1 INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, publicada na edição do dia seguinte do Diário Oficial da União, introduziu a importunação sexual como crime no ordenamento jurídico brasileiro, ao mesmo tempo revogando a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, prevista no art. 61 do Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). O novo tipo penal tem, agora, a seguinte redação:
Importunação sexual
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
O delito decorre do crescente número de atos de natureza libidinosa praticados contra a dignidade sexual de terceiros, inclusive em locais públicos. Em 29 de agosto[2] e em 2 de setembro de 2017[3], por exemplo, o mesmo cidadão foi preso duas vezes após praticar masturbação, ejacular e esfregar seu órgão genital contra duas vítimas mulheres, passageiras de ônibus coletivos na capital paulista. A evidente repercussão social negativa de fatos da mesma espécie movimentou o legislador até a edição da norma penal, sancionada, por acaso, pelo ministro José Antonio Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal no exercício da Presidência da República.
2 CONDUTA PROIBIDA
A conduta penalmente vedada consiste em praticar, contra alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Ato libidinoso é aquele de natureza sexual, podendo configurá-lo o gesto, a masturbação, o beijo, a carícia ou mesmo o toque lascivo, desde que não consentidos.
Não se exige a participação da vítima no ato libidinoso para a consumação do crime. Basta que o ato lascivo seja realizado pelo agente, embora dirigido contra a vontade ou a liberdade sexual do sujeito passivo, de qualquer sexo, e sem a sua concordância ou o seu consentimento.
3 SANÇÃO PENAL
A pena da importunação sexual é a reclusão de um a cinco anos, se o ato não constituir crime mais grave. Trata-se, tecnicamente, de crime, na forma do art. 1º do Decreto-lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei de Introdução do Código Penal), não sendo possível a aplicação da transação penal ou da suspensão condicional do processo, próprias das infrações penais de menor potencial ofensivo, previstas nos arts. 76 e 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
É de se destacar, ainda, a subsidiariedade do delito, por força da segunda parte do respectivo preceito secundário (“se o ato não constitui crime mais grave”). Significa dizer que, caso a prática do ato libidinoso indevido contra terceiro configure elementar de crime mais grave, como o estupro, do art. 213 do Código Penal – o qual requer, além do ato lascivo, o constrangimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça –, este será consumado, absorvendo o crime do art. 215-A.
4 BEM JURÍDICO TUTELADO
A liberdade sexual, que dá nome ao capítulo no qual se insere o crime, é o bem jurídico protegido pela norma penal. Assim, ao tempo em que se protege o livre exercício da sexualidade, também é tutelada a intimidade dos indivíduos, que podem e devem escolher se, quando, como e com quem vão se relacionar sexualmente.
5 SUJEITOS
Sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, o mesmo pode ser dito do sujeito passivo. Não há requisitos legais restritivos ao autor ou à vítima da importunação sexual, que, portanto, podem ser pessoas de qualquer sexo ou opção sexual.
6 VOLUNTARIEDADE
O tipo do art. 215-A do Código Penal exige o dolo do agente para a realização da conduta proibida. Importa dizer que a lei reclama, para a consumação do crime, a vontade livre e consciente do autor quando da prática do ato libidinoso indevido contra a vítima. Some-se a isso a exigência, também de ordem legal, do dolo especial ou do fim especial de agir do sujeito ativo, consistente no “objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
Tais pressupostos estão a eliminar a possibilidade de cometimento do crime por culpa, em sentido estrito (imprudência, negligência ou imperícia), ou na ausência da intenção lasciva, carnal, erótica, sensual ou libertina do suposto autor.
Desse modo, nem todo contato do agente com o seu órgão sexual, por exemplo, consumará a infração penal, ainda que ocorrido em público. É absolutamente necessário, à incriminação da conduta, que o faça visando a obter aquelas finalidades (dolo genérico de praticar o ato libidinoso, somado ao dolo específico de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro).
Por isso, são requisitos da importunação sexual: (a) a prática dolosa do ato libidinoso, (b) a ausência de anuência da vítima e (c) a finalidade especial do agente de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro, v.g., como a de um observador externo.
7 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O crime é do tipo formal, consumando-se com a prática do ato de natureza lasciva pelo agente, em oposição à vítima, com a finalidade especial de satisfazer seu desejo sexual ou o de terceiro. Não se reclama, para sua perfeita conformação, qualquer espécie de contato do autor com o sujeito passivo ou dano efetivo à vítima, ainda que de ordem moral.
