Olá pessoal, tudo certo?
Sei que o título do post de hoje foi um tanto provocativo, mas me permitam explicar.
Ao longo dos últimos dois anos, houve uma significativa intensificação de reformulações e ponderações acerca do instituto do reconhecimento de pessoas no âmbito do processo penal. Inicialmente compreendido como uma “mera recomendação” do legislador pelos Tribunais Superiores, houve um amadurecimento e uma modificação sensível de orientação.
Esse tema já foi objeto de análises em textos nossos anteriores aqui no blog, mas o fato é que o entendimento atual caminha no sentido de que o procedimento estabelecido pelo legislador deve ser seguido à risca, tanto da fase processual como também na etapa inquisitiva da persecução penal[1].
De acordo com o Ministro Rogério Schietti Cruz, em seu voto referente ao julgamento do HC 598.886/SC[2], a partir de estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva.
Ademais, é imperioso pontuar a peculiaridade referente ao procedimento de reconhecimento de pessoas, presencialmente ou por fotografias, durante a fase investigativa. Conforme compreensão do STJ, a mencionada diligência somente é apta para identificar o réu e fixar a autoria delitiva quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal[3] e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa[4].
Relembrado esses aspectos, é hora de analisarmos um novo julgado da lavra da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Segundo o Colegiado, se a vítima é capaz de individualizar o autor do fato, é desnecessário instaurar o procedimento do art. 226 do CPP[5].
É que, ao compulsarmos o teor do art. 226 do CPP, verifica-se que o legislador aponta que tal procedimento será verificado “quando houver necessidade”, sendo possível inferir que, a contrario sensu, não havendo dúvidas sobre a autoria delitiva, desnecessário se faz a produção da mencionada prova (afinal, ela NÃO é obrigatória – sistema da prova tarifada).
De acordo com o que se extrai do voto do Min. Sebastião Reis Júnior, “verifica-se, no caso concreto, que a autoria delitiva não se amparou, exclusivamente, no reconhecimento pessoal realizado na fase do inquérito policial, destacando-se, sobretudo, que as duas vítimas reconheceram o agravante em Juízo, descrevendo a negociação e a abordagem[6]. A identificação do perfil na rede social facebook foi apenas uma das circunstâncias do fato, tendo em conta que a negociação se deu por essa rede social. Isso não afastou o reconhecimento dos autores do fato em juízo, razão pela qual não há falar em violação do art. 226 do Código de Processo Penal” (grifos nossos).
Não há a menor dúvida de que essa orientação aparecerá muito em breve em certames vindouros! Anota mais essa e aguarda para gabaritar sua prova!
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] HC 652.284/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/04/2021, DJe 03/05/2021.
[2] HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020.
[3] Art. 226. QUANDO HOUVER NECESSIDADE de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
[4] Nesse sentido, vide: AgRg no HC n. 664.416/SC, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 26/11/2021
[5] HC 721.963-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por maioria, julgado em 19/04/2022.
[6] Vejamos trechos importantes que serviram de lastro para corroborar a tese sustentada pelo Relator, que se sagrou prevalecente: “(…) Importante repisar que Luís Cláudio reconheceu pessoalmente os apelantes em juízo, pontuando ter certeza quanto à identificação realizada na fase inquisitiva, algo também confirmado por Eviton que, conquanto não tenha realizado a identificação sob o contraditório, narrou ter segurança quanto ao apontamento formalizado na Delegacia mais de uma vez (vide fls. 13/17, 15/16 e 29/30). (…) Não bastasse, narram os policiais civis Márcio Caneschi e Cristina Aparecida dos Santos ter o ofendido Luís Cláudio reconhecido os assaltantes através de perfis relacionados ao suposto vendedor “Josemar Ferreira” no Facebook. Segundo o ofendido, o crime se deu após uma emboscada, tendo sido atraído ao local após a negociação de compra de um automóvel. O proprietário do bar onde as vítimas pediram informações antes do crime disse saber que, “no bairro, acontecem coisas erradas”, masque não compactua com tais condutas, nada sabendo sobre o crime em pauta. Ao final, disseram que as vítimas mencionaram o emprego de armas de fogo durante o roubo (relatório de investigação a fls. 12/23 e link de acesso a fls. 515).
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