A soberania e a posição dos tratados internacionais em face do direito interno

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2 de Março de 2018

Fonte: Conteúdo Jurídico
Por Antônio Augusto Souza Dias Júnior

Antes do enfrentamento da questão atinente à relação entre os tratados internacionais e o direito interno é necessário estabelecer como premissa que a releitura da soberania estatal possui influência direta no tratamento do direito internacional em face do direito interno.

De primeira mão, deve-se entender por soberania o atributo que os Estados possuem de fazer valer suas determinações em relação aos seus nacionais e no âmbito de seu território, produzindo normas cogentes e aplicáveis a todos que possuam um elemento de conexão com o referido Estado.

Em que pese existirem autores que defendam que a soberania representa um poder estatal absoluto e ilimitado, acreditamos que até mesmo a soberania possui limites. Estes podem ser identificados tanto nos compromissos internacionais relativos à proteção dos direitos humanos, como na própria finalidade de um Estado como sendo uma organização que vise a um bem comum (seria impossível, assim, um Estado cuja constituição elencasse como objetivo fundamental a eliminação de nacionais que professem determinado credo, ou que possuam determinada característica física).

O professor Heleno Taveira Tôrres bem expressa essa ideia:

“O termo soberania, aplicado aos domínios institucionais do direito, exprime um poder geral, mas não ilimitado e absoluto, como usam dizer alguns, por encontrar-se sujeito a limites muito claros, esculpidos juridicamente. Além das limitações de ordem constitucional, estão aqueles entabulados pela ambiência interestatal ou supra-estatal. De fato, costumes do direito internacional, as próprias convenções internacionais ratificadas, as soberanias alheias, em atendimento e respeito à independência nacional alheia, à autodeterminação dos povos, ao princípio da não-intervenção, à defesa da paz e à igualdade entre os Estados, bem como os princípios gerais do direito das gentes, prevalência dos direitos humanos e repúdio ao terrorismo e ao racismo, dentre outros, são claros exemplos de limites à soberania na ambiência interestatal. Em relação ao âmbito supra-estatal, encontramos os limites estabelecidos por organizações supranacionais ou em regime de cooperação e integração, como ONU, EU, OCDE, etc.”[1]

Também está entre aqueles que repensam o conceito de soberania o professor José Souto Maior Borges:

“o conceito tradicional de soberania se coloca em questionamento: ou (a) é mantido tal como tradicionalmente concebido pela doutrina, um poder absoluto e incontrastável e nesse caso não será possível ao ordenamento internacional ou comunitário exercer o primado sobre a ordem interna nacional ou (b) será flexibilizada a soberania para atender às circunstâncias emergentes da convivência interestatal e necessárias à instauração do direito comunitário. Não resiste às exigências dos tempos novos o conceito tradicional de soberania. E muito menos sobrevive a noção doutrinária da soberania, pré e extraconstitucional, à sua estruturação na CF e seu regime jurídico-positivo. Por maior que seja a sua indeterminação, o de soberania é conceito constitucional (CF, art. 1º, I) e portanto jurídico-positivo”[2]

Ou seja, a soberania estatal não é um conceito lógico-jurídico, mas sim jurídico-positivo, que pode ser delineado com uma certa dose de liberdade pelo direito positivo interno, no caso a Constituição Federal. Sendo assim, a própria Constituição previu limitações à soberania, como a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, e o status de emenda constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo mesmo procedimento das emendas à Constituição.

Há, portanto, uma conformação específica da soberania, que não significa uma prevalência do direito interno em todo e qualquer caso, uma vez que se admite a superação de normas internas por tratados internacionais, o que se entende estar de acordo com a Constituição.

E é justamente a concepção de soberania que se adota que irá guiar a posição a respeito da relação entre o direito interno e o direito internacional. Caso se entenda que a soberania exige uma superioridade das decisões tomadas pelo Congresso sem qualquer interferência ou participação da comunidade internacional, os tratados internacionais terão uma influência diminuta no ordenamento jurídico interno do Estado. Por outro lado, caso se compreenda que a soberania não é prejudicada pela confluência de vontades no âmbito internacional, e que os compromissos firmados mediante negociações externas que envolvem cessões e concessões devem ser respeitados no âmbito interno, os tratados deverão ser observados pela legislação interna. Para esta orientação que não admite a vulneração dos compromissos internacionais pelo direito interno, não há que se falar em paridade hierárquica entre tratados e leis internas, mas sim em primado dos tratados.

