Imunidade dos Estados estrangeiros nos processos de conhecimento e de execução trabalhistas

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20 de outubro7 min. de leitura

Ao contratarem nacionais em território brasileiro, o Estado estrangeiro está atuando no exercício de seu jus gestiones, assim entendidos como aqueles em que o Estado estrangeiro atua em matéria estritamente privada, equiparando-se ao particular, como é o caso de aquisição de bens e contratação de empregados. Nestes casos, não há imunidade de jurisdição no processo de conhecimento.

Quanto ao processo de conhecimento o entendimento atual é pela ausência de imunidade de jurisdição quando se tratar de uma relação trabalhista regida pelas normas do direito material local. Não há imunidade de jurisdição, pois a natureza do ato é de gestão.

No Brasil, o STF já assentou o entendimento de que não há imunidade de jurisdição contra Estado estrangeiro em matéria trabalhista (RTJ 133/159 e RTJ 161/643-644). O caso Genny de Oliveira (STF, ACi 9.696, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 12.10.1990) é considerado o leading case na matéria e foi a primeira vez que o STF deixou de aplicar a imunidade absoluta de jurisdição por considerar que em determinadas situações, como em questões trabalhistas, deve-se permitir que o particular acione o Estado estrangeiro, independentemente do consentimento deste último. Também neste sentido:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – ESTADO ESTRANGEIRO – RECLAMAÇÃO TRABALHISTA AJUIZADA POR EMPREGADOS DE EMBAIXADA – IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO – CARÁTER RELATIVO – RECONHECIMENTO DA JURISDIÇÃO DOMÉSTICA DOS JUIZES E TRIBUNAIS BRASILEIROS – AGRAVO IMPROVIDO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. CONTROVÉRSIA DE NATUREZA TRABALHISTA. COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, quando se tratar de litígios trabalhistas, revestir-se-á de caráter meramente relativo e, em consequência, não impedira que os juízes e Tribunais brasileiros conheçam de tais controvérsias e sobre elas exerçam o poder jurisdicional que lhes e inerente. ATUAÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO EM MATÉRIA DE ORDEM PRIVADA. INCIDÊNCIA DA TEORIA DA IMUNIDADE JURISDICIONAL RELATIVA OU LIMITADA. – O novo quadro normativo que se delineou no plano do direito internacional, e também no âmbito do direito comparado, permitiu – ante a realidade do sistema de direito positivo dele emergente – que se construísse a teoria da imunidade jurisdicional relativa dos Estados soberanos, tendo-se presente, para esse especifico efeito, a natureza do ato motivador da instauração da causa em juízo, de tal modo que deixa de prevalecer, ainda que excepcionalmente, a prerrogativa institucional da imunidade de jurisdição, sempre que o Estado estrangeiro, atuando em matéria de ordem estritamente privada, intervier em domínio estranho aquele em que se praticam os atos jure imperii. Doutrina. Legislação comparada. Precedente do STF. A teoria da imunidade limitada ou restrita objetiva institucionalizar solução jurídica que concilie o postulado básico da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro com a necessidade de fazer prevalecer, por decisão do Tribunal do foro, o legitimo direito do particular ao ressarcimento dos prejuízos que venha a sofrer em decorrência de comportamento imputável a agentes diplomáticos, que, agindo ilicitamente, tenham atuado more privatorum em nome do País que representam perante o Estado acreditado (o Brasil, no caso). Não se revela viável impor aos súditos brasileiros, ou a pessoas com domicilio no território nacional, o ônus de litigarem, em torno de questões meramente laborais, mercantis, empresariais ou civis, perante tribunais alienígenas, desde que o fato gerador da controvérsia judicial – necessariamente estranho ao especifico domínio dos acta jure imperii – tenha decorrido da estrita atuação more privatorum do Estado estrangeiro. OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E A DOUTRINA DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO RELATIVA OU LIMITADA. Os Estados Unidos da América – parte ora agravante – já repudiaram a teoria clássica da imunidade absoluta naquelas questões em que o Estado estrangeiro intervém em domínio essencialmente privado. Os Estados Unidos da América – abandonando a posição dogmática que se refletia na doutrina consagrada por sua Corte Suprema em Schooner Exchang v. McFaddon (1812) – fizeram prevalecer, já no inicio da década de 1950, em típica declaração unilateral de caráter diplomático, e com fundamento nas premissas expostas na Tate Letter, a conclusão de que “tal imunidade, em certos tipos de caso, não devera continuar sendo concedida”. O Congresso americano, em tempos mais recentes, institucionalizou essa orientação que consagra a tese da imunidade relativa de jurisdição, fazendo-a prevalecer, no que concerne a questões de índole meramente privada, no Foreign Sovereign Immunities Act (1976). […] (AI 139671 AgR, Relator(a):  Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 20/06/1995, DJ 29-03-1996 PP-09348, Ementário Volume-01822-02 PP-00375)

Em decisão mais recente o STF decidiu que o Estado estrangeiro “não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista”, sendo que “o privilégio resultante da imunidade de execução não inibe a justiça brasileira de exercer jurisdição nos processos de conhecimento instaurados contra Estados estrangeiros” (RE nº 222.368, Rel. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 30.4.2002).