É cabível a tentativa de importunação sexual quando, iniciada sua execução, o delito não se consumar por circunstâncias alheias à vontade do agente (Código Penal, art. 14, inciso II). Basta imaginar a hipótese de o infrator iniciar a prática do ato libidinoso, como a masturbação, em direção à vítima e ser abordado pela polícia antes mesmo de o perceber a pessoa contra quem se dirigia a importunação. Recorde-se, a propósito, que, havendo somente a tentativa do delito, esta será punida com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços (Código Penal, art. 14, parágrafo único).
8 AÇÃO PENAL
No caso do crime de importunação sexual, a ação penal é pública incondicionada, segundo a atual redação do art. 225 do Código Penal, igualmente modificado pela Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que instituiu o delito em apreço. Nesse sentido, incumbem à autoridade policial e ao ministério público atuarem de ofício, independentemente de provocação, para investigar a infração e processar o respectivo autor perante o juízo competente.
9 COMPETÊNCIA E PROCEDIMENTO
Em regra, a competência para julgar o delito do art. 215-A do Código Penal será da Justiça Estadual, ressalvando-se, contudo, as hipóteses de competência da Justiça Federal, como a prevista no art. 109, inciso IX, da Constituição Federal (“os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar”).
Em qualquer caso, o procedimento será o comum ordinário, dedicado aos crimes cuja sanção máxima cominada é igual ou superior a quatro anos de pena privativa de liberdade (Código de Processo Penal, art. 394, § 1º, inciso I).
10 CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS
O delito de importunação sexual só possui tipificação na sua forma fundamental, constante art. 215-A do Estatuto Repressivo, não havendo previsão de outras formas qualificadas, privilegiadas ou equiparadas do crime, nem, também, causas especiais de aumento ou diminuição de pena para além daquelas previstas no Capítulo IV – Disposições gerais, do Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual, da Parte Especial do Código Penal, a saber:
Aumento de pena
Art. 226. A pena é aumentada:
I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;
III – (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
IV – de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado:
Estupro coletivo
- a) mediante concurso de 2 (dois) ou mais agentes;
Estupro corretivo
- b) para controlar o comportamento social ou sexual da vítima.
Em verdade, a Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, modificou substancialmente o art. 226, transcrito, dando nova redação ao seu inciso II, bem como incluindo todo o disposto no inciso IV.
11 CLASSIFICAÇÃO
A importunação sexual pode ser classificada, doutrinariamente, como crime comum (praticado por e contra qualquer pessoa, não se exigindo qualidade especial dos sujeitos), formal (independe de resultado naturalístico que modifique o estado de coisa ou pessoa), de forma livre (pode ser praticado de qualquer maneira), de dano (sua consumação exige a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado), comissivo (requer conduta ativa do agente), instantâneo (a consumação encerra-se com a prática do primeiro ato libidinoso indevido), unissubjetivo (demanda somente um autor, embora admita outras formas de participação) e plurissubsistente (de conduta fracionável).
12 DISTINÇÕES
O art. 218-A do Código Penal tipifica o delito de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, com a redação a seguir:
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
A conduta reprimida pelo dispositivo transcrito é muito próxima daquela prevista na importunação sexual. Todavia, o crime do art. 215-A do Estatuto Repressivo é praticado contra sujeito passivo comum (“alguém”), ao passo que a satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente requer, como vítima, “alguém menor de 14 (catorze) anos”.
A distinção entre ambas as infrações penais, portanto, faz-se com recurso ao princípio da especialidade penal: havendo a prática de ato libidinoso contra menor de quatorze anos, sem a sua anuência, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro, tem lugar o art. 218-A do Código Penal, cujas elementares são mais específicas do que as previstas, para a hipótese, na redação do art. 215-A da mesma lei incriminadora.
Gustavo Paulo Leite de Souza[1]
[1] Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Professor de Direito Penal e Processual Penal. Delegado de Polícia Federal.
[2] MULHER sofre assédio sexual dentro de ônibus na Avenida Paulista. G1 SP, 29 ago. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mulher-sofre-assedio-sexual-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.ghtml>. Acesso em: 26 set. 2018.
[3] ROSA, André; TOMAZ, Kleber; REIS, Vivian. Homem solto após ejacular em mulher em ônibus é preso de novo ao atacar outra passageira. G1 SP, 2 set. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-e-preso-suspeito-de-ato-obsceno-contra-mulher-em-onibus-3-caso-em-sp.ghtml>. Acesso em: 26 set. 2018.
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