Alberto Xavier expressa a questão da seguinte maneira:

 “(…) para as correntes que só admitem a vigência dos tratados internacionais uma vez transformados em lei interna, a paridade hierárquica também se impõe como corolário lógico, pois o tratado passaria a vigorar com a mesma força de lei transformadora. (…) A tese da paridade hierárquica entre tratado internacional e lei interna (à qual a teoria dualista deu a explicação dogmática mais acabada) serve, evidentemente, aos interesses dos Estados que não desejam um constrangimento duradouro à livre expressão da sua soberania interna (…)”[3]

O referido autor defende que os tratados internacionais devem ser observados pela legislação interna em face do princípio pacta sunt servanda. Tal dever de observância seria aplicável em relação a qualquer tratado internacional, independentemente da matéria a ser tratada. Tal posição teria mais força a partir de 2009, quando o Brasil ratificou a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a qual prevê, em seu artigo 27, que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. E até mesmo antes da ratificação desta Convenção, a Constituição já estabelecia a prevalência dos tratados:

“A verdade, porém, é que não é exata a premissa de que a Constituição Federal de 1988 seja silente, omissa ou lacunar sobre a questão da posição relativa de lei ordinária em face do tratado internacional. Duas disposições de caráter especial apontam inequivocamente no sentido da superioridade hierárquica dos tratados. Uma é a que consta do art. 178, segundo a qual ‘a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreos, aquáticos e terrestres, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade’. Outra é o art. 52 do ADCT, que estabelece que as vedações a que se refere, em matéria de mercado financeiro, não se aplicam às autorizações resultantes de acordos internacionais. Ora, seria absurdo entender que o dever de ‘observância’ ou de ‘aplicabilidade’ se restringisse na ordem constitucional ao setor dos transportes internacionais e ao setor financeiro.”[4]

Em sentido diverso, o Plenário do STF, na ADI 1.480, decidiu pela paridade hierárquica entre tratados internacionais e leis ordinárias, não admitindo que aqueles prevaleçam sobre estes:

(…) – É na Constituição da República – e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas – que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado – conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. SUBORDINAÇÃO NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. – No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro – não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO. – O Poder Judiciário – fundado na supremacia da Constituição da República – dispõe de competência, para, quer em sede de fiscalização abstrata, quer no âmbito do controle difuso, efetuar o exame de constitucionalidade dos tratados ou convenções internacionais já incorporados ao sistema de direito positivo interno. Doutrina e Jurisprudência. PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. – Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior derogat priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes. TRATADO INTERNACIONAL E RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR. – O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público. Os tratados internacionais celebrados pelo Brasil – ou aos quais o Brasil venha a aderir – não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar. É que, em tal situação, a própria Carta Política subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo da lei complementar, que não pode ser substituída por qualquer outra espécie normativa infraconstitucional, inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao direito positivo interno. (…)
(ADI 1480 MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, DJ 18-05-2001) (grifamos).

Acreditamos, porém, que a razão está com Alberto Xavier, no ponto em que afirma que a Constituição possui implicitamente uma orientação para que os tratados internacionais sejam observados pela legislação interna.

O artigo 4º da nossa Constituição prevê expressamente que a autodeterminação dos povos (inciso III), a igualdade entre os Estados (inciso V), e a solução pacífica dos conflitos (inciso VII) são princípios que regem a República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais. A autodeterminação dos povos e a igualdade entre os Estados impõem que nenhum Estado pode ser compelido a um compromisso internacional sem que isso seja de sua própria vontade. Uma vez obrigando-se por sua própria vontade, contudo, o Estado não pode simplesmente trair a confiança dos outros entes envolvidos, eximindo-se de suas obrigações e legislando em sentido oposto ao que se convencionou.

