Direito da Sociedade – Eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais em Portugal

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28 de fevereiro5 min. de leitura

Caras e caros colegas,

Como dito na semana anterior, vivemos em uma sociedade mundial multicêntrica, na qual o estudo comparado é de suma importância para lidar com os problemas hipercomplexos do cotidiano, sobretudo quando se trata dos direitos fundamentais. Por isso, hoje iremos mergulhar no direito comparado, falando sobre a relação entre os direitos fundamentais e o direito privado em Portugal.

A constituição portuguesa possui amplo catálogo de direitos fundamentais, são mais de 50 artigos sobre o tema, consequência do processo de redemocratização do país que se iniciou em 1974 e deu origem à constituição de 1976. Sem dúvida, a amplitude dessa proteção modifica o direito privado, sobretudo no que diz respeito à proteção aos trabalhadores e ao direito de família, gerando, inclusive, reforma no código civil (reforma de 1977) (PINTO, 2007, 145-146).

A questão que se coloca é a seguinte? Podem esses direitos fundamentais serem aplicados diretamente nas relações privadas, sem intermédio do legislador ordinário? Ou seja, podemos falar de eficácia horizontal dos direitos fundamentais no contexto do ordenamento jurídico português?

Bem, a discussão sobre a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas em terras lusas se limita aos direitos, liberdades e garantias, pouco se falando da eficácia direta dos direitos econômicos, sociais e culturais. Isso ocorre, sobretudo, em razão da previsão do art. 18, n. 1, da constituição portuguesa que dispõe: “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

O dispositivo é claro ao afirmar que tais direitos se aplicam diretamente, mas existe celeuma doutrinária quanto à intensidade (modus vinculandi) dessa aplicação na esfera pública e privada. Pinto diz que essa diferença se dá em decorrência da própria diferença entre entidades públicas e privadas, pois, nas relações de direito privado, normalmente, existem direitos fundamentais contrapostos (dois lados da demanda) (PINTO, 2007, 149).

Por essa razão, a tese segundo a qual os direitos fundamentais têm como destinatários exclusivos as entidades públicas, não sendo dotados de qualquer eficácia direta nas relações privadas, não é corrente na doutrina portuguesa.

Sobre o tema, Pinto assevera que “a relação cidadão-cidadão, ao contrário do que acontece com a relação cidadão-estado, não é uma relação entre titular e não titular de direitos fundamentais, mas, antes, entre titulares de direitos fundamentais” (PINTO, 2007, 152).

Nesse diapasão, desenvolveu-se a tese de que a Constituição da República Portuguesa previa uma vinculação imediata dos sujeitos de direito privado aos direitos fundamentais, com base na lógica de que tais direitos também teriam a missão de proteger a pessoa contra abusos de outros particulares no âmbito privado.

Paulo de Mota Pinto tece uma interessante crítica essa perspectiva,  afirmando que se faz necessário reconhecer a dificuldade de admitir a generalização da eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais. Caso assim fosse, afirma o autor, teríamos a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de todos os atos e negócios jurídicos contrários à Constituição (PINTO, 2007, 152).

Sobre o tema, Pinto nos fala, ainda, do risco de substituição global do direito civil pelo direito constitucional, “com risco de conduzir a regulamentação da vida jurídico-privada – e essa mesma – a excessiva rigidez e irrealismo, resultantes da aplicação direta de preceitos com um grau de generalidade a abstração muito maior do que os instrumentos apurados, para cada área do direito privado, ao longo de séculos, e que visam resolver especificamente aqueles problemas dos limites da validade e da licitude de atos jurídico-privados”  (PINTO, 2007, 152).

Há, ainda, os que buscam um meio termo entre a aplicação irrestrita da teoria da eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais e a não aplicação direta de tais direitos aos particulares. Para esses teóricos, uma solução seria aplicar os direitos fundamentais apenas diante de relações desigualitárias entre particulares, a exemplo da relação entre empregado e empregador.

Por outro lado, fala-se em menor intensidade da vinculação das entidades privadas, que deveria variar de acordo com a desigualdade da situação concreta, “sendo mais intensa quanto maior fosse o poder social em causa, afirmando-se, assim, uma vinculação das entidades dotadas de grande ‘poder privado’ praticamente similar à do Estado” (PINTO, 2007, 154).

