Conforme prometido, no artigo de hoje trarei uma proposta pessoal sobre como poderíamos adequar o princípio da legalidade administrativa aos novos paradigmas constitucionais. Vejamos.
Inicialmente entendemos que o próprio sentido de legalidade, no âmbito da Administração Pública, deve ser rediscutido, de forma a adequar-se às exigências de um constitucionalismo garantidor dos direitos fundamentais e adequado à complexidade social. Dito de outra forma, a legalidade deve ser compreendida e relida a partir de uma noção de constituição que promova uma racionalidade transversal entre o sistema político e jurídico, evitando as inconsistências práticas que promovem insegurança jurídica e reprodução de demandas judiciais.
Para tornar compreensível a concepção de constituição transversal que aqui se adota, realizaremos uma breve explanação da proposta do Dr. Marcelo Neves, em sua obra intitulada “Transconstitucionalismo”. Segundo o teórico, como forma a se autopreservar, a sociedade moderna desenvolve mecanismos que possibilitam o aprendizado e a influência recíproca entre as diversas esferas sociais. Contudo, essa interação não pode ser pontual e momentânea (acoplamentos operativos), sendo imprescindível a formação de vínculos estruturais (acoplamentos estruturais) entre os diversos subsistemas sociais (NEVES, 2009, p. 35).
Na teoria de Luhmann, contudo, não seria possível colocar à disposição de um sistema social a complexidade preordenada de outro. E é neste contexto que Marcelo Neves inova ao afirmar que a racionalidade transversal entre esferas autônomas é possível, utilizando o conceito de racionalidade transversal de Welsch (NEVES, 2009, p. 37-38).
Aplicando-se a racionalidade transversal, a justiça serviria para manter a diversidade, a pluralidade do todo, impedindo exclusões e totalização, possibilitando, pois, o intercâmbio entre as diversas racionalidades particulares, e não a sobreposição de uma delas às demais. Uma espécie de comunicação entre sistemas sociais, na qual um aprende com a experiência já vivida e solucionada pelo outro.
Em síntese, unindo o conceito de acoplamento estrutural ao de razão transversal, propomos que a Constituição seja entendida não apenas como um “filtro de irritações e influências recíprocas” entre o sistema jurídico e o político, mas também como “instância da relação recíproca e duradoura de aprendizado e intercâmbio de experiências com as racionalidades particulares já processadas, respectivamente, na política e no direito” (NEVES, 2009, p. 62).
Dessa forma, o princípio da legalidade, no âmbito da Administração Pública, deve ganhar novo significado, atuando como um facilitador da construção das racionalidades particulares que são vinculadas transversalmente pela Constituição, de forma que a racionalidade específica do direito, qual seja a justiça, implique verdadeiramente uma “consistência jurídica” no plano da autorreferência (fechamento normativo) e a “adequação à sociedade” (abertura cognitiva).
Na descrição do caso prático que apresentamos no artigo anterior, teríamos o Poder Judiciário como pertencente ao sistema jurídico, e a Administração Pública ao sistema político, devendo a legalidade, interpretada de acordo com o paradigma da constituição transversal, funcionar como facilitadora dessa relação recíproca e de aprendizado mútuo entre os dois subsistemas, possibilitando um equilíbrio entre justiça (racionalidade do direito) e democracia (racionalidade da política).
Melhor explicando, entendemos que a racionalidade do direito exigiria tanto a consistência constitucional (justiça constitucional interna) do sistema (orientação do comportamento e estabilização de expectativas normativas) quanto a adequação social (justiça constitucional externa). Claro que a relação entre justiça interna e externa é um dos paradoxos funcionais do direito, não havendo equilíbrio perfeito entre ambas. Assim descreve Neves:
O excesso de ênfase na consistência jurídico-constitucional pode levar a graves problemas de inadequação social do direito, que perde, então, sua capacidade de reorientar as expectativas normativas e, portanto, de legitimar-se socialmente. Por outro lado, um modelo de mera adequação social leva a um realismo juridicamente inconsistente. Na falta de valores, de morais e de interesses partilhados congruentemente na sociedade moderna supercomplexa, a ênfase excessiva na adequação social tende a levar a subordinação do direito a projetos particulares com pretensão de hegemonia absoluta (NEVES, 2009, p. 65).
Dito isso, propomos que o princípio da legalidade estrita seja compreendido a partir da concepção de constituição transversal, permitindo que se supere o abismo entre a atuação da Administração Pública e o entendimento jurisprudencial acerca da constitucionalidade da aplicação de alguns dispositivos legais, de forma que se aproveite a racionalidade específica do sistema jurídico pelo político e vice-versa, evitando a multiplicação de demandas judiciais, que prejudicam a consistência do ordenamento jurídico.
Para tanto, entendemos que a atuação da Administração Pública não deve se pautar exclusivamente na literalidade da lei, mas sim na sua interpretação conforme a Constituição. Mais ainda, lançamos uma proposta extremamente ousada, qual seja: a possibilidade de a Administração Pública afastar a aplicação de lei (sempre em sentido amplo) que esteja em desconformidade com os ditames constitucionais, de maneira a equilibrar o paradoxo entre consistência jurídica e adequação social e evitar repetição de demanda.
Contudo, para não se correr o risco de aumentar ainda mais os problemas de consistência jurídica, sobretudo no ordenamento jurídico brasileiro, torna-se imprescindível estabelecer critérios objetivos para que se realize essa interpretação conforme a Constituição pela Administração Pública, de forma a preservar os direitos e garantias fundamentais e reduzir demandas judiciais desnecessárias.
E vocês, o que acham dessa problemática? Alguma outra proposta?
Até mais. Sempre com foco, força e fé.
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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