Vale lembrar que em se tratado de atos de império, ou seja, aqueles praticados no exercício de suas prerrogativas soberanas, o Estado possui imunidade absoluta de jurisdição, o que não é o caso da contratação de trabalhadores para exercer atividades meramente técnicas, sem qualquer especificidade consular ou diplomática.

Já em relação ao processo de execução há de se salientar a existência de regra internacional prevendo expressamente a inviolabilidade dos bens do Estado. Com efeito, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e a Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), às quais o Brasil aderiu como signatário, asseguram, em seus artigos, a inviolabilidade dos bens que estejam afetos à missão diplomática e consular.

No processo de execução trabalhista somente haverá imunidade de jurisdição na fase executória se os bens estiverem afetados às atividades diplomáticas e consulares, de modo que, havendo bens não afetados, eles se submeterão à execução trabalhista (TST-ROMS 28200-14.2003.5.10.000; Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva. DJ 16.08.2005). Por isso é que no processo de execução trabalhista a imunidade de jurisdição reconhecida aos Estados estrangeiros tem natureza relativa.

Portanto, em regra, ainda que o Estado estrangeiro se submeta à jurisdição brasileira em matéria trabalhista, isto não se estende ao processo de execução, em relação ao qual só haverá jurisdição do Estado brasileiro em duas situações: a) renúncia expressa ao processo de execução; b) prova de que os bens cuja constrição se pretende estão desafetados, pois os bens afetados estão salvaguardados pela cláusula de inviolabilidade.

Como o assunto foi cobrado em concurso?

(TRT 2º Região – Juiz do Trabalho – 2009 – Banca Própria – Adaptada) Julgue os itens abaixo:

I – O estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição nas causas trabalhistas, pois essa prerrogativa de Direito Internacional Público tem caráter apenas relativo, segundo entendimento já sufragado pelo Supremo Tribunal Federal.

II – O silêncio do Estado-réu, que não atende ao chamamento judicial, é bastante para configurar, nos termos de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, renúncia à imunidade de jurisdição.

Gabarito: V, F

Assim, será perfeitamente possível executar a sentença se tiver o Estado bens no país que não estejam ligados à representação diplomática ou consular (bens desafetados), caso em que o ônus da prova quanto à afetação é do exequente, conforme atual entendimento da SbDI-2 do TST:

RECURSOS ORDINÁRIOS EM MANDADO DE SEGURANÇA. 1. UNIÃO. REQUERIMENTO DE INTERVENÇÃO COMO ASSISTENTE SIMPLES. DEFERIMENTO. Trata-se de mandado de segurança em que se discute a legalidade de penhora que recaiu sobre imóvel dos Estados Unidos da América, centrando-se o debate sobre o caráter absoluto ou relativo da imunidade de jurisdição conferida aos Estados estrangeiros. Considerando, pois, o tema em debate, bem como o princípio da reciprocidade que orienta as relações entre Estados estrangeiros, inequívoco o interesse jurídico da União para intervir na lide na condição de assistente simples dos Estados Unidos da América, na forma do artigo 50, parágrafo único, do CPC c/c art. 769 da CLT. 2. ESTADO ESTRANGEIRO. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO A PENHORA. CABIMENTO. Em face da imunidade de jurisdição de que são beneficiários os estados estrangeiros, resultante de regra costumeira de direito internacional (“par in parem non habet iudicium”), não se pode exigir que a discussão acerca da licitude do ato de apreensão patrimonial, determinada pela autoridade judiciária nacional, seja deduzida em sede de embargos à penhora. Afinal, se os atos de apreensão patrimonial pressupõem a própria possibilidade de atuação da jurisdição nacional, a qual apenas se legitima sobre bens não afetados às atividade de representação do Estado estrangeiro, não há como excluir o debate em questão da via especial do mandado de segurança, na linha da jurisprudência da Excelsa Corte e deste Tribunal Superior do Trabalho. 3. ESTADO ESTRANGEIRO. PENHORA DE IMÓVEL. PROVA DA AFETAÇÃO À ATIVIDADE DIPLOMÁTICA OU CONSULAR NÃO PRODUZIDA. IMPOSSIBILIDADE DE ULTIMAÇÃO DOS ATOS DE EXPROPRIAÇÃO. Na linha da jurisprudência do TST, coerente com as modernas correntes doutrinárias do Direito Internacional Público, em execução de sentença, a imunidade de jurisdição reconhecida aos Estados estrangeiros detém caráter relativo. Nesse cenário, apenas os bens vinculados ao exercício das atividades de representação consular e diplomática estarão imunes à constrição judicial, não havendo, portanto, em relação a eles, e apenas em relação a eles, possibilidade de atuação do Poder Judiciário nacional. No caso examinado, foi determinada a penhora de imóvel, em razão de presunção de não afetação à atividade de representação diplomática ou consular, extraída do silêncio do ente estrangeiro executado, que fora regularmente intimado para manifestação pela via diplomática. O exame dos autos originários revela a juntada pela exequente de documentos que tão somente atestam a propriedade dos imóveis, inexistindo, contudo, prova inequívoca de que o bem atingido pelo gravame está ou não afetado à missão diplomática ou consular da pessoa jurídica de direito público externo. Nesse contexto, por força do disposto no art. 22 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, não se revela possível prosseguir na expropriação do referido bem, devendo ser interrompidos os atos de expropriação, que apenas poderão ser retomados se demonstrado, de forma inequívoca, que o bem não se encontra afetado à missão diplomática ou consular. Ainda que a inércia ou o silêncio do ente estrangeiro, que fora formal e regularmente intimado para manifestação, evidencie postura processualmente censurável e dissentânea dos padrões éticos que devem ser observados nas relações entre estados estrangeiros, é certo que as regras legais que impõem deveres processuais às partes (por exemplo, os artigos 339 e 340 do CPC), e de cujo descumprimento podem ser extraídas presunções, apenas alcançam aqueles que se sujeitam, de forma induvidosa, à jurisdição nacional, o que não ocorre no caso dos autos. Em outras palavras, a cláusula da imunidade de jurisdição, na fase processual do cumprimento da sentença, apenas poderá ser relevada por meio de renúncia expressa do ente jurídico externo ou se demonstrado pela parte exequente que o bem por ela indicado à apreensão não está efetivamente afetado às atividades de representação do Estado estrangeiro. Não sendo esta a hipótese dos autos, não há como dar curso à execução, com a adoção das medidas de expropriação do bem indevidamente apreendido. Recursos ordinários conhecidos e parcialmente providos. 3. AÇÃO CAUTELAR EM APENSO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Considerando a solução do processo principal, julga-se procedente o pedido deduzido na ação cautelar, confirmando-se a decisão liminar de concessão de efeito suspensivo ao recurso ordinário do Estado estrangeiro e impedindo o prosseguimento da execução na reclamação trabalhista em relação ao imóvel penhorado. Pedido cautelar procedente. (RO-188-04.2014.5.10.0000, Relator Ministro: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 29/09/2015, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 02/10/2015).

No mesmo sentido, dentre várias outras:

[…] Em relação à alegada imunidade absoluta de execução dos entes públicos de direito internacional, ressalta-se que somente os bens vinculados ao exercício das atividades de representação consular e diplomática estão imunes à constrição judicial, de maneira que, em execução de sentença, a imunidade de jurisdição reconhecida aos Estados estrangeiros tem caráter relativo. (ED-RR-643-21.2010.5.11.0019, 2ª Turma, Relatora Ministra Delaide Miranda Arantes, DEJT 26/06/2020).

Em resumo, no processo de execução a imunidade é relativa, pois duas exceções se apresentam: a) se o Estado estrangeiro renuncia expressamente à sua imunidade; b) quando existem bens do Estado, situados em território nacional, que estejam desafetados, ou seja, não protegidos pela inviolabilidade das convenções de 1961 e 1963, cabendo ao exequente o ônus da prova quanto à desafetação.

Como o assunto foi cobrado em concurso?

(TRT 24ª Região – Juiz do Trabalho – FCC – 2014 – Adaptada) Com relação aos órgãos das relações entre os Estados e a imunidade de jurisdição dos Estados julgue os itens abaixo:

I No Brasil, não estão abrangidos pela imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro os bens deste que não estejam afetados à sua representação diplomática e consular, podendo sobre eles recair medida executória de sentença proferida pela Justiça do Trabalho.

II A renúncia, por parte do Estado acreditante, à imunidade de jurisdição do agente diplomático para o processo de conhecimento não implica a renúncia à imunidade em relação ao processo de execução de eventual sentença condenatória.

III A distinção entre atos de império e atos de gestão, de origem consuetudinária, permite afastar a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro em reclamação trabalhista movida no Brasil por funcionário de Missão Diplomática estrangeira aqui contratado, mas não quando a reclamação é movida contra Organização Intergovernamental.

Gabarito: V, V, V

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