O simples fato de ser policial pode gerar exasperação de pena-base em relação ao crime de concussão?

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14 de Novembro de 2022

Olá pessoal, tudo certo?

Hoje falaremos um pouco sobre um dos crimes em espécie mais cobrados em prova de concurso público quando o assunto é “Crimes contra a Administração Pública”. Refiro-me ao delito de concussão, tipificado no art. 316 do Código Penal Brasileiro. Vejamos:

Art. 316 – Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Conforme se infere do dispositivo supratranscrito, o crime de concussão ocorre quando o funcionário público, valendo-se do respeito ou mesmo receio que sua profissão infunde, impõe a vítima concessão de vantagem a que não tem direito (exigindo a referida vantagem indevida). Há violação da probidade do funcionário público e abuso da autoridade ou poder de que dispõe. A seguir, esquematizadamente, seguem algumas das principais informações acerca desse delito:

 

 

ELEMENTOS

(a) a exigência de vantagem indevida;

(b) que esta vantagem tenha como destinatário o próprio concussionário ou então um terceiro; e

(c) que à exigência seja ligada à função do agente, mesmo que esteja fora dela ou ainda não a tenha assumido.

 

 

 

 

ESPÉCIES

Segundo Fernando Henrique Mendes de Almeida:

(a) típica (“caput”): o funcionário público exige vantagem indevida, desconectada de qualquer tributo ou contribuição social;

(b) própria (§1º, 1ª parte): há abuso de poder, exigindo o funcionário público tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido; e

(c) imprópria (§1º, in fine):, o funcionário público exige tributo ou contribuição social devida, porém empregando na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza.

Concussão “própria” e “imprópria”  = “excesso de exação”.

 

OBJETIVIDADE JURÍDICA

Crime pluriofensivo:

Imediata: a Administração Pública, especialmente no campo do seu prestígio, da moralidade e da probidade administrativa.

Mediata: o patrimônio e a liberdade individual do particular prejudicado pela conduta criminosa.

 

 

OBJETO MATERIAL

É a vantagem indevida, ou ilícita, podendo ser atual ou futura.

Acerca da natureza da vantagem indevida formaram-se duas posições:

1ª posição: Deve ser econômica ou patrimonial. ‘

2ª posição: Pode ser de qualquer espécie, patrimonial ou não   – Cleber Masson.

Quando a vantagem indevida aproveita à própria Administração Pública = pode configurar excesso de exação (CP. art. 316, § 1º), desde que se constitua em tributo ou contribuição social.

 

ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO

“INDEVIDA”. Imprescindível a avaliação do caso concreto para concluir se a vantagem era ou não devida.

– Se o funcionário público abusar dos poderes inerentes ao seu cargo para exigir vantagem devida = poderá restar caracterizado o crime de abuso de autoridade (art. 33, caput, da Lei 13.869/19).

 

 

NÚCLEO DO TIPO

É “exigir“, no sentido de ordenar ou impor, aproveitando-se do temor proporcionado à vítima em decorrência dos poderes inerentes ao cargo público (metus publicae potestatis).

Não há, contudo, emprego de violência à pessoa. Esta é a ameaça à vítima: utilizar o cargo público para produzir um mal. Esta exigência, acompanhada necessariamente da intimidação, pode ser: explícita, implícita, direta ou indireta (o funcionário público vale-se de interposta pessoa).

Realizada essa importante e pertinente revisão, retomemos ao foco principal do texto. Conforme analisado, na concussão, a condição de funcionário público é parte integrante do tipo penal. Essa informação é imprescindível para analisarmos a seguinte situação.

Se ser funcionário público é essencial para a configuração do referido tipo, o simples fato de alguém ser agente de polícia (e, portanto, funcionário público) pode justificar um recrudescimento na dosimetria da pena ou estaríamos diante de bis in idem?

