidamente, o RISTF fomenta o exame prévio de outros requisitos, quando a relevância ou não da questão deve ser prejudicial a tudo o mais. A consequência desta alteração da ordem natural das coisas é que o Tribunal consome boa parte do seu tempo e dos seus recursos humanos na análise de casos que não têm relevância, ou seja, que não passariam no teste da repercussão geral. A este propósito, o CPC/15 ajuda a tornar a relevância o critério preferencial, tirando o suporte da jurisprudência defensiva, ao dispor que o STF e o STJ poderão “desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave” (art. 1.029, § 3º).

IV.2. O relator poderá propor, em plenário virtual, por decisão motivada sumariamente, a negativa de repercussão geral ao recurso extraordinário, com efeitos limitados ao caso concreto.

Atualmente, o plenário virtual do STF é utilizado para duas finalidades principais: a) atribuir repercussão geral a determinada questão constitucional, levando o recurso extraordinário em que veiculada a ser apreciado pelo plenário físico, com a fixação de uma tese acerca do tema, ou reafirmar jurisprudência; b) negar repercussão geral a determinada questão constitucional, com a explicitação da tese envolvida, o que impedirá a subida de novos recursos sobre aquele tema. Pois bem, na linha das ideias aqui apresentadas, abre-se uma terceira possibilidade: o relator do recurso extraordinário poderá submeter ao plenário virtual proposta de não atribuição de repercussão geral válida apenas para o caso concreto, sem a fixação de qualquer tese. Por isso mesmo, sua motivação poderá ser sumária. Naturalmente, se o relator pode o mais – propor a negativa de repercussão geral a uma determinada questão constitucional, impactando todos os casos que versem aquela matéria – deve poder o menos, que é negar repercussão geral a um caso específico, sem impactar qualquer outro processo.

A Constituição não prevê uma expansão automática dos efeitos da decisão de ausência de repercussão geral para todos os processos que discutam uma mesma questão jurídica. Diversamente, o art. 102, § 3º, da Constituição preceitua que o requisito se refere à “admissão do recurso” (no singular), podendo a Corte “recusá-lo” (também no singular), por manifestação de dois terços dos seus membros. Vale dizer, a Constituição não prevê que a decisão negativa de repercussão geral se aplica sempre a todos os recursos (no plural) sobre uma mesma questão. A lei previu essa expansão de eficácia (CPC, arts. 1.035, § 8º, e 1.039, parágrafo único), como uma forma de resolver demandas repetitivas com uma única decisão, o que pode ser útil. No entanto, tal expansão de eficácia não é automática ou obrigatória.

Em verdade, se a decisão de ausência de repercussão geral, por definição, refere-se a discussões que não “ultrapass[a]m os interesses subjetivos do processo” (CPC/15, art. 1.035, § 1º), é de se esperar que normalmente tal decisão tenha seus efeitos limitados ao caso dos autos em que proferida. Daí porque, à luz do direito brasileiro vigente, as decisões negativas de repercussão geral podem operar não só como um instrumento de resolução de demandas repetitivas, mas também como um instrumento de seleção qualitativa de recursos extraordinários. Este é o modelo típico de operação dos filtros de relevância no mundo: decisões negativas com efeitos restritos ao caso concreto, isto é, que inadmitem apenas o recurso em questão (CF, art. 102, § 3º), sem gerar precedentes. Esse tipo de decisão, por seus efeitos limitados e pelo elevado quórum exigido, não exige motivação analítica, sendo suficiente, e.g., a referência à base normativa que a autoriza. Não fazer isso é reduzir a repercussão geral a um instrumento de resolução de demandas repetitivas, de feição tímida e pouco eficaz, como tem sido até agora a prática do Tribunal. Nada mais distante dos fins para os quais foi concebido o instituto.

IV.3. Se 2/3 (dois terços) dos ministros acompanharem o relator, o recurso será inadmitido.

A adoção da fórmula aqui proposta traz consequências importantes para o Tribunal e para o sistema de justiça. A primeira é a celeridade muito maior na tramitação dos recursos extraordinários, possibilitando o trânsito em julgado sem novas etapas. A segunda é que, sendo negada repercussão geral com efeitos limitados ao caso concreto, nada impede que a questão constitucional nele versada possa voltar a ser apreciada pelo Tribunal, em momento posterior. Duas observações finais, a constarem de eventual emenda regimental que venha a incorporar as ideias aqui veiculadas: a) se a proposta do relator, de negativa de repercussão geral ao caso concreto, não for aprovada pela maioria de 2/3, o recurso extraordinário será redistribuído a algum dos ministros que tenha votado em sentido divergente do relator; e b) a ausência de manifestação de algum ministro, no prazo regimental, será sempre computada como voto convergente com o do relator.

