Cada vez mais a sociedade grita por justiça, pelo enrijecimento das penas e exige o aumento das prisões, acredita que a existência de um Direito Penal punitivo, com a aplicação de penas mais rígidas, seria a solução à criminalidade.
Infelizmente, por influência da mídia ou do clamor público, a grande maioria acredita que o Direito Penal possui o viés de educar, que a aplicação de sanção penal possui o papel de preservar a credibilidade da justiça.
Nessa linha, menciona Santana[1] que a resposta estatal é dada por vezes rápida e irrefletida, fruto da sensibilidade do legislador ao clamor social, que resulta do expansionismo penal punitivo.
Sobre o tema, Busato[2] explica que vive-se um momento em que o Direito Penal deparou-se com uma encruzilhada. A dimensão política e a contundência (que são suas características) levaram-no a converter-se em um instrumento de permanente utilização por parte dos detentores do poder, como forma de, a um só tempo, responder a uma induzida sensação de insegurança social e demarcar claramente os espaços sociais correspondentes às distintas classes de pessoas.
Esclarece ainda o autor:
Tudo em obediência a interesses de discursos que transformaram a ideia de risco em ponto de referência para a organização político-criminal, gerando o que se convencionou chamar de Direito penal do inimigo ou Direito penal do terror. Quiçá a própria banalização da violência em tempos modernos tenha contribuído para a abertura deste espaço ou, por outro lado, também pode ser que o emprego institucionalizado de um instrumento de controle mais violento tenha estimulado a prática de mais violência. O que veio primeiro nesse círculo vicioso é coisa indefinível. Estabelece-se, hodiernamente, uma política criminal cujo eixo é a identificação dos criminosos como inimigos. É verdade que vivemos um momento em que o nível de violência das quadrilhas e bandos chegou a um ponto insuportável, mas também é verdade que uma das contribuições essenciais para que se chegasse a isso é a escolha, por parte do Estado, de uma política criminal igualmente violenta.[3]
Nessa linha de raciocínio surgiu a teoria de Jakobs, uma vez que pretendeu criar uma separação do Direito Penal do Cidadão, do chamado Direito Penal do Inimigo, tratando, assim de forma diferenciada os cidadãos e os inimigos do Estado.
Em verdade, filósofos como Rousseau, Kant, Fitche e Hobbes, embora jamais tenham utilizado a expressão “direito penal do inimigo”, fundamentavam o Estado como um contrato e quem não o cumprisse estaria cometendo delito e, por conseguinte não participa mais dos benefícios estatais. Aquele que não está em conformidade com o Estado, ataca o direito social, está em guerra com este e, portanto, deixa de ser um membro do Estado[4].
A respeito das primeiras palavras de Jackobs sobre a teoria, Muñoz Conde[5] comenta que:
Desde que em outubro de 1999, durante um congresso realizado em Berlim, o professor Günther Jakobs, então catedrático de Direito Penal na Universidade de Bonn, anunciou ao mundo, urbi et orbi, a “má notícia” de que nas sociedades democráticas haveria que se admitir, ao lado de um Direito Penal do cidadão, um “Direito Penal do inimigo” (Feindstrafrecht), em cujo âmbito, a fim de manter a “segurança cognitiva”, dever-se-iam limitar ou excluir alguns dos princípios característicos do Direito Penal de um Estado de Direito. Para Jakobs, inimigos seriam os criminosos econômicos, terroristas, delinquentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais de alta potencialidade lesiva. Assim, o inimigo seria aquele que se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias reais de que vai continuar fiel à norma e as regras do Estado.
Pelo exposto, não é forçoso concluir que a teoria apresenta um discurso discriminatório, pois estabelece uma classificação dos chamados “inimigos”, uma vez que condena certas classes sociais ou delinquentes pela sua condição pessoal – antecedentes, personalidade, caráter, conduta social e motivos que os levaram a delinquir e etc. Por óbvio, trata-se de uma doutrina preconceituosa, racista (de origem nazista), uma vez que nega a qualidade de pessoa ao rotulado inimigo.
Assim, para a teoria haveria dois direitos: o Direito Penal do Cidadão para as pessoas comuns (criminosos comuns que têm todos os seus direitos e garantias protegidos) e o Direito Penal do Inimigo que seria aplicado àqueles que se apresentam como verdadeiros inimigos do Estado, sendo-lhes retirada qualquer garantia penal ou processual, uma vez que são vistos como uma ameaça.