O princípio que consagra a solução pacífica dos conflitos veda a violação unilateral e arbitrária de convenções internacionais. Eventual discordância posterior aos termos pelos quais o país se obrigou devem ser resolvidos pela forma acordada, com a comunicação das partes envolvidas, e não por atitude isolada e contrária ao espírito consensual que originou o compromisso até então em vigor.

Caso a soberania fosse fundamento para que a República se considere desobrigada a cumprir os acordos internacionais mediante o processo legislativo interno, outros princípios previstos no artigo 4º da Constituição estariam ameaçados, como o combate ao terrorismo (inciso VIII) e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (inciso IX). A mera probabilidade de o Brasil não cumprir suas obrigações internacionalmente assumidas pode inviabilizar as ações conjuntas tão cruciais nos tempos de globalização e abertura econômica.

Por fim, deve-se mencionar ainda a possibilidade de os tratados internacionais serem equiparados a emendas constitucionais, adquirindo assim o status de norma constitucional. Trata-se da hipótese prevista no parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal[5], incluído pela Emenda Constitucional 45/2004:

  • 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Após a edição da Emenda Constitucional 45, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os tratados de direitos humanos que não sejam submetidos ao rito legislativo das emendas constitucionais possuem status supralegal. No RE 466.431, o Plenário do STF entendeu que tratados internacionais de direitos humanos possuem posição hierárquica superior às leis, e inferior à Constituição. Contudo, no caso em questão o tratado acabou por derrogar norma constitucional que previa a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

De todas as variantes existentes a respeito da posição dos tratados internacionais no direito brasileiro, um consenso mínimo é possível: o de que os tratados devem se submeter à Constituição. Mesmo nos casos em que o tratado terá status constitucional, assim o será por determinação da Carta Maior. O art. 102, III, “b” da CF prevê expressamente o controle de constitucionalidade de tratados, como bem observou Luís Eduardo Schoueri:

“De início, pode-se afirmar que, no ordenamento brasileiro, um tratado não pode contrariar a Constituição. Tal afirmativa se extrai da alínea ‘b’ do n. III, do art. 102 da CF (…) Foi reconhecida, pelo próprio constituinte, a possibilidade de um tratado ser inconstitucional, de onde se pode extrair a conclusão de que o texto da norma internacional que contrariar dispositivo da Carta será taxado de inconstitucional. Daí, portanto, a colocação da Constituição, hierarquicamente acima dos tratados internacionais.”[6]

Traçado um panorama geral sobre a posição hierárquica dos tratados internacionais em relação ao direito interno, voltaremos nossa atenção para a relação entre os tratados internacionais em matéria tributária e a legislação interna.

O artigo 98 do CTN e a posição dos tratados em matéria tributária

Quando se estuda a relação entre os tratados internacionais em matéria tributária e o direito interno, deve-se ter em mente que o Código Tributário Nacional prevê expressamente qual seria a posição dos tratados. Assim dispõe o artigo 98 do Código: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.

Preliminarmente ao exame do conteúdo do dispositivo, deve-se questionar se a legislação infraconstitucional é apta a regular as relações entre o direito internacional e o direito interno.

Em que pese o CTN ser considerado uma norma geral em matéria tributária, acreditamos que uma lei complementar não poderia disciplinar o modo como leis ordinárias e complementares devem ser aplicadas quando em confronto com os tratados internacionais. É que apenas a Constituição poderia prever a possibilidade de uma espécie legislativa prevalecer sobre outra. Não julgamos acertada a conclusão segundo a qual uma espécie legislativa infraconstitucional (lei complementar) contenha disposição que estabeleça a sua própria posição hierárquica em face dos tratados internacionais.

