É verdade que o STF decidiu que uma decisão exarada na audiência de custódia pode fazer coisa julgada material?

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10 de agosto4 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo?

Se o edital do seu concurso tem processo penal no conteúdo programático, há enormes chances de ser cobrado – direta ou indiretamente – seu conhecimento acerca do instituto da audiência de custódia, tanto nos aspectos gerais, como também associando a decisões e compreensões exaradas pelas Cortes Superiores.

Portanto, antes de anotarmos algumas considerações acerca de um caso concreto apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, entendo ser pertinente realizar rápida e pontual revisão sobre o panorama geral das audiências de custódia no Brasil.

De acordo com a norma em vigor, as audiências de custódia devem se materializar imediatamente após a apresentação do preso ao juiz (prazo de 24 horas), quando será oportunizado sua oitiva, viabilizando ao autuado informar ao juiz suas razões sobre o fato a ele atribuído e as circunstâncias do seu encarceramento até ali. Trata-se, pois, também de mecanismo de controle judicial acerca da licitude das prisões.

Inserida no Código de Processo Penal apenas com o advento da Lei 13.964/19 (Lei Anticrime), a audiência de custódia já fazia parte do ordenamento jurídico brasileiro na Resolução 213/15 do CNJ, obedecendo ao comando do item 5, artigo 7°, do Pacto de São José da Costa Rica. O STF também já reconhecia expressamente em favor do autuado preso em flagrante (ADI 5240/SP[1]).

De forma mais ampla, a audiência de custódia ou interrogatório de garantia pode ser compreendida como uma autodefesa do suposto autor do fato. Com isso, o juiz pode melhor decidir a providência cautelar cabível e sua proporcionalidade (art. 282, CPP), notadamente em relação às medidas que implicam certa restrição da liberdade.

Ostenta, pois, dupla finalidade: (i) proteção da integridade física do preso e (ii) constatação, de acordo com o caso concreto, da necessidade de manutenção da prisão. Na prisão em flagrante o juiz avalia essas duas faces; no caso de mandado de prisão temporária, preventiva ou definitiva, apenas a proteção da integridade física do preso, não havendo espaço para analisar o mérito da prisão.

O caminho normal é que o preso seja apresentado ao juiz, mas o §4º, art. 1º da Res. 213/15 do CNJ estabelece que “estando a pessoa presa acometida de grave enfermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentada ao juiz no prazo do caput, deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ela se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação”.

PROVIDÊNCIAS A SEREM ADOTADAS PELO JUIZ (incisos do art. 310, CPP)
(1) Relaxar a prisão, se eivada de ilegalidade;

(2) Se presentes os requisitos do art. 312, CPP, converter a prisão em flagrante, fundamentadamente (arts. 312, §2º e 315, CPP), em prisão preventiva, se insuficiente ou inadequada outra medida cautelar menos gravosa ao agente (art. 319, CPP).

(3) Conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, atendidos os respectivos requisitos legais. Nada impede a concessão de liberdade provisória sem qualquer vinculação, quando desnecessária a aplicação de medida cautelar cumulativa (art. 319, CPP).

Realizado esse retrospecto, vamos ao cenário de fundo específico proposto no objeto do presente texto.

No caso concreto, o juiz de plantão analisou o Auto de Prisão em Flagrante (APF) e considerou que não havia indícios dos crimes de associação criminosa (art. 288 CPB) e corrupção de menores (ECA), determinando o relaxamento da prisão.

Contudo, com o prosseguir o procedimento investigatório, o MP ofereceu denúncia, por entender que havia reunido indícios suficientes de autoria e materialidade.

Diante desse cenário, a defesa requereu trancamento do processo, por entender estar diante de um constrangimento ilegal, afinal o juízo da custódia apontou pela ATIPICIDADE dos fatos ali verificados. Considerando que o Ministério Público não recorreu do relaxamento, a atipicidade usada como fundamento teria se consolidado (coisa julgada). Estaríamos diante de uma denúncia baseada somente em provas obtidas mediante uma prisão “reconhecidamente ilegal por conta da atipicidade dos fatos que a motivaram”.

Isso está certo, Pedro?

NÃO! Conforme deliberado recentemente pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (HC 157.306[2]), a decisão de juiz em audiência de custódia é uma decisão de mero juízo de verossimilhança e não faz coisa julgada material, nem habilita a parte a, com base nessa decisão, pedir o trancamento do processo penal.

De acordo com o Relator (Min. Fux), o juízo plantonista apontou a atipicidade da conduta em sede de audiência de mera apresentação, utilizando-a apenas como fundamento opinativo para o relaxamento da prisão dos envolvidos. O Ministro ainda ressaltou que por se tratar de mero juízo de garantia, a decisão na audiência de custódia deveria ter se limitado a regularidade da prisão, uma vez que o juiz plantonista era absolutamente incompetente para apreciação do mérito do caso.

Isso aqui ainda vai pegar muita gente! Espero que vocês tenham gostado e, sobretudo, compreendido.

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

[1] Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO CONJUNTO 03/2015 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. 1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o Juiz de primeira instância, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional. 5. As disposições administrativas do ato impugnado (artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11), sobre a organização do funcionamento das unidades jurisdicionais do Tribunal de Justiça, situam-se dentro dos limites da sua autogestão (artigo 96, inciso I, alínea a, da CRFB). Fundada diretamente na Constituição Federal, admitindo ad argumentandum impugnação pela via da ação direta de inconstitucionalidade, mercê de materialmente inviável a demanda. 6. In casu, a parte do ato impugnado que versa sobre as rotinas cartorárias e providências administrativas ligadas à audiência de custódia em nada ofende a reserva de lei ou norma constitucional. 7. Os artigos 5º, inciso II, e 22, inciso I, da Constituição Federal não foram violados, na medida em que há legislação federal em sentido estrito legitimando a audiência de apresentação. 8. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem e o Código de Processo Penal, posto ostentarem eficácia geral e erga omnes, atingem a esfera de atuação dos Delegados de Polícia, conjurando a alegação de violação da cláusula pétrea de separação de poderes. 9. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADEPOL, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da categoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, inciso IX, da CRFB). Precedentes. 10. A pertinência temática entre os objetivos da associação autora e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade é inequívoca, uma vez que a realização das audiências de custódia repercute na atividade dos Delegados de Polícia, encarregados da apresentação do preso em Juízo. 11. Ação direta de inconstitucionalidade PARCIALMENTE CONHECIDA e, nessa parte, JULGADA IMPROCEDENTE, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país (ADI 5240, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015).

[2] HC 157306, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/09/2018.

 

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