Uma das medidas preconizadas pela MP 927/2020 foi suspender, temporariamente, as atividades fiscalizatórias da Auditoria-Fiscal do Trabalho, restringindo-a, como regra, a aspectos orientativos. O art. 31, da MP 927/2020 preceitua que:
Art. 31. Durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.
Vale ressaltar que a MP entrou em vigor em 22.03.2020. Logo, até 18.09.2020, as atividades propriamente fiscalizatórias da Auditoria-Fiscal do Trabalho estariam suspensas, mantendo-se somente as atividades orientativas. As atividades fiscalizatórias seriam mantidas em 5 (cinco) pontos fundamentais: trabalho escravo, trabalho infantil, falta de registro (somente a partir de denúncia, vedando-se, de acordo com a redação da MP, a atuação de ofício); situações de grave e iminente risco (somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à situação de risco) e acidente de trabalho fatal (somente para as irregularidades imediatamente ligadas às causas do acidente).
Interessante perceber que a fiscalização trabalhista, encarregada do “enforcement” do Estado, é uma garantia secundária, de efetividade dos direitos fundamentais trabalhistas. O que chama atenção é a fixação de um termo certo para a suspensão das atividades propriamente fiscalizatórias do Estado, sem que esta guarde, necessariamente, relação com a situação de pandemia[1].
Bem, mas como ficariam então situações ligadas à própria pandemia? Um hospital que não fornecesse EPI’s aos seus empregados? Evidentemente, estaria enquadrado na situação de grave e iminente risco. Um acidente de trabalho não fatal?
Partindo-se de um raciocínio de enquadramento interno na própria MP, uma interpretação minimamente adequada não poderia deixar de subsumir essas situações em grave e iminente risco. E, assim, pode-se afirmar que o divisor de águas para se afirmar quais medidas de fiscalização em saúde e segurança do trabalho estariam suspensas pela MP é justamente o grave e iminente risco. Em hipóteses nas quais se pudesse enquadrar a situação como grave e iminente risco, a atividade fiscalizatória seria integral; mas demais, somente orientativa.
Prosseguindo para uma análise de compatibilidade vertical, cumpre destacar o art. 13 da Convenção 81 da OIT, segundo o qual os inspetores do trabalho estarão autorizados a tomar medidas a fim de que se eliminem os defeitos observados na instalação, na montagem ou nos métodos de trabalho que, segundo eles, constituam razoavelmente um perigo para a saúde ou segurança dos trabalhadores.
De acordo com o mesmo preceito:
a fim de permitir a adoção de tais medidas, os inspetores do trabalho estarão autorizados a reservar qualquer recurso judicial ou administrativo que possa prescrever a legislação nacional, a ordenar ou mandar ordenar:
a) as modificações na instalação, dentro de um prazo determinado, que sejam necessárias para garantir o cumprimento das disposições legais relativas à saúde ou segurança dos trabalhadores; ou
b) a adoção de medidas de aplicação imediata, em caso de perigo iminente para a saúde ou segurança dos trabalhadores.
Mais interessante é o contraste do art. 31, da MP 927 com o art. 17 da Convenção 81 da OIT, segundo o qual “os inspetores do trabalho terão direito a decidir se devem advertir e aconselhar, em vez de iniciar ou recomendar um procedimento”. Essa previsão da MP retira dos AFT’s justamente esse direito, assegurado em norma supralegal, abrindo-se a porta para a realização do chamado controle de convencionalidade (no RE nº 466.343/SP, o STF afirmou a hierarquia supralegal, como regra, dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos).
Caberia aqui alongar a discussão para a inconstitucionalidade do preceito, mas, felizmente o Pleno do STF, no bojo da ADI 6344 (na verdade, são 7 ADI’s apensadas), acompanhando a divergência levantada pelo Min. Alexandre de Morais, conferiu ao art. 31 da MP 927, interpretação conforme à Constituição para destacar que, caso as orientações da Auditoria-Fiscal do Trabalho não sejam respeitadas, os auditores poderão exercer suas demais competências fiscalizatórias.
O argumento central do Min. Alexandre de Morais é que o artigo 31, o qual restringe a atuação dos auditores fiscais do trabalho, atenta contra a saúde dos empregados, não auxilia o combate à pandemia e diminui a fiscalização no momento em que vários direitos trabalhistas estão em risco.
Por fim, calha destacar que, conforme art. 11, § 1º, da Lei 9868/99, a medida cautelar, concedida em ADI, é dotada de eficácia contra todos e possui efeitos ex nunc (salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa).
Referências
[1] O Decreto Legislativo 06/2020, que decreta estado de calamidade pública, até 31.12.2020 é somente para efeitos da LRF (art. 65, LC 101/2000).
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