Outra posição doutrinária defende que a aplicação dos direitos fundamentais se faça através das normas de direito privado que contenham cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, “que deveriam assim ser interpretados em conformidade e preenchidos de acordo com os direitos fundamentais”, aplicando-se diretamente tais direitos apenas para proteger o núcleo irrenunciável da dignidade da pessoa humana (PINTO, 2007, 154-155).

Paulo de Mota Pinto, por sua vez, defende que a aplicação das normas que consagram direitos fundamentais deve ocorrer, em primeira linha, através das normas de direito privado, “quer elas se limitem a reproduzir o teor das normas constitucionais, quer contenham conceitos indeterminados ou cláusulas gerais, a preencher e concretizar segundo os valores constitucionais consagrados, e, em particular, numa atividade de ‘interpretação conforme aos direitos fundamentais’” (PINTO, 2007, 155).

Segundo Pinto, apenas nos casos excepcionais, quando não há norma de direito privado a ser aplicada ou cláusula geral ou conceito indeterminado ao qual recorrer, ou mesmo quando é necessário afastar a aplicação da norma privada por estar em confronto com a constituição, apenas nesses casos e por meio de decisão robustamente fundamentada, poderia se recorrer à aplicação direta das normas constitucionais às relações de direito privado.

O Tribunal Constitucional Português não tem orientação clara sobre o problema. São poucos os casos, pois o controle de constitucionalidade do Tribunal Constitucional português é apenas um controle de normas e não de decisões administrativas ou judiciais. Ou seja, o Tribunal limita-se à atividade do legislador. Apenas de maneira indireta pode surgir a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no Tribunal Constitucional Português:  no controle difuso de constitucionalidade.

Vale a pena, contudo, elencar alguns acórdãos importantes sobre a temática:  i. Acórdão 198/85, que reconhece eficácia entre os particulares do direito do segredo de correspondência; ii. Acórdão 359/91, que declarou inconstitucional o tratamento diferenciado de crianças nascidas fora do casamento; iii. Acórdão 275/02, que declarou inconstitucional a exclusão do direito dos familiares de reclamar danos morais por morte de parente no caso de homicídio doloso, aplicando o princípio da proteção da família (incluindo a família de fato) em conjugação com o princípio da proporcionalidade; iv. Acórdão 153/90, que considerou  inconstitucional o regulamento dos correios que vedava compensação do consumidor por atraso na entrega; v. Acórdãos 411/13 e 510/96, que declararam  inconstitucional a exclusão da execução que ultrapasse o requisito de garantia do mínimo existencial do devedor; vi. Acórdãos 318/99 e 62/02, que declararam  inconstitucional a penhora de créditos de pensões sociais menores que o salário mínimo ou o rendimento mínimo garantido, fundamentado na dignidade da pessoa humana (PINTO, 2007, 157-162).

Em linhas de conclusão, ressalta-se que a experiência portuguesa de utilização do controle de normas pela jurisdição constitucional parece mostrar, de modo particularmente claro, que, logo pela via da vinculação dos direitos fundamentais do “legislador de direito privado” e da jurisdição, se pode também conseguir resultados que, em grande medida, se aproximam daqueles visados por uma solução de ‘eficácia imediata em relação a terceiros’ dos direitos fundamentais – isso é, por uma eficácia imediata e ‘horizontal’, nas relações entre particulares” (PINTO, 2007, 163).

Espero que tenham aproveitado o passeio até Portugal, por hoje ficamos por aqui.

Sigamos sempre com foco, força e fé.

Até breve,

PINTO, Paulo Mota. ​Os direitos, liberdades e garantias no âmbito da relação entre particulares,  in AAVV, coord. António Pinto Monteiro, Jörg Neuner e Ingo Wolfgang Sarlet,  Direitos Fundamentais e Direito Privado – Uma perspectiva de Direito Comparado, Coimbra, Almedina, 2007.  pp. 241 a 163.

Chiara Ramos

Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito. 

 

 

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