O indígena como sujeito ativo de crime militar e o erro sobre a ilicitude do fato

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Evidentemente, a lei penal militar sujeita também os indígenas e, a partir deste ponto, duas possibilidades de compreensão do indígena como sujeito ativo de crimes militares em tempo de paz são possíveis: indígena que não é militar da ativa (civil, reformado ou da reserva) e o indígena militar da ativa.

Quanto ao indígena que não é militar da ativa, não há grande complicação na compreensão, bastando dizer que poderá ele praticar o crime militar como, por exemplo, um civil o praticaria, desde que na conduta sejam encontrados os elementos típicos dos crimes em espécie, e haja, obviamente, “encaixe” no inciso III do art. 9º do CPM, e em uma de suas alíneas. Exemplificativamente, é possível compreender um crime militar, praticado por indígena, de violência contra militar de serviço (art. 158 do CPM), quando houver a agressão contra um soldado do Exército na função de sentinela, desde que evidente a intenção de agressão à instituição militar, como exige o caput do inciso III, e considerando que houve agressão contra um militar em serviço de vigilância (art. 9º, III, “d”, CPM).

Claro que em algumas situações a peculiaridade da condição poderá por exemplo, afastar o dolo da conduta, como no caso do desacato a militar (art. 299 do CPM), em que a análise deve ser mais peculiar a depender da condição de compreensão do indígena, que poderá, inclusive importar em erro sobre a ilicitude da conduta.

Uma outra possibilidade é a prática de crime militar por indígena militar da ativa, situação comum, por exemplo, no efetivo militar da Região Amazônica, especialmente – mas não somente –, no caso do serviço militar inicial, que sujeita todos os brasileiros do sexo masculino com 18 anos (alistamento). Sobre o assunto, dispõe André de Carvalho Ramos:

[…]. A obrigatoriedade constitucional de prestação de serviço militar (art. 143) levou o Ministério da Defesa a regular, administrativamente, a incorporação de jovens oriundos das comunidades indígenas, desde que (i) voluntários e (ii) aprovados no processo de seleção, o que implica em não admissão forçada ou obrigatória (Portaria MD/SPEAI/DPE n. 983/2003 e Portaria MD/EME n. 20/2003). Consequentemente, a obrigação do índio não voluntário de apresentar o ‘certificado de alistamento militar’ para realização de alistamento eleitoral deve ser amenizada. Contudo, como vimos, o Tribunal Superior Eleitoral ainda exige dos indígenas a obrigatoriedade de comprovação de quitação do serviço militar ou de cumprimento de prestação alternativa como requisito para o alistamento eleitoral[1].

Evidentemente, em estando o indígena na condição de militar da ativa, poderá ser sujeito ativo de crimes militares, próprios (ex.: deserção do art. 187 do CPM) e impróprios (ex.: homicídio do art. 205 do CPM), inclusive extravagantes (ex.: importunação sexual do art. 215-A do CP), nos dois últimos casos também com necessária subsunção mediata a uma das alíneas do inciso II do art. 9º do CPM.

Assenta-se, assim, a premissa de o indígena poder ser sujeito ativo de crimes militares, mas atenção deve ser dada a algumas peculiaridades na resposta penal militar.

Uma vez praticado um crime militar (ou um fato típico descrito como crime militar) por um indígena, na condição de militar da ativa ou não, deve-se ter a cautela de observar algumas peculiaridades, justamente com o objetivo de uma aplicação justa, isonômica da lei penal militar.

Essa necessidade, deve-se lembrar, tem força na Convenção n. 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que versa sobre povos indígenas e tribais, promulgada no Brasil, inicialmente, pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004, e que hoje está presente na Consolidação dos atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho, Decreto n. 10.088, de 5 de novembro de 2019.

Neste raciocínio, será abordada a disposição a compreensão sobre o erro de proibição nos casos em que o autor seja indígena.

Tome-se, nesta construção, o exemplo de um agente pertencente a uma comunidade indígena que, marcado por traços culturais profundamente grafados, possui uma compreensão distinta das regras de comportamento social, que poderiam levar à opção pela não prática da conduta considerada típica e ilícita.

Em uma primeira linha, seria possível discutir a inimputabilidade do indígena.

A consolidação das Leis Penais de 1932 equiparava os “índios nômades, arranchados ou aldeiados e os que tenham menos de cinco annos de estabelecimento em povoação indígena” aos menores, para fins de responsabilidade penal, disposição que não foi reproduzida nas seguintes legislações penais e nem na Constituição Federal de 1988[2]. Ainda assim, “os tribunais, sem maiores digressões sobre a questão, julgam eventual inculpabilidade do índio com base na inimputabilidade, aplicando-o apenas aos índios ‘não integrados’”[3].

Nessa linha, por exemplo, compreendeu-se que quando “os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de laudo antropológico” (STJ, T5, HC n. 30.113/MA, rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 16/11/2004) (g.n.).

Parece ser esta a visão do Superior Tribunal Militar ao decidir que o “indígena não é, por presunção jure et de jure, penalmente incapaz. Deve o juiz atender ao grau de integração à sociedade e consciência da ilicitude dos atos praticados” (STM, HC n. 2006.01.034227-3, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 15/08/2006).

Mas uma outra forma de compreensão é possível, atrelada ao erro sobre a ilicitude do fato, o erro de proibição.

Com fulcro no art. 21 do Código Penal (CP), aquele que pratica uma conduta, mas ignora o seu caráter ilícito por um erro inevitável, incorre em erro sobre a ilicitude do fato e, como consequência, será isento de pena.