É nessa linha que Luciano Amaro constata:

“A eficácia dos tratados e sua inserção no ordenamento jurídico nacional é questão de natureza constitucional. Não é com preceito infraconstitucional que se haverá de resolver se o tratado pode ou não modificar a lei interna, ou se esta poderá ou não alterá-lo. Assim sendo, não cabia ao Código Tributário Nacional nem negar nem afirmar (como parece ter pretendido o art. 98) o primado dos tratados.”[7]

Com esse mesmo posicionamento, Sérgio André Rocha assim expõe:

“nos parece irrazoável alegar que o Código Tributário Nacional está complementando a Constituição ao estabelecer uma supremacia dos tratados internacionais sobre o direito interno que não se encontra prevista na Lei Maior. (…) partindo-se da premissa de que o Código Tributário Nacional é lei ordinária com status de lei complementar, a qual veicula uma série de limitações ao legislador ordinário, impõe-se reconhecer que tais limitações somente serão válidas e eficazes quando compatíveis com a Constituição e então tornamos a repetir que na Lei Maior não há qualquer previsão que indique a supremacia do Direito das Gentes sobre as regras de direito interno. (…) a previsão da supremacia dos tratados e convenções internacionais sobre o direito interno não parece inserir-se no conjunto das normas gerais de Direito Tributário. (…) somos da opinião de que o artigo 98 do Código Tributário Nacional não é compatível com a Constituição Federal. Na verdade, cremos que tal artigo já nasceu inconstitucional. É possível concluir, portanto, que o artigo 98 do Código Tributário Nacional, ao pretender estabelecer a supremacia dos tratados internacionais tributários sobre a legislação interna, usurpou a competência da Constituição Federal de impor limites ao legislador ordinário sobre esta matéria, não podendo ser considerado compatível com a Carta Política. ”[8]

Contrapondo-se expressamente a essa posição de Sérgio André Rocha, Alberto Xavier vê no artigo 98 do CTN um preceito declaratório, que apenas confirma a supremacia hierárquica dos tratados sobre a lei interna. Para Xavier, a possibilidade de a lei complementar confirmar uma superioridade dos tratados em face da lei interna que já seria decorrente do sistema constitucional estaria justificada pela função de regular as limitações constitucionais ao poder de tributar da lei complementar tributária (CF, art. 146, II)[9].

A crítica do professor Xavier, com todo o respeito, merece uma ressalva. Isso porque ele deixa claro que o artigo 98 do CTN tem natureza declaratória de uma determinação implícita no sistema constitucional. Se a lei complementar apenas repete o conteúdo do que já se depreende da Constituição, a nosso ver, não está inovando no ordenamento jurídico, nem mesmo a título de regulamentação das limitações constitucionais ao poder de tributar.

Acreditamos que uma abordagem de outro ponto de vista do pensamento de Alberto Xavier pode justamente levar à conclusão de que apenas a Constituição poderia prever o modo como se relacionam os tratados e a legislação interna. Até mesmo porque não nos parece coerente que uma lei complementar previsse a superioridade dos tratados, ao mesmo tempo em que tal superioridade teria como fonte a própria legislação infraconstitucional interna (lei complementar). Fosse assim, uma alteração no CTN pelo Congresso Nacional poderia conferir nova redação ao dispositivo para prever a superioridade da legislação interna.

Tal argumentação, se bem testada, nos faz crer que a fonte de eventual prevalência dos tratados em relação ao direito interno será sempre a Constituição, jamais um diploma legislativo infraconstitucional.

O fato de o mandamento contido no artigo 98 do CTN coincidir com aquilo que a Constituição orienta não significa que a Constituição de 1988 permite que uma lei complementar disponha sobre a hierarquia entre tratados e legislação infraconstitucional. Eventual recepção desse dispositivo pelo texto constitucional de 1988 não convalidaria, nesse caso, a incompatibilidade formal, pois aqui se está diante de matéria afeta exclusivamente a normas constitucionais.

A doutrina majoritária, contudo, não enxerga vício de inconstitucionalidade no artigo 98 do CTN, seguindo a linha de Roque Antônio Carrazza:

“Embora já tenhamos sustentado o contrário, hoje estamos convencidos de que realmente o tratado internacional, devidamente aprovado, ratificado e promulgado, é fonte primária do direito tributário. Constitucional, pois, o art. 98 do CTN quando prescreve que ‘os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha’.”[10].

Adentrando no estudo do conteúdo do artigo 98 do CTN, temos que esse dispositivo prevê expressamente a prevalência dos tratados internacionais em matéria tributária sobre a legislação interna. Deve-se destacar a impropriedade da expressão “revogar” contida no dispositivo, pois a supremacia dos tratados sobre a lei interna não significa revogação desta[11].