Para os defensores de Jackobs[6]:
O Estado não deve reconhecer os direitos do inimigo, por ele não se enquadrar no conceito de cidadão. Consequentemente, não pode ser tratado como pessoa, pois entendimento diverso colocaria em risco o direito à segurança da comunidade. O inimigo, assim, não pode gozar de direitos processuais, como o da ampla defesa e o de constituir defensor, haja vista que, sendo uma ameaça à ordem pública, desconsidera-se sua posição de sujeito na relação jurídico-processual. Possível, inclusive, a sua incomunicabilidade. Em uma guerra, o importante é vencer, ainda que para isso haja deslealdade com o adversário.
As principiais características da teoria são as seguintes:
1. Aumento da gravidade das penas para além da ideia de proporcionalidade, aplicando inclusive “penas draconianas”;
2. Abolição ou redução ao mínimo das garantias processuais do imputado, tais como o direito ao devido processo, a não fazer declaração contra si próprio, à defesa técnica, etc.;
3. Criminalização de condutas que não implicam verdadeiro perigo para bens jurídicos concretos, adiantando a intervenção do Direito Penal, ainda antes da conduta chegar ao estado de execução de um delito.[7]
Ao tratar-se do tema em solo pátrio, não se tem como negar que normas no direito interno estão contaminadas pela ideia do Direito Penal do inimigo, conforme, se percebe, por exemplo, na Lei nº 10.792/2003 que alterou a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), quando introduziu no ordenamento jurídico o chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
Neste regime, o preso será recolhido em cela individual, pelo prazo máximo de 360 dias, sendo que nesse período, o detento tem direito a visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e igual período diário de banho de sol, conforme prevê o artigo 52 da Lei de Execuções Penais.[8]
Vislumbra-se que tal instituto considera o apenado “inimigo” da sociedade, pelo qual passa a receber um tratamento degradante, contrário à dignidade humana. Ademais há uma limitação de visitas e a redução de horários de banhos de sol, assim, a referida norma apresenta-se como uma expressão do chamado direito penal simbólico.
Outras críticas poderão ser apresentadas à criação do RDD, uma vez que o artigo 50, em seus parágrafos 1º e 2º, estabelece:
§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (grifos nossos)
Ora, pela redação percebe-se que o legislador pouco se preocupou com as garantias individuais do condenado, pois qual seria o conceito de alto risco? Qual seria a definição de fundadas suspeitas?
Por óbvio, há uma afronta aos princípios constitucionais da igualdade e legalidade, nessa linha aduz Busato[9]:
A imposição de uma fórmula de execução da pena diferenciada segundo características do autor relacionadas com “suspeitas” de sua participação na criminalidade de massas não é mais do que um “Direito penal de inimigo”, quer dizer, trata-se da desconsideração de determinada classe de cidadãos como portadores de direitos iguais aos demais a partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de controle. A adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de determinado tipo de autor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e “inimigos”.
Outra legislação bastante criticada é a Lei nº 9.614/98 apelidada de “Lei do Abate”, a mesma alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86) e prevê em seu art. 4º que “a aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição”[10].
A norma autoriza à destruição de aeronaves “suspeitas” de tráfico de drogas, assim, sem necessidade de grandes interpretações, é notório que a chamada “Lei de Abate” ofende aos direitos fundamentais, especialmente ao direito à vida, à liberdade, á ampla defesa, o contraditório e ao devido processo legal[11].
Sobre o tema, pergunta-se: Pode uma norma infraconstitucional criar a pena de morte no Brasil? Tal norma não sofreu reflexos da Teoria do Inimigo de Jackbs?
Sobre o tema, Lima[12] menciona que a Lei do Abate, além de ser inconstitucional, deixa em perigo a vida de inocentes, porque várias aeronaves, embora não estejam transportando materiais ilícitos ou mesmo drogas, poderão não se identificar para os pilotos de Abate, desacatando assim à ordem de pouso, por conta de diversas razões a exemplo da falta de equipamentos apropriados. Mesmo assim, os ocupantes daquela aeronave sejam os pilotos e passageiros não poderiam ser condenados à morte por se tratar de uma suspeita, sem direito a defesa, ao contraditório e sem ao menos um julgamento leal.
