Constituição em sentido moderno: uma nova forma de abordagem

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04 de julho5 min. de leitura

Caras e caros colegas,

Muito se questiona sobre o que seria a constituição. Normalmente este é o primeiro tema abordado pelos manuais de Direito Constitucional. Mas hoje traremos uma abordagem um tanto diferente, baseada na perspectiva sistêmica de Luhmann e nas obras de Neves.

Inicialmente, convém ressaltar que o termo “Constituição” possui ambiguidade (no plano conotativo) e vagueza (no plano denotativo), gerando diversos riscos na sua utilização. A própria construção da semântica constitucionalista, no âmbito das revoluções liberais, principalmente da Revolução Francesa, contribuiu para formação dessa imprecisão semântica, transformando o termo constituição num “conceito-panaceia” (NEVES, 2009, p. 1-6).

No âmbito da Revolução Francesa, todos que se opusessem ao constitucionalismo eram criticados como absolutistas, favoráveis ao Antigo Regime, a favor de ideias autoritárias, contrários aos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade defendidos pela Revolução. Isso faz com que o termo “Constituição” ganhe forte carga simbólica e ideológica.

No contexto revolucionário, a utilização pragmática do termo “constituição” como “conceito político de luta” permite que o enquadremos no que Koselleck chama de “conceitos antitéticos assimétricos”, que são limitativos, pois a contraparte que os pretende definir é inferiorizada. Esclarece Koselleck que um conceito antitético-assimétrico “serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-las e criá-las. Não indica, mas também constitui grupos políticos ou sociais”.

Essa situação conduz a uma tendência a aplicar-se o mencionado termo a instituições e realidades políticas e jurídicas muito distintas, em contextos os mais diferentes. Dessa maneira, realmente, a constituição passa a ser uma metáfora contextualmente ilimitada, desvinculando-se da história do conceito e caracterizando-se como um artefato semântico sem referência reflexiva a uma estrutura social determinada.

Utilizando essa concepção mais ampla do termo, alguns teóricos defendem a existência de um constitucionalismo primitivo no Egito (2.600 a.C.), ou mesmo na Babilônia (1.700 a.C.), em razão da sistematização das punições estatais promovida pelo Código de Hamurabi. Outros preferem identificar a origem do constitucionalismo nos hebreus, uma vez que a Torah (Lei escrita) e o Talmud (Lei oral), ao expressarem as regras morais, sociais e religiosas que deveriam ser observadas pelo povo de Deus, representariam uma primeira limitação sistemática ao exercício do poder político, caracterizando um modelo constitucionalista de sociedade.

Para esses autores, contudo, foi a tradição greco-romana que melhor caracterizou um constitucionalismo antigo, sendo Atenas apontada como a primeira grande experiência de limitação ao poder do Estado, pois, além de garantir direitos aos seus cidadãos, distribuiu o exercício do poder político por distintos órgãos, dentre os quais destacamos: a Assembleia, na qual deliberam os cidadãos; o Conselho, responsável pela execução das atividades administrativas cotidianas; e as Cortes, responsáveis pelos grandes júris populares.

O helenismo produziu, sem dúvida, reflexos nas instituições e na política romana, que absorveram a noção de democracia e de exercício limitado do poder. É sabido que Roma vivenciou quase todas as formas de governo, mas foi na Roma Republicana que teria se desenvolvido o ideal de governo limitado, sendo o poder político exercido pela Assembleia (legislativo), pelos Cônsules (executivo), Pretores, Questores e Tribunos da plebe, além do Senado (órgão consultivo) e do Júri.

Discordamos, contudo, dessas concepções que identificam um constitucionalismo na antiguidade, ao passo em que concordamos com Marcelo Neves quando este afirma ser inconcebível a utilização do conceito moderno de Constituição na forma social pré-moderna, e o faz utilizando a compreensão da teoria sistêmica de Luhmann, por meio da descrição de dois aspectos fundamentais daquelas sociedades, que contradizem a ideia de Constituição, quais sejam: a integração sistêmica e a integração social.

No que se diz respeito à integração sistêmica (relação de dependência entre as esferas de comunicação), a formação social pré-moderna não se diferenciava funcionalmente. Com isso, quer dizer que os códigos de comunicação do direito, da economia, da arte e do saber estavam subordinados à distinção bem/mal da semântica moral-religiosa, assim como orientados pelos critérios do poder superior ou inferior. Dito de outra forma, não se diferenciava o lícito/ilícito (direito), ter/não ter (economia), belo/feio (arte), verdadeiro/falso (ciência) da distinção bem/mal da religião.