Mais acertada essa vertente em comparação à anterior, a “aplicação do erro de proibição traduziria a compatibilização do Direito Penal com o respeito constitucional à organização social, costumes, crenças e tradições indígenas, visto que a seleção de condutas para serem reprovadas penalmente é marcadamente cultural, de modo que podem não coincidir com os bens eleitos por uma cultura distinta. Assim, a reprovação imposta pelo Direito Penal só recairia sobre a conduta do índio que conhecesse os valores tutelados pela norma penal e tivesse vontade livre e consciente de transgredir o bem jurídico protegido”[4].

Fundamental, para essa aferição, o exame antropológico, em que o experto, antropólogo, conhecedor das peculiaridades culturais de determinados povos indígenas, possa asseverar o grau de compreensão da ilicitude, em uma verdadeira “tradução cultural” necessária à convicção do ator do Direito Penal, especialmente o membro do Ministério Público e o juiz.

Entretanto, há divergência sobre a obrigatoriedade da existência do laudo antropológico, prevalecendo jurisprudencialmente a ideia – muito criticada, ressalte-se – sobre a suficiência de verificação do “grau de integração” do indígena, que, evidentemente, não se confunde com a complexidade dos elementos culturais que envolvam costumes e crenças religiosas, por exemplo. Mais ainda, esse “grau de integração”, como se observa em alguns julgados, pode ser constatado por elementos puramente objetivos, como se extrai de trecho da decisão do STJ supracitada (HC n. 30.113/MA), em que se asseverou suficientes para afastar a necessidade do laudo “a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa”.

Eleita a via do erro de proibição como a mais adequada, malgrado a tendência jurisprudencial em outro sentido, resta enfrentar um problema peculiar do Direito Penal Militar: o Código Penal Militar (CPM) não possui a realidade do erro de proibição, mas o erro de direito do art. 35, que não isenta de pena.

Há muito, desde 2003, sustentamos que o erro de direito do art. 35 do CPM consiste em resquício indesejável de responsabilidade penal objetiva, propondo-se a adoção, mesmo no Direito Castrense, do art. 21 do CP, o erro sobre a ilicitude do fato[5].

Pelo art. 35 do CPM, a “pena pode ser atenuada ou substituída por outra menos grave quando o agente, salvo em se tratando de crime que atente contra o dever militar, supõe lícito o fato, por ignorância ou erro de interpretação da lei, se escusáveis”.

Embora não idêntico, o parâmetro de comparação no CP é o erro sobre a ilicitude do fato, trazido pelo já citado art. 21, segundo o qual, embora o desconhecimento da lei seja inescusável, o “erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

A disparidade de tratamento é nítida, bastando dizer que a não consciência da ilicitude inevitável no CP permite a isenção de pena, enquanto no CPM, admite-se apenas uma mitigação da culpabilidade, com a aplicação de uma pena mais branda ou a atenuação – e, pior, não se admite em crimes contra o dever militar –, em evidente resquício de responsabilidade penal objetiva, repita-se, onde uma conduta não acompanhada de dolo – tenha-se em mente que pela influência do neokantismo o CPM adotou o dolo normativo (dolus malus) que condensa a consciência da ilicitude, atual e não potencial, como um de seus elementos – ou de culpa – frise-se que mesmo sendo inevitável a falta de consciência haverá a condenação – poderá sofrer apenamento. Por essa razão, no caso concreto, melhor assimilar no Direito Castrense a previsão do art. 21 do CP, alinhando-se ao Direito Penal da culpa.

Que dizer, então, na avaliação da consciência da ilicitude, se o autor do fato for um indígena? Deve-se manter a fidelidade ao CPM?

Ora, se se sustentou que a regra seja a aplicação do art. 21 do CP, muito mais razão, diante do disposto no art. 231 da Constituição Federal, há para sustentar essa possibilidade em caso de autor indígena.

Para além da responsabilidade penal objetiva, que se sustenta ocorrer nos casos de aplicação do art. 35 do CPM, manter a mesma compreensão em relação ao indígena é não respeitar, por exemplo, “os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas” no Estatuto do Índio, como se consigna no já transcrito parágrafo único do art. 1º, e nem alinhar-se ao respeito exigido pela Constituição Federal da “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (art. 231 da CF).

A proposta, assim, é a adoção da lógica do erro de proibição, por exemplo, por analogia in bonam partem, no “Direito Penal Militar Indigenista”, levando à possibilidade, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, de isenção de pena. Muito melhor se essa constatação de inexistência de potencial consciência da ilicitude decorrente do erro estiver arrimada em laudo antropológico, ainda que no caso de autor indígena que seja militar da ativa, a prestação do serviço militar possa, na visão corrente da jurisprudência, constituir-se em um signo do “grau de integração”.

[1] RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 1030-1.

[2] Cf. VITORELLI, Edilson. Estatuto do índio. Salvador: Jus podivm, 2018, p. 391.

[3] Cf. VITORELLI, Edilson. Estatuto do índio. Salvador: Jus podivm, 2018, p. 392.

[4] Cf. VITORELLI, Edilson. Estatuto do índio. Salvador: Jus podivm, 2018, p. 392.

[5] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Cícero Robson Coimbra. Erro de direito: uma abordagem sistemática. Revista Direito Militar, Florianópolis, v. 7, n. 39, p. 23-26, jan./fev. 2003.

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