  1. Conclusão

Em essência, as ideias aqui expostas são no sentido de que o juízo acerca da repercussão geral ou não de determinada questão constitucional seja a primeira avaliação a ser feita pelo relator do recurso extraordinário. Ao contrário do que se supõe, simplesmente não há sentido em examinar todos os requisitos de admissibilidade de um recurso que, ao final, não será admitido por falta de repercussão geral. Isto porque, após o exame, o relator pode propor, em plenário virtual, mediante decisão motivada singelamente, a não atribuição de repercussão geral ao caso concreto, sem produzir quaisquer efeitos para além do processo em que for proferida. Com isso, elimina-se a prática ancestral de se negar seguimento ao recurso com base em jurisprudência defensiva tradicional – questão infraconstitucional, matéria de fato ou que exige prova ou ausência de prequestionamento –, quando o critério real é o de ausência de relevância transcendente da questão discutida. Se 2/3 dos ministros concordarem com o relator, o recurso será inadmitido, sem prejuízo de a questão constitucional nele versada poder vir a ser apreciada pelo Tribunal em momento futuro.

Estas providências singelas, terão o condão de (i) abreviar significativamente a tramitação dos processos, (ii) evitar o grande dispêndio de tempo e recursos humanos com processos que não terão o seu mérito apreciado e (iii) aproximar o STF do modelo das principais cortes constitucionais do mundo.
_________________________

1 V. Luís Roberto Barroso, Democracia, desenvolvimento e dignidade: um agenda para os próximos dez anos. Conferência de encerramento da Conferência Nacional dos Advogados, Curitiba, 2011. Disponível em: <clique aqui> . E também: Reflexões sobre as competências e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, 25 ago.2014.

2 Frederico Montedonio Rego. Os efeitos das decisões negativas de repercussão geral: uma releitura do direito vigente. Dissertação de mestrado (UniCEUB), Brasília, 2017, 245 p. No prelo. O trabalho defende ainda outras ideias, aqui não desenvolvidas em razão dos limites deste artigo.

3 Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o Supremo Tribunal Federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, dez.2017, p. 695-713. Disponível em <clique aqui> . Acesso em: 6 fev.2018.

4 A frase foi popularizada no Brasil pelo ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.

5 Trecho do relatório final da Comissão Mista de Reforma do Judiciário. Disponível em:<clique aqui>. Acesso em: 25 mai.2017.

6 V.: Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 5 jan.2018.

7
 V.: Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 6 jan.2018.

8
 Dados disponíveis em: <clique aqui> e <clique aqui>. Acessos em: 29 dez.2017 e 5 jan.2018.

9
 Dados disponíveis em: <clique aqui>. Acesso em: 5 jan.2018.

10
 O relatório mostra 302 temas pendentes, mas, em verdade, 4 deles ainda aguardam o término do prazo para votação no Plenário Virtual quanto ao reconhecimento ou não da repercussão geral.

11
 O número exato, em 05.01.2018, é de 1.425.177 processos sobrestados. Disponível em: <clique aqui> . Acesso em: 5 jan. 2018.

12
V.: Disponível em: <clique aqui> . Acesso em: 5 jan.2018.

13
 CF, art. 102, § 3º: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

14
 Com exceção dos poucos casos em que o relator dá provimento monocrático ao recurso extraordinário, com base no art. 932, V, do CPC.

15
 Para uma análise de vários desses exemplos (RE 614.406, Rel. Min. Ellen Gracie; RE 638.115, Rel. Min. Gilmar Mendes; ARE 909.437, Rel. Min. Luís Roberto Barroso; RE 590.415, Rel. Min. Menezes Direito), v. REGO, Frederico Montedonio. Os efeitos das decisões negativas de repercussão geral: uma releitura do direito vigente. Dissertação de mestrado (UniCEUB), Brasília, 2017, p. 64-79.

16
 O número é de 79,7 milhões de processos (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2017: ano-base 2016. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2017, p. 65. Disponível em: <clique aqui> . Acesso em: 7 set.2017).

17
 Apenas 5% dos recursos de natureza extraordinária (AI, ARE e RE) decididos monocraticamente foram providos pelo STF entre 2007 e 2013 (MEDINA, Damares. A repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2016, e-book, p. 93-94).
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Fonte: Migalhas
 
 

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