No que se refere à integração social, a diferenciação se dava entre incluídos (homens das camadas superiores) e excluídos (homens das camadas inferiores). E, como a sociedade se confundia com a própria organização territorial, essa distinção (exclusão/inclusão) identificava-se com a própria distinção membro/não membro da sociedade. Assim, apenas aos incluídos seriam atribuídos privilégios de status, como membros da sociedade. Note-se que não se pode falar em direitos, pois inexistia o conceito de pessoa associado à semântica moderna da individualidade. Não se fala, pois, em direitos, mas em privilégios (NEVES, 2009, p. 7-8).

Neste contexto, o poder era legitimado pelo “direito sacro”, que seria “um epifenômeno do poder legitimado pela moral assentada na religião” (NEVES, 2009, p. 9), o que tornava ilimitado o jus imperium do soberano, do ponto de vista da impossibilidade de existirem normas estabelecidas por outros homens que limitassem o poder, levando a uma relação assimétrica entre as camadas localizadas no topo da pirâmide social em detrimento das camadas inferiores.

Essa estruturação de dominação fundada na semântica religiosa do direito sacro era indisponível, o que implicaria na ideia de um direito estático, imutável e verdadeiro, inexistindo condições estruturais na formação social pré-moderna para a diferenciação de um processo legislativo que pudesse alterar o direito no plano das normas gerais e abstratas. Dito de outra forma, “a imutabilidade ou indisponibilidade estrutural do direito relacionava-se diretamente com a manutenção da ordem social hierárquica e a inquestionabilidade dogmática do status quo político dominante”.

Por essa razão, entendemos que em nenhum dos tipos de formação social pré-moderna esteve presente uma Constituição, o que apenas se torna possível com o advento do Estado Moderno. Isso porque o direito dessas formações sociais não constituía um direito alterável, “o que só se torna possível com a diferenciação do procedimento legisferante no Estado Moderno, associada ao surgimento da Constituição como instância reflexiva do sistema jurídico.

O Estado Moderno nasceu absolutista e, por mais que ainda se mantivesse o fundamento sacro do poder dos príncipes, já se tentava superar a perspectiva dos fundamentos sacros do poder. Nessa tendência, o contratualismo de Hobbes é uma das expressões da semântica do novo direito natural, sem referência ao transcendente, que permite, como bem descreveu Habermas, identificar a legislação, a execução e a aplicação das leis como “três momentos no interior de um único processo circular regulado politicamente” (HABERMAS, 2003, p. 232 e ss.).

Dessa forma, “passa-se de uma indeferenciação sacramente fundada de poder e direito para uma subordinação instrumental do direito à política” (NEVES, 2009, p. 18). Contudo, permanece a estrutura hierárquica na relação entre soberano, detentor de poder e súditos, possuidores de deveres e responsabilidades. Embora já existisse uma relevante juridificação (por normas postas e alteráveis), esta se limitava às relações entre privados, não importando em direitos subjetivos públicos acionáveis contra o soberano.

Nesse contexto, não existia a possibilidade de oposição política institucionalizada ao poder soberano, o que, diante da complexidade crescente da sociedade, decorrente de uma variedade de concepções, de cosmovisões, levou à ideia de revolução, pressuposto para o constitucionalismo.

Em síntese, as Constituições em sentido moderno pressupõem a distinção entre expectativas normativas e cognitivas no contexto da positivação do direito, ou seja, pressupõe um “direito que se transforma para se tornar permanentemente alterável por decisão”.

Esse constitucionalismo moderno nasce, pois, vinculado ao Estado como organização territorial soberana e objetivou responder a duas demandas iniciais: a primeira, garantir (de forma coercitiva) os direitos fundamentais dos indivíduos; a segunda, limitar e controlar o poder estatal, além de garantir sua organização de forma eficiente. Nesse contexto, as Constituições estatais serviram para atender essa demanda inicial, estando territorialmente delimitadas, podendo ser definidas como um acoplamento estrutural[1] entre política e direito. Ocorre que, com a intensificação da sociedade mundial, esse modelo torna-se insuficiente, conforme a seguir desenvolveremos.

Até breve,

Chiara Ramos

Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.

 

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