Muitos autores, ao comentar o dispositivo, entendem que ele seria uma norma consagradora do princípio pacta sunt servanda, garantindo-se o cumprimento dos compromissos internacionais. O artigo 98, assim, seria norma vedatória da deslealdade, evitando que um Estado descumpra seus compromissos sob a alegação de exercício da soberania interna de legislar. O professor José Souto Maior Borges, ao considerar que a prevalência do tratado sobre a lei prevista no artigo 98 do CTN seria uma consequência da regra pacta sunt servanda, conclui que ao se admitir que uma lei pudesse revogar um tratado, estar-se-ia atribuindo ao ato legislativo o efeito de denúncia, este sim o instrumento idôneo para eximir um Estado do compromisso internacional outrora firmado[12].

Com linha de raciocínio semelhante, Hugo de Brito Machado defende a norma do artigo 98 do CTN, aduzindo que a alteração de tratado internacional por lei interna contraria o princípio da moralidade, além de prejudicar a credibilidade do país no plano internacional[13].

Também defendendo a prevalência dos tratados internacionais, Luciano Amaro argumenta que a própria natureza dos tratados justificaria a prevalência da norma do tratado sobre a lei interna, uma vez que os tratados internacionais representariam o único modelo legislativo idôneo para firmar normas de conduta entre os Estados soberanos[14]. O mesmo autor invoca ainda o critério da especialidade na solução de antinomias, como fator decisivo para se determinar a aplicação dos tratados em detrimento da legislação interna:

“Nas várias hipóteses em que o tratado se aplique (afastando ou modificando a disciplina que decorreria da lei interna), o efeito do preceito convencional é o de norma especial, cuja eventual revogação devolve as situações ‘especializadas’ à disciplina da norma geral (da lei interna). (…) O conflito entre a lei interna e o tratado resolve-se, pois, a favor da norma especial (do tratado), que excepciona a norma geral (da lei interna), tornando-se indiferente que a norma interna seja anterior ou posterior ao tratado. Este prepondera em ambos os casos (abstraída a discussão sobre se ele é ou não superior à lei interna) porque traduz preceito especial, harmonizável com a norma geral.”[15]

Nesse sentido, de admitir a aplicação dos tratados em detrimento da legislação interna por conta do princípio da especialidade, parece caminhar a doutrina majoritária. Misabel Derzi, por exemplo, ensina que os tratados e convenções internacionais “atuam em campo próprio e específico, de modo que, sendo normas especiais, não são revogadas pelas leis de tributação interna geral, mas com elas convivem”[16].

O critério da especialidade, desse modo, vedaria a superação dos termos acordados no tratado pela legislação interna, impedindo assim aquilo que se chama de “treaty override” (violação do tratado por legislação interna).

Apesar da maioria dos autores consagrarem o critério da especialidade como o fundamento da prevalência das convenções internacionais, Sérgio André Rocha entende aplicável o critério cronológico (lei posterior revoga lei anterior) para a solução de antinomias entre os tratados internacionais em matéria tributária e as leis internas:

“pensando agora em uma situação completamente hipotética, poderíamos imaginar um caso em que fosse editada lei mencionando, de forma expressa, que a tributação seria alterada ‘inclusive nos casos em que o Brasil possuir convenção para evitar a dupla tributação da renda’. Em uma hipótese assim a aplicação do critério da especialidade teria que ceder espaço para o critério cronológico.”[17]

Em direção similar, temos um exemplo de precedente norte-americano trazido por Luís Eduardo Schoueri (Lee Yen Tai versus United States) em que se admitiu a prevalência da legislação interna sobre um acordo internacional (treaty override) se o legislador declarar expressamente ser esta a sua intenção[18].

