Competência Uber

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02 de janeiro4 min. de leitura

UBER: Para Onde? Vara do Trabalho ou Juizado Especial Cível?

Em 28.08.2019, o Superior Tribunal de Justiça julgou o conflito de competência 164.554 (acórdão publicado em 04.09.2019), tendo como partes a 1ª Vara do Trabalho de Poços de Caldas e o Juízo de Direito do Juizado Especial Cível de Poços de Caldas.

O processo tem como pedidos a reativação da conta de motorista no UBER e a indenização por danos materiais e morais pelo desligamento indevido. No entendimento da 2ª Seção daquela Corte, a competência seria da Justiça Comum, em virtude de a pretensão decorrer “do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil”.

Com o devido respeito ao posicionamento do órgão julgador, embora no caso não se discuta a existência de relação de emprego, a relação jurídica base existente entre as partes caracteriza verdadeira relação de trabalho.

Independentemente da posição que se perfilhe quanto à caracterização ou não de relação de emprego pela prestação de serviços dos motoristas vinculados ao Uber, trata-se de um contrato de atividade, um autêntico contrato de trabalho, ainda que se entenda ser regulado por lei civil e não trabalhista.

Relação de trabalho é gênero, do qual relação de emprego é espécie. A relação de trabalho nasce de um contrato de atividade, ou seja, aquele cujo objeto é a atividade em si e não seu produto. Ensina o professor PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA (RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Relação de emprego, estrutura legal e supostos. 2. ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 400/401): “Define-se o trabalho por conta alheia como aquele que se presta a outrem a quem, em princípio, cabem os resultados e os riscos”.

Entretanto, vale observar que a assunção dos riscos pelo contratante do trabalho não é essencial à caracterização da relação de trabalho, pois pode o trabalhador correr os riscos da sua prestação de serviços (o que não ocorre na relação de emprego, em que os riscos são ou devem ser do empregador). Nesse sentido, o conceito de relação de trabalho formulado por MAURO SCHIAVI (SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. De acordo com o novo CPC. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016. p. 195):

(…) concluímos que o termo relação de trabalho pressupõe trabalho prestado por conta alheia, em que o trabalhador (pessoa física) coloca sua força de trabalho em prol de outra pessoa (física ou jurídica), podendo o trabalhador correr ou não os riscos da atividade. Desse modo, estão excluídas as modalidades de relação de trabalho em que o trabalho for prestado por pessoa jurídica.

 

Conforme asseverado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, a competência material se fixa pelos elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido). Assim, uma vez que a relação jurídica entre o motorista e a plataforma é uma relação de trabalho (enquanto gênero), os direitos e deveres que emergem desse vínculo, ainda que invoquem embasamento legal contido em diplomas civis, devem ser processados e julgados pela Justiça do Trabalho.

A regra matriz de competência material da Justiça do Trabalho encontra-se no art. 114, inciso I da Constituição, que alude às ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Mauro Schiavi (SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. De acordo com o novo CPC. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 198), afirma que existem basicamente três posições a respeito da abrangência da expressão “relação de trabalho”, utilizada pelo art. 114, inciso I, da CR:

  1. a) nada mudou com a EC n. 45. O termo “relação de trabalho” significa o mesmo que relação de emprego e a competência da Justiça do Trabalho se restringe ao trabalho de emprego; b) exige que a relação de trabalho tenha semelhança com o contrato de emprego, ou seja, que o prestador esteja sob dependência econômica do tomador dos serviços, haja pessoalidade, onerosidade e continuidade na prestação. De outro lado, para as relações regidas por leis especiais, como a relação de trabalho que é qualificada como relação de consumo, estão fora do alcance da competência da Justiça do Trabalho; c) admite qualquer espécie de prestação do trabalho humano, seja qual for a modalidade do vínculo jurídico que liga o prestador ao tomador, desde que haja prestação pessoal de serviços de uma pessoa natural em favor de pessoa natural ou jurídica.

 

Há ainda um quarto posicionamento, o qual sustenta que qualquer relação de trabalho, independentemente de ser regulada por lei especial ou ser gratuita, é de competência da Justiça do Trabalho, com exceção das causas que configurem relação de consumo. Assim, acrescem-se à competência da Justiça do Trabalho, diversas relações de trabalho, como aquelas que envolvem avulsos, eventuais, autônomos, entre outros.

Para este último posicionamento, a questão que se coloca é precisamente a distinção entre ambos os tipos de relações jurídicas – relação de trabalho e relação de consumo – já que esta última pode ser muito próxima daquela nos casos em que o prestador é pessoa física e fornece um serviço e não um produto.

A diferenciação surge na medida em que na relação de consumo há o oferecimento do serviço no mercado de consumo e esse serviço é prestado para o destinatário final, isto é, para o consumidor, não ingressando na cadeia produtiva para o fornecimento posterior de um outro produto ou serviço. Nesse sentido, OTÁVIO AMARAL CALVET (CALVET, Otávio Amaral. Nova competência da Justiça do Trabalho: relação de trabalho x relação de consumo. In: Revista Legislação do Trabalho. São Paulo; LTr, ano 69, v. 01, 2005, p. 56/57):

“Se é pacífico que a doutrina trabalhista vê na relação de consumo questões similares à relação de emprego (em sentido estrito), pela hipossuficiência de uma das partes e pela concessão de benefícios a ela em busca de uma igualdade substantiva, há de se ressalvar que, na relação de consumo, o protegido é o consumidor e, em hipótese alguma, o prestador de serviços, este aparecendo como detentor do poder econômico que oferece publicamente seus préstimos, auferindo ganhos junto aos consumidores. Transportando para as relações de trabalho em sentido lato, seria no mínimo estranho imaginar-se o deferimento de uma tutela especial ao consumidor que, no caso, apareceria também como tomador dos serviços, reconhecendo-se-lhe, simultaneamente, duas posições que se afiguram incompatíveis ontologicamente: a de fragilizado consumidor com a de contratante beneficiado pela energia de trabalho (tomador de serviços). Assim, resta fixada a segunda premissa para caracterização das relações de trabalho da competência da Justiça do Trabalho: o tomador dos serviços não pode ser o usuário final, mas mero utilizador da energia de trabalho para consecução da sua finalidade social (ainda que seja o tomador pessoal natural ou ente despersonalizado)”.

 

O caso apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça pode gerar certa confusão para quem se filie a este último entendimento. No entanto, é preciso frisar que a demanda envolve a relação entre o motorista e a plataforma Uber e não entre o motorista ou a própria plataforma e o cliente. A relação entre o motorista e a plataforma digital não é de consumo, o destinatário final é precisamente o cliente/consumidor que acessa o aplicativo e, evidentemente, não a plataforma.

Fato é que, na multicitada decisão, a Corte Especial perfilhou o restrito entendimento de que a EC 45/2004 não provocou qualquer alargamento da competência material da Justiça do Trabalho, como se somente demandas envolvendo relações de emprego ou fraudes para a sua caracterização estivessem contidas no âmbito de atribuição desta Justiça Especializada.

Contudo, a pretensão de reparação e de reativação da conta no UBER nascem, emergem de uma relação de trabalho mantida entre as partes, são direitos “oriundos” da relação de trabalho, para usar a dístico do texto constitucional. Assim, pouco importa se o fundamento legal utilizado para subsidiar a pretensão é civil ou trabalhista. Trata-se, portanto, de separar o que é principal daquilo que é, ou, em tese, seria irrelevante para fins de fixação de competência.

Com a palavra/destino final, o Supremo Tribunal Federal!

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