Um dos temas mais controvertidos e espinhosos envolvendo do direito do trabalho e a pandemia da Covid-19 consiste na harmonização entre a tutela da vida e da saúde dos trabalhadores e a necessidade de prosseguimento das atividades econômicas.
O caso envolve uma ação civil pública ajuizada pelo Sindicato em face dos Correios. Inicialmente, os Correios editaram uma norma interna chamada de “Primeira Hora”, pela qual uma vez identificado caso confirmado de Covid na unidade de trabalho, todos os empregados deveriam ser liberados por 15 dias para realização de trabalho remoto.
Posteriormente, com o avanço da vacinação e outras medidas de combate, editou nova medida, segundo a qual identificado algum caso de coronavírus, somente serão afastados, para realização de trabalho remoto, aqueles que trabalham em um raio de 2 (dois) metros do trabalhador infectado e não mais todos os empregados da unidade.
A intenção do Sindicato autor é restabelecer o teor da antiga norma, por ser mais vantajosa. Assim, o objeto da controvérsia cinge-se a essa alteração específica do protocolo interno.
A 1ª Turma do TST foi instada a julgar a adequação das novas medidas adotadas pelo empregador, tendo em vista os princípios que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro, a começar pelos princípios de caráter humanístico e social presentes na Constituição Federal de 1988 que integram a estrutura do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e do emprego e a inviolabilidade do direito à vida.
O acórdão lembra que a arquitetura principiológica do texto constitucional se ramifica para abranger, por derivação, a melhoria das condições de trabalho, mormente a redução dos riscos a ele inerentes por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, da Constituição Federal); a preservação da segurança e saúde dos trabalhadores no meio ambiente de trabalho (Convenção nº 155 da OIT); e o princípio da precaução, formalizado na Constituição Federal de 1988 (Capítulo VI, destinado à tutela ambiental).
Lembrou que a Lei n.° 13.979/2020 prevê, entre outras medidas, o isolamento domiciliar, exames médicos e testes laboratoriais como medidas a serem adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública.
A decisão entendeu, primeiramente, que a determinação de testagem laboratorial para a Covid-19 de forma indiscriminada, como pretendeu o Sindicato-autor, de forma a abranger inclusive os trabalhadores assintomáticos, além da ausência de recomendação técnica, contraria o disposto no item 12.11 da Portaria Conjunta nº 20/2020 do Ministério da Economia e da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, segundo o qual “Não deve ser exigida testagem laboratorial para a COVID-19 de todos os trabalhadores como condição para retomada das atividades do setor ou do estabelecimento por não haver, até o momento da edição deste Anexo, recomendação técnica para esse procedimento”.
Esclareceu a decisão que todos os cuidados de higiene e assepsia na rotina e trabalho foram implementados na primeira normatização interna e permaneceram em vigor na atual normatização, cuja alteração substancial foi apenas a relacionada à flexibilização das regras de distanciamento que, de forma alguma, contrariam as recomendações de saúde pública.
Além dos fundamentos acima, a decisão levou em consideração o fato de que a ECT, empresa pública com personalidade jurídica de direito privado, embora se equipare à Fazenda Pública para diversos fins, exerce atividade econômica e se sujeita às regras de direito privado nas relações com particulares (art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal).
Por isso, ponderou a decisão que a realidade da empresa no mercado não pode destoar das demais empresas que executam atividades econômicas correlatas, ligadas ao segmento de encomendas, atualmente explorado pelo setor privado da economia e aberto à concorrência.
Nessa ordem de ideias, decidiu que exigir da ECT, sem respaldo legal, comportamento superior ao exigido da totalidade das empresas que atuam em atividade similar e concorrente, proporciona o desequilíbrio da livre concorrência garantido no inciso IV do art. 170 da Constituição Federal.
Lembrou, ainda, a existência de atividades postais incompatíveis com o trabalho remoto (principalmente na triagem, entrega de objetos e atendimento à população). Além disso, conforme já mencionado, trata-se de serviço público essencial, daí a necessidade de se buscar o equilíbrio entre as medidas preventivas à Covid-19 e seus impactos na atividade econômica.
Outrossim, bem observou que a despeito da realidade pandêmica sem precedentes, novas práticas de prevenção de contágio estão sendo implementadas. A paralisação completa de uma unidade de distribuição dos Correios até que todos os empregados realizem testes laboratoriais, o que inclui o prazo de diagnóstico e a possibilidade de retestagem, diante de resultados inconclusivos, não se mostra a medida mais razoável, a considerar a essencialidade do serviço prestado pela ECT.
Por tudo isso, entendeu que as medidas adotadas pela empresa ECT encontram suporte nas normas de saúde pública, mormente no que diz respeito ao isolamento domiciliar e ao distanciamento social de dois metros, tendo o empregador se desvencilhado do seu dever de “cumprir e fazer cumprir” as normas de segurança e medicina do trabalho, bem como instruir os empregados quanto às precauções a serem tomadas para evitar doenças ocupacionais, nos termos do art. 157, incisos I e II, da CLT.
Por fim, vale destacar interessante trecho da ementa, que bem harmoniza os interesses em conflito: “Não obstante, passados quase dois anos de pandemia, com a vacinação de grupos sociais prioritários, as medidas protetivas mais enérgicas merecem alguma flexibilização, até para que a sociedade volte à normalidade ou, o mais próximo possível desse desiderato, pois é indiscutível que as medidas restritivas mais enérgicas dificultam a interação social, o desenvolvimento das atividades econômicas e até mesmo aquelas que podem ser consideradas de utilidade pública”.
Resumo dos principais argumentos da decisão que permitiu a flexibilização das regras de distanciamento
- Já se passaram quase dois anos de pandemia, com a vacinação de grupos sociais prioritários, por isso as medidas protetivas mais enérgicas merecem alguma flexibilização,
- Necessidade social de volta à normalidade, ou o mais próximo possível desse desiderato, pois é indiscutível que as medidas restritivas mais enérgicas dificultam a interação social, o desenvolvimento das atividades econômicas e daquelas consideradas de utilidade pública.
- A ré elaborou um protocolo especial, denominado “Protocolo de Medidas de Prevenção ao COVID-19 – Coronavírus”, contendo diversas previsões e medidas que correspondem ao que foi definido nas normas legais e nas orientações técnicas.
- As novas regras do protocolo interno de medidas preventivas, estabelecidas pela ECT, encontram previsão na Lei n.º 13.979/2020, pois foi mantido o distanciamento social, não mais com a previsão inicial de afastamento de todo o efetivo da unidade/agência, e sim de afastamento apenas dos empregados que trabalham a um raio de distanciamento de até 2 metros do empregado que testou positivo, por 15 dias, o que não desrespeita as orientações técnicas.
- Dois aspectos essenciais ainda foram sopesados: i) a ECT presta serviço essencial de forma exclusiva (serviço postal); e, ii) concomitantemente, exerce atividade econômica (entrega de encomendas) e se sujeita às regras de direito privado nas relações com particulares (art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal).
- A paralisação completa de uma unidade de distribuição dos Correios, até que todos os empregados realizem testes laboratoriais, o que inclui o prazo de diagnóstico e a possibilidade de retestagem, diante de resultados inconclusivos, não se mostra a medida mais