Alberto Xavier, por outro lado, critica veementemente a adoção do critério cronológico para a solução de conflitos entre tratados e direito interno:

“(…) se a prevalência em função do critério da especialidade não é ofensiva da razoabilidade, já o mesmo não se pode dizer da prevalência em função do critério cronológico, pois este legitima que um Estado desfaça unilateralmente os laços convencionais independente da forma convencionalmente adequada – denúncia do tratado – pela pura e simples revogação de tratado anterior por lei interna (treaty override).”[19]

Como já mencionado, grande parte da doutrina adota o critério da especialidade como justificativa para a prevalência dos tratados internacionais em face do direito interno. Tal entendimento, a nosso ver, não permite a aplicação dos tratados em todo e qualquer caso, pois seria plenamente possível que uma lei interna posterior ao tratado regulasse o tema com maior riqueza de detalhes, sendo mais específica, e atraindo o critério da especialidade como fundamento da aplicação do direito interno, em detrimento dos tratados internacionais.

A pressuposição de que o tratado sempre seria norma mais específica que o direito interno, a nosso ver, carece de solidez.

A abordagem que nos parece mais coerente é aquela segundo a qual o tratado internacional em matéria tributária não revoga o direito interno, tampouco o derroga por ser mais específico. Concordamos, assim, com Luís Eduardo Schoueri, para quem os acordos de bitributação não introduzem alterações no direito interno material[20].

Tratados e direito interno ocupam terrenos diferentes e que não se cruzam, pelo fato de que a matéria regulada por uma convenção, ainda que seja a mesma regulada pela legislação interna, não terá o mesmo grau de aplicação que possuiria no direito interno. É dizer, uma mesma matéria regulada por um tratado e por uma lei interna de um Estado contratante será aplicada de modo diverso em caso de vigência do acordo internacional. Assim é que conceitos previstos em um tratado de forma diversa da disposta na legislação interna reclamarão métodos de interpretação que não se identificam totalmente com a interpretação do direito interno. A própria convenção pode prever que em caso de dúvida na interpretação de um termo previsto no tratado, recorrer-se-á à legislação do Estado contratante, como o faz a Convenção Modelo da OCDE para evitar a bitributação da renda.

Daí já se percebe que há camadas diferentes de normas, e não paridade que se resolve pelos critérios da especialidade ou cronológico. O professor Luís Eduardo Schoueri, ao comentar a teoria da máscara de Klaus Vogel, assim explica a referida concepção:

“ao se admitir que os acordos de bitributação sejam leis especiais, abre-se espaço para que uma lei ‘mais especial’ prevaleça sobre os tratados, contrariando o disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional. O raciocínio baseado na especialidade é perigoso: ao se aceitarem suas premissas, poder-se-ia, também, admitir que, se houvesse uma lei ainda mais especial, esta prevaleceria sobre os tratados. Ou seja: bastaria o legislador dizer que para uma específica matéria não devem ser observados os tratados, que o argumento da lei especial – e com ele o disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional – cairia por terra. (…) De igual modo, não há sentido discutir o tema da hierarquia quando se está diante de um acordo de bitributação. Este não está ‘acima’ ou ‘abaixo’ da lei ordinária. Acordos de bitributação, enquanto tratados internacionais, são instrumentos por intermédio dos quais os Estados Contratantes delimitam suas próprias jurisdições tributárias. A lei ordinária, por sua vez, atua dentro do campo de cada jurisdição. A prova clara de que não há hierarquia está na obviedade de que um acordo de bitributação não se presta para criar um tributo: nos termos do Princípio da Legalidade, somente a lei pode instituir tributos. Mas por outro lado, a lei ordinária não é o veículo adequado para o Estado firmar, diante de seus parceiros na comunidade internacional, os limites de sua jurisdição.”[21]

Ainda que nos filiemos à corrente que defende a prevalência dos tratados internacionais, inclusive os que versem a respeito de matéria tributária, a questão não pode ser posta em termos bem definidos e imunes a eventual mitigação diante de casos específicos. Princípios constitucionais como a segurança jurídica e a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais podem exigir soluções diferenciadas.

Retornando para a jurisprudência brasileira, o STF possui entendimento firmado no sentido de que, regra geral, os tratados internacionais “guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado brasileiro” (STF, Extradição 662-2 República do Peru, de 28/11/96).