Para evitar maiores delongas, dispensam-se comentários a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072-90), uma vez que fora feita às pressas atendendo à pressão da impressa e social. Cabe destacar que vários dispositivos já foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, a estipulação do cumprimento da pena em regime inicialmente fechado com fundamento apenas nos aspectos inerentes ao tipo penal, no reconhecimento da gravidade objetiva do delito e na formulação de juízo negativo em torno da reprovabilidade da conduta delituosa.
Por fim, os reflexos do Direito Penal do Inimigo não só afetam o Legislativo brasileiro, pois cada vez mais se vislumbra à sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, como, por exemplo, a fixação de penas desproporcionais para salvaguardar a credibilidade do próprio poder.
Percebe-se, ainda, que existem diversas violações aos direitos e garantias individuais, uma vez que inúmeras prisões preventivas são decretadas sob o fundamento da gravidade do crime, do clamor social, da credibilidade da justiça, da reincidência do autor, dentre outras fundamentações esdrúxulas e arbitrárias.
Ademais, existem aqueles que almejam atingir os holofotes da mídia, também são comuns os excessos de medidas judiciais (interceptações telefônicas e quebras de sigilos) sem o devido amparo dos requisitos da cautelaridade.
Importante esclarecer que ao rechaçarmos a teoria do Direito Penal do Inimigo não se está defendendo a abolição das penas, a impunidade, a não aplicação do Direito Penal aos bens jurídicos mais relevantes. Assim, não se está levantando a bandeira “do não punir”, pelo contrário, defende-se a aplicação do Direito Penal dentro das garantias constitucionais e do devido processo legal.
Nessa linha, entende-se que a função do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito é a defesa da Constituição e de seus princípios fundamentais, destarte, o Jus Puniendi há de ser aplicado de forma igualitária, não interessando as características pessoais do autor ou a sua classe social.
Gize-se que não é papel do Direito Penal fomentar a violência, pelo contrário, o seu papel é a proteção dos bem jurídicos mais importantes.
Por fim, cabe lembrar que a Constituição de 1988 reconhece expressamente a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, assim não há amparo jurídico para a aplicação da teoria do Direito Penal do Inimigo em solo tupiniquim.
˜
[1] SANTANA. Marcos Sílvio de. A pena como instrumento de controle social. LFG. 15 dez. 2008. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081209143455922&query=oberto>.Acesso: 27 jun. 2016.
[2] BUSATO, Paulo César. HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal: fundamentos para um sistema penal democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 20.
[3] Ibidem.
[4] ALENCAR, Antônia Elúcia. A inaplicabilidade do direito penal do inimigo diante da principiologia constitucional democrática. 2010. Disponível em: http://idecrim.com.br/index.php/artigos/76-a-inaplicabilidade-do-direito-Penal-do-inimigo-diante-da-principiologia-constitucional-democratica
Acesso: 27 jun 2016.
[5] CONDE, Francisco Munõz. As origens ideológicas do Direito Penal do inimigo. Revista Justiça e Sistema Criminal. V1, n2, jul/dez. 2009. Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009.
[6] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – parte geral. 8ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 2014. p. 182.
[7] JAKOBS, Gunther; MÉLIA, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 22.
[8] BRASIL, Lei 7.210/1984. In: Vade Mecum. 22 ed. São Paulo: Rideel. 2016.
[9] BUSATO, Paulo César. Regime disciplinar diferenciado como produto de um Direito Penal de inimigo. Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12561-12562-1-PB.pdf. Acesso em: 27 jun 2016.
[10] BRASIL. LEI 9.614/98. In: Vade Mecum. 22 ed. São Paulo: Rideel. 2016
[11] ALENCAR, Antônia Elúcia. A inaplicabilidade do direito penal do inimigo diante da principiologia constitucional democrática. 2010. Disponível em: http://idecrim.com.br/index.php/artigos/76-a-inaplicabilidade-do-direito-Penal-do-inimigo-diante-da-principiologia-constitucional-democratica. Acesso: 27 jun 2016.
[12] LIMA, Fernando. 2004. Disponível em: http://www.profpito.com/inabat.html. Acesso: 27 jun 2016.
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