Momento Filosofia OAB: Norma individual: Kelsen e a criação judicial do Direito

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Norma individualPor: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Na teoria kelseniana, os juízes assumem um papel indispensável para a criação e aplicação do direito, pois são criadores de normas individuais. Os juízes possuem uma função constitutiva e não só declaratória, como pretendia o extremo formalismo exegético, visto que, devido à proibição do non liquet, devem decidir, mesmo na ausência, incompletude ou ambiguidade da norma geral. Além disto, os magistrados também têm como função resolver os conflitos aparentes entre as normas, inclusive as de mesmo grau, possibilitando, dessa forma, uma melhor clareza, tanto para os destinatários das normas quanto para a ciência do direito.
Conforme já dito, uma ordem jurídica é um sistema escalonado de normas gerais e individuais que estão entre si ligadas pelo fato de que a criação de toda e qualquer norma é determinada por uma outra norma do mesmo sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental. Uma norma pertence a uma determinada ordem jurídica porque foi criada com a determinação de uma norma desta mesma ordem. Estas considerações se referem a uma ordem jurídica estadual, e a comunidade jurídica em vista é, portanto, o Estado. Kelsen afirma que “é o Estado que cria o Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo este ponto de sua teoria também objeto de muitas críticas por aqueles que acreditam que o Estado não detém o monopólio da produção jurídica em um Estado dito pós-moderno, fala-se, então, em pluralismo jurídico, o qual não será nosso objeto, por enquanto.
O que importa ressaltar é que, para Kelsen, a “aplicação do direito é simultaneamente produção do Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo assim, ele supera o formalismo tradicional exegético, que coloca aplicação e criação do direito numa oposição absoluta. Afirma Kelsen que consiste num erro distinguir entre atos de criação e aplicação do direito, exceto os dois casos extremos, o ápice e a base da pirâmide, ou seja, a pressuposição da norma fundamental e a execução do ato coercivo da norma individual. Tirando os extremos, todo ato jurídico é simultaneamente “aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior” (KELSEN, 2000, p. 261). “A norma superior pode não só fixar o órgão pelo qual e o processo no qual a norma inferior é produzida, mas também determinar o conteúdo desta norma” (KELSEN, 2000, p. 261).
Kelsen diferencia o conceito de aplicação do conceito de observância (cumprimento) da norma. Uma norma jurídica é aplicada quando a sanção prescrita é dirigida contra a conduta contrária ao “dever-ser” normativo. Ou seja, uma norma é cumprida quando não é violada, e isso deriva da sua eficácia. Já a observância do direito é, antes de tudo, a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico presente na norma (KELSEN, 2000, p. 263).
A aplicação do direito tanto existe na produção de normas jurídicas gerais, como nas resoluções das autoridades administrativas, como, ainda, nos atos jurídicos negociais. Também os tribunais aplicam as normas jurídicas gerais ao estabelecerem normas individuais, determinadas, quanto ao seu conteúdo, pelas normas que lhes são superiores. O processo de aplicação/criação da norma individual é um “processo de individualização ou concretização sempre crescente” (KELSEN, 2000, p. 263).
Afirma Kelsen:

Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do direito ou júris-“dição” (“declaração” do direito) neste sentido declaratório (KELSEN, 2000, p. 264).

Continua o autor, afirmando que “a norma individual, que estatui que deve ser dirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada só é criada através da decisão judicial” (KELSEN, 2000, p. 265). Ou seja, o fato só entra no domínio do direito quando, diante de um caso concreto, se responde às seguintes questões: qual órgão é competente para ligar a norma geral ao caso concreto e qual o processo determinado pela ordem jurídica para que essa verificação seja feita? Ou seja:

Não é o fato em si de alguém ter cometido um homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica, mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou o homicídio (KELSEN, 2000, p. 267).

 Ou seja, a proposição jurídica não dispõe que, se um indivíduo matou alguém, deve ser aplicada uma determinada pena, mas sim que, se um determinado tribunal competente, num processo determinado pela ordem jurídica, verificou, em decisão definitiva, que determinado indivíduo praticou um homicídio, o tribunal deve mandar aplicar a este indivíduo uma determinada pena (KELSEN, 2000, p. 267). Neste sentido, tanto no caso do julgador condenar como no caso de absolver o acusado, a decisão judicial opera-se em aplicação da norma jurídica vigente.
Kelsen prevê também que o órgão julgador recebe o poder ou a competência para produzir uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é predeterminado por uma norma geral, ou seja, pode ser conferido ao órgão julgador o poder para criação ex novo de direito material. Isso não significa que o judiciário estaria legislando, uma vez que não se trata de norma geral, mas sim de norma individual, válida unicamente para o caso que tem perante si (KELSEN, 2000, p. 271).
A verdade é que a norma jurídica geral não pode prever todas as particularidades dos casos concretos. Assim, no processo de aplicação da norma geral e criação da norma individual, o órgão julgador se depara com elementos que não estão, nem poderiam estar, determinados pela norma geral. Desta forma:

A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual. Mas essa moldura pode ser mais larga ou mais estreita. Ela é o mais larga possível quando a norma jurídica geral positiva apenas contém a atribuição de poder ou competência para a produção da norma jurídica individual, sem preestabelecer o seu conteúdo (KELSEN, 2000, p. 272).

Sobre as lacunas no ordenamento jurídico, Kelsen defende a existência de uma plenitude hermética, ou seja, quando uma ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta. Ou seja, “o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido” (KELSEN, 2000, p. 270). Sendo assim, não existiriam lacunas “reais” no ordenamento jurídico, ou seja, a existência de uma lacuna só é pressuposta quando a ausência de uma norma jurídica é considerada indesejável pelo órgão aplicador do direito, do ponto de vista da política jurídica, e, por isso, afasta-se a aplicação do direito vigente, que permite aquela conduta, por ser considerada pelo órgão aplicador do direito como não equitativa ou desacertada (KELSEN, 2000, p. 273-274).
Kelsen também prevê a possibilidade de os tribunais criarem normas gerais. Para entender tal argumentação, recomendo a leitura do tópico “Criação das normas jurídicas gerais pelos tribunais: o juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica” (KELSEN, 2000, p. 277-283).
Por fim, convém ressaltar que pode parecer, à primeira vista, que a teoria de Kelsen apregoa a existência de um direito destituído de conteúdo axiológico, visto que a norma válida é aquela aplicada ou cumprida devido à ameaça de coação, eliminando, dessa forma, o critério legitimador da democracia, sendo legítimo apenas o direito posto por quem possui o uso da força. Contudo, esta não seria, na nossa opinião, a melhor forma de se interpretar a teoria pura do direito, visto que dizer que uma norma é jurídica não implica dizer que ela é justa ou que exista obrigação moral de obedecê-la. Além do mais, “a legitimidade fundada na mera eficácia do sistema não exclui a possibilidade de exigir que o dito sistema responda ao princípio da soberania popular ou admita certos conteúdos mínimos, que sejam indispensáveis para seu respeito afetivo, segundo a escala de valores que sustentamos” (GUIBOURG, 1986).
 
REFERÊNCIAS
GUIBOURG, Ricardo A. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Chiara Ramos – Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
 


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