Olá pessoal, tudo certo?
Como vocês já devem ter percebido, essa reta final de primeiro semestre de 2022 tem sido profícuo no que tange à aprovação de teses criminais na sistemática de repetitivos pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça.
Nessa toada, destacarei no presente texto mais uma novidade importantíssima. Refiro-me, especificamente, ao TEMA 1121, definido pelo colegiado à unanimidade, no julgamento do REsp 1.959.697/SC. De acordo com o Tribunal Superior, temos que:
“Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), INDEPENDENTEMENTE da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)” (grifos nossos)[1].
Dentro de um contexto de maturidade social, observa-se que o tema relativo ao abuso sexual especialmente praticado em desfavor do público infanto-juvenil vem se enquadrando como uma das principais preocupações e objetos de políticas públicas e de preocupação criminal. Não sem razão. Para além da relevância do bem jurídico e do impacto na vida das vítimas, trata-se de modalidade delituosa extremamente difícil de se quantificar e identificar, mormente porque as mais recentes pesquisas estatísticas apontam que, em sua maioria, esses comportamentos ilícitos se materializam no interior dos lares e, somados ao frequente silêncio assustado das vítimas, contribuem sensivelmente para a “cifra negra das estatísticas”.
Em um emblemático caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, a Corte analisou a conduta de um homem que beijara uma criança de 5 anos de idade, colocando a língua no interior da boca, anotando que tal comportamento caracterizaria sim o crime de estupro de vulnerável. Como bem registrado pelo Ministro Marco Aurélio, à ocasião:
“Para determinadas idades, a conotação sexual não é uma questão de sexo, é uma questão de poder, de abuso de poder, de abuso de confiança. Uma criança de 5 anos não entende exatamente a questão sexual. Os reflexos disso só vão ser sentidos muito depois, quando ela chegar na fase de adolescência quando
começar a ter contato físico. Os reflexos disso são comprovados cientificamente. Para a pessoa conseguir se relacionar bem e ter confiança em outras pessoas, a dificuldade é muito grande. A vítima, tendo cinco
anos, não é uma questão só – e teve aqui – de conotação sexual. Não foi um único beijo, como foi dito da tribuna. Aqui, nas palavras da vítima, por parte da psicóloga: “quando o Ronaldo a beijou, ele fungou na minha boca”. A vítima mostrou como o averiguado fez e “respirando de forma ofegante, excitada, hum-hum-hum”, diz aqui. Ou seja, a conotação para ele foi essa, abusando da confiança de uma criança de cinco anos deidade.
Independentemente de entendermos que a pena-base é alta ou não, o fato típico existe. Não há como, a meu ver, com o devido respeito, desclassificar para molestação – que não tem essa conotação. A Subprocuradora-Geral bem disse, o Brasil é um dos países que tem uma das maiores violências sexuais contra a criança. No começo de janeiro, foi iniciada uma grande campanha contra a violência sexual e o turismo
sexual, porque, não raras vezes, as crianças que sofrem violência sexual bem novas acabam, depois, sendo levadas à prostituição infantil. O Brasil está no meio de uma grande campanha em relação a isso.
Lamentavelmente, isso ainda é, no Brasil, uma chaga, em vários locais, as pessoas se aproveitarem da intimidade, da confiança que têm com crianças, seja do sexo masculino, seja do sexo feminino, para se
aproveitarem sexualmente dessas crianças”[2].
Nessa toada, é correto apontar que os Tribunais Superiores pátrios militam no sentido de que a maior ou menor superficialidade dos atos libidinosos, a intensidade do contato ou a virulência da ação criminosa não são critérios relevantes para a tipificação do delito em questão. Havia um debate relativo à possibilidade ou não de desclassificação para a contravenção de importunação ofensiva ao pudor. Aparentemente superada, a controvérsia voltou com a superveniência do crime, no Código Penal, tipificado no art. 215-A[3] (crime de importunação sexual), especificamente conflitando com a especialidade do art. 217-A do CP[4], que possui o elemento especializante “menor de 14 anos“, e também pelo princípio da subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu preceito secundário in fine.
No crime do art. 215-A do CPB, a falta de anuência da vítima não pode consistir em nenhuma forma de constrangimento. Do contrário, restará configurado o crime de estupro, ante a presença do verbo nuclear do tipo do art. 213 do CP.
IMPORTANTE! Em se tratando de estupro de vulnerável, curial destacar não haver propriamente um constrangimento à prática de atos sexuais. Não existe sequer presunção de constrangimento ou de violência. Em verdade, o intento do legislador foi punir – pura e simplesmente – a prática de atos de libidinagem com vulnerável, nos termos legais. Portanto, diversamente do que ocorre no crime de estupro, aqui o constrangimento NÃO é elemento especializante.
É válido anotar que a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça anotou que eventual admissibilidade de desclassificação do estupro de vulnerável para o crime de importunação sexual atentaria à Constituição Federal de 1988, quando prevê que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente” (art. 227, §4º), além da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, a qual impõe a adoção de medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra “todas” as formas de abuso. Admitir a mencionada desclassificação significaria, potencialmente, aceitar a realização de suspensão condicional do processo, em face da pena mínima do delito do art. 215-A do CP.
Pedro, mas essa orientação não pode conduzir-nos a situações absolutamente injustas ou desproporcionais?
Esse tema é delicadíssimo e muito controvertido. Nesse ponto, aliás, não passou ao largo do debate enfrentado no âmbito da Corte Superior. Contudo, o Ministro Ribeiro Dantas (Relator), registrou que “o fato é que a opção legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos. Assim, embora possa não parecer a melhor, essa opção não é de todo censurável, pois, veja-se, como leciona a doutrina, o abuso sexual contra crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública, não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo“. Nesse sentido, “não é somente a liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança”[5].
Tema absolutamente importante e que, indubitavelmente, será objeto de vários questionamentos em provas de carreiras jurídicas.
Atualize o seu material!
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido.
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] REsp 1.959.697-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 08/06/2022 – Tema 1121).
[2] HC 134591, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 01/10/2019.
[3] Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
[4] 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
[5] REsp 1.959.697-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 08/06/2022 – Tema 1121.
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