Por Valerio de Oliveira Mazzuoli e Fernando César Costa Xavier
O Brasil ratificou, em 2015, o chamado Tratado de Marraquexe para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas Cegas [1], que veio à luz para possibilitar às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades de leitura o acesso ao conteúdo de livros originalmente impressos.
No plano internacional, o texto foi aprovado em junho de 2013, no âmbito da conferência diplomática da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) realizada na cidade marroquina que lhe dá o nome.
A matéria veiculada no tratado é claramente atinente a direitos humanos, recordando-se no seu primeiro considerando “os princípios da não discriminação, de igualdade de oportunidades, de acessibilidade e de participação e inclusão plena e efetiva na sociedade, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.
O instrumento representa o culminar das lutas empreendidas pelas pessoas cegas, com deficiência visual ou outras dificuldades de leitura (por exemplo, dislexia) para ter amplo acesso à cultura, para o que retira direitos autorais (limitando o sistema de copyright) em prol da garantia de leitura acessível a essa categoria de pessoas.
O Tratado de Marraquexe, conforme fica claro, busca implementar mecanismos de inclusão e acessibilidade aos benefícios da cultura, das artes e das ciências para as pessoas com incapacidade visual ou com outras dificuldades para acessar textos impressos [2].
Esse ato internacional vem ao encontro da chamada “fome de livro” (book famine), uma vez que menos de 1% dos livros impressos publicados no mundo são também publicados em formatos acessíveis para essa categoria de pessoas [3].
Ademais, não bastasse a relevância moral de seu conteúdo, vale lembrar que a proposta de elaboração do tratado partiu, dentre outros, do governo brasileiro [4]. O fato de haver sido assinado por 51 Estados ainda na conferência diplomática, indicando um amplo reconhecimento para com o acerto da proposta, há de ser visto como um ponto positivo na atuação da diplomacia brasileira.
Para além do valor moral e político, o Tratado também possui aspectos juridicamente relevantes. O primeiro é que admite que leis de direitos autorais antiquadas podem ser usadas como barreiras para o acesso das pessoas com deficiência visual à informação impressa, dificultando que um número amplo de obras seja convertido e distribuído em formato mais acessível.
Ante isso, sem deixar de reconhecer que a proteção dos direitos autorais é uma forma de recompensa ao processo criativo dos autores e editores, pondera a necessidade de ampliar, de forma inclusiva, o contingente de leitores. O Tratado garante, no entanto, que a limitação de direitos autorais destina-se apenas à garantia de leitura dessa categoria de pessoas, não para terceiros que podem perfeitamente ler.
O segundo aspecto, mais importante, é que o Brasil aprovou o Tratado na forma qualificada prevista no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, conforme o Projeto de Decreto Legislativo 347/2015 do Senado Federal (57/2015, na Câmara dos Deputados) [5].
Com o vigor internacional do Tratado (marcado para 30 de setembro de 2016), o Brasil passa a ter mais um instrumento com equivalência de emenda constitucional — o terceiro tratado com nível hierárquicoformalmente constitucional no Brasil, que vem somar-se à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e pelo seu Protocolo Facultativo, ambos aprovados por maioria congressual qualificada em 2009 (promulgados pelo Decreto 6.949/2009).
Assim, percebe-se a importância para o Brasil das convenções internacionais de proteção das pessoas com deficiência. De fato, todos os tratados até agora aprovados com “equivalência de emenda constitucional” no Brasil dizem respeito às pessoas com deficiência (o último, relativo à deficiência visual).
Que o parlamento federal brasileiro possa atribuir a mais tratados de direitos humanos essa supremacia hierárquica prevista na Constituição, garantindo-lhes serem paradigmas dos controles difuso e concentrado de convencionalidade das leis.
Referências
[1] Conferir: http://www.brasil.gov.br/cultura/2015/12/brasil-entrega-ratificacao-ao-tratado-de-marraqueche
[2] Conforme o art. 3º do tratado, “[s]erá beneficiário toda a pessoa: a) cega;b) que tenha uma deficiência visual ou uma incapacidade de percepção ou de leitura que não possa ser melhorada para alcançar uma função visual substancialmente equivalente à de uma pessoa que não tenha esse tipo de deficiência ou dificuldade, e para quem é impossível ler material impresso de uma forma substancialmente equivalente à de uma pessoa sem essa deficiência ou dificuldade; c) que não possa de outra forma, por uma incapacidade física, segurar ou manipular um livro ou focar ou mover os olhos na medida normalmente considerada apropriada para a leitura, independentemente de outras incapacidades”.
[3] WECHSLER, Andrea. WIPO’s Global Copyright Policy Priorities: The Marrakesh Treaty to Facilitate Access to Published Works for Persons Who Are Blind, Visually Impaired, or Otherwise Print Disabled. In: HERRMANN, Christoph; KRAJEWSKI, Markus; TERHECHTE, Jörg Philipp (eds.). European Yearbook of International Economic 2015. Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag, 2015, p. 391-406.
[4] A proposta foi feita em conjunto pelo Brasil, Paraguai, Equador, Argentina, México e outros países da América Latina e Caribe. Veja-se:http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/agenciabrasil/noticia/2013-06-28/assinado-tratado-para-facilitar-acesso-de-pessoas-com-deficiencias-visuais-leitura
[5] Conferir: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=178051&tp=1
Fonte: www.conjur.com.br
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