De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, a resposta é negativa. Ou seja, a utilização da condição pessoal de agente policial como circunstância judicial desfavorável é sim legítima, não configurando bis in idem e se revelando como idônea ao aumento da pena base. Vejamos:

(…) 1. À luz do disposto no art. 59 do Código Penal, é válida a exasperação da pena-base quando, em razão da aferição negativa da culpabilidade, extrai-se maior juízo de reprovabilidade do agente diante da conduta praticada. 2. No crime de concussão, previsto no art. 316 do Código Penal, embora a condição de funcionário público integre o tipo penal, não configura bis in idem a elevação da pena na primeira fase da dosimetria quando, em razão da qualidade funcional ocupada pelo agente, exigir-se-ia dele maior grau de observância dos deveres e obrigações relacionados ao cargo que ocupa. 3. Tendo em vista a condição de policial civil do agente, “a quebra do dever legal de representar fielmente os anseios da população e de quem se esperaria uma conduta compatível com as funções por ela exercidas, ligadas, entre outros aspectos, ao controle e à repressão de atos contrários à administração e ao patrimônio público, distancia-se, em termos de culpabilidade, da regra geral de moralidade e probidade administrativa imposta a todos os funcionários públicos.” (RHC 132.657, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 16/02/2016, Dje-039). 4. Ordem denegada. (HC 132990, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 16/08/2016).

O tema não é simples e tampouco tranquilo. No julgamento do habeas corpus acima indicado, o Min. Luiz Fux apontou (voto vencido) que haveria inequívoca violação ao princípio do non bis in idem, em decorrência da utilização da condição de policial civil como circunstância judicial desfavorável (art. 59 do CP). Isso porque os pacientes foram condenados pelo crime de concussão (art. 316 do Código Penal), delito próprio, que somente pode ser praticado no exercício de função pública ou, antes de assumi-la, mas em razão dela.

Contudo, prevaleceu o entendimento capitaneado pelo Ministro Edson Fachin ao indicar – conforme já havia feito a 2ª Turma no RHC 132.657[1] – que a prática de concussão efetuada por um agente de segurança pública (de quem se espera, em tese, proteção) envolve um juízo de reprovabilidade maior, o que justifica um tratamento mais severo.

Portanto, apesar de ser interessante dominar a controvérsia notadamente no âmbito doutrinário e ter como baliza a vedação do bis in idem para eventual tese defensiva, impera registrar que o entendimento majoritário e que, inclusive, deve servir de guia para os gabaritos acertados em provas de concurso é na linha de inexistir qualquer impossibilidade de utilização da maior reprovabilidade do comportamento do agente de segurança pública que atua conforme o tipo de concussão.

Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

[1] Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE CONCUSSÃO. DOSIMETRIA DA PENA. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. EXERCÍCIO DE CARGO ELETIVO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. 1. A dosimetria da pena, além de não admitir soluções arbitrárias e voluntaristas, supõe, como pressuposto de legitimidade, adequada fundamentação racional, revestida dos predicados de logicidade, harmonia e proporcionalidade com os dados empíricos em que se deve basear. 2. A exasperação da pena-base decorrente do acentuado grau de reprovabilidade da conduta do agente, manifestado pela grave afronta aos deveres e obrigações ínsitos ao cargo eletivo por ele ocupado à época dos fatos, encontra respaldo no art. 59 do Código Penal. 3. A condição de Deputado Federal do agente não se confunde com a qualidade funcional ativa exigida para a prática do crime de concussão. A quebra do dever legal de representar fielmente os anseios da população e de quem se esperaria uma conduta compatível com as funções por ela exercidas, ligadas, entre outros aspectos, ao controle e à repressão de atos contrários à administração e ao patrimônio público, distancia-se, em termos de culpabilidade, da regra geral de moralidade e probidade administrativa imposta a todos os funcionários públicos. 4. No caso, a elevação da pena-base em 8 meses de reclusão em razão de condição particular do agente (investido em cargo eletivo) não configura bis in idem na aplicação da pena. 5. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento (RHC 132657, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 16/02/2016).

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14 de Novembro de 2022