Aplicando a premissa de que os tratados internacionais possuem o mesmo nível hierárquico que as leis ordinárias, a 1ª Turma do STJ entendeu que os tratados em matéria tributária dispõem sobre assuntos específicos, o que afastaria a aplicação da legislação ordinária. Estranhamente, essa decisão do STJ restringiu seu alcance ao que chamou de tratados de natureza contratual, criando uma classificação não prevista no artigo 98 do CTN:

“1. O mandamento contido no artigo 98 do CTN não atribui ascendência às normas de direito internacional em detrimento do direito positivo interno, mas, ao revés, posiciona-as em nível idêntico, conferindo-lhes efeitos semelhantes. 2. O artigo 98 do CTN, ao preceituar que tratado ou convenção não são revogados por lei tributária interna, refere-se aos acordos firmados pelo Brasil a propósito de assuntos específicos e só é aplicável aos tratados de natureza contratual.” (REsp 37.065)

Em julgamento paradigmático que foi seguido em vários outros julgados posteriores, o STF, no RE 229.096, decidiu que o artigo 98 do CTN possui caráter nacional, com eficácia para a União, os Estados e os Municípios. Essa a única referência expressa ao artigo 98 do CTN constante da ementa do acórdão.

Deve-se atentar, porém, que tal asserção não inova no tema, pois já é tido como pacificado o entendimento de que as normas do CTN, inclusive o artigo 98, são normas gerais aplicáveis a todos os entes federativos.

O dado mais relevante da ementa do RE 229.096 nos parece a afirmação de que “o artigo 98 do CTN não atribui ascendência às normas de direito internacional em detrimento do direito positivo, mas, ao revés, posiciona-as em nível idêntico, conferindo-lhes efeitos semelhantes”.

Essa conclusão dá a entender que não há hierarquia entre os tratados referidos e a legislação interna, devendo eventuais conflitos ser resolvidos pelos critérios cronológico e da especialidade.

Tal premissa acaba, de qualquer forma, permitindo a solução genérica de que os tratados em matéria tributária afastam a legislação ordinária pela especificidade dos mesmos, sendo esta a atual conclusão que se pode extrair da jurisprudência até o momento.

Notas:

[1] TÔRRES, Heleno Taveira. Princípio da Territorialidade e Tributação de Não-Residentes no Brasil. Prestações de Serviços no Exterior. Fonte de Produção e Fonte de Pagamento. In: Tôrres, Heleno Taveira (coordenador). Direito Tributário Internacional Aplicado Volume I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 73-74.
[2] BORGES, José Souto Maior. Direitos Humanos e Tributação. In: Tôrres, Heleno Taveira (coordenador). Direito Tributário Internacional Aplicado Volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 42.
[3] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 86.
[4] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 96-97.
[5] Muitos internacionalistas defendiam que desde a promulgação de 1988 os tratados internacionais de direitos humanos possuíam status constitucional, não podendo ser contrariados por norma infraconstitucional.
[6] SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento Fiscal Através de Acordos de Bitributação: Treaty Shopping. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 100.
[7] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 182.
[8] ROCHA, Sérgio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 112-114.
[9] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 104-105.
[10] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Tributário Constitucional. 30ª edição. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 268.
[11] BIANCO, João Francisco. Transparência Fiscal Internacional. São Paulo: Dialética, 2007, p. 147.
[12] BORGES, José Souto Maior. Direitos Humanos e Tributação. In: Tôrres, Heleno Taveira (coordenador). Direito Tributário Internacional Aplicado Volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 61.
[13] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 99.
[14] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 188.
[15] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 180-181.
[16] DERZI, Misabel Abreu Machado. Notas de Atualização a Direito Tributário Brasileiro, de Aliomar Baleeiro. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 981.
[17] ROCHA, Sérgio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 134.
[18] SCHOUERI, Luís Eduardo. Tratados e Convenções Internacionais sobre Tributação. In: COSTA, Alcides Jorge. SCHOUERI, Luís Eduardo. BONILHA, Paulo Celso Bergstrom (coordenadores). Revista Direito Tributário Atual n. 17. São Paulo: IBDT/Dialética, 2003, p. 32.
[19] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 119.
[20] SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento Fiscal Através de Acordos de Bitributação: Treaty Shopping. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 33.
[21] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 121-122.



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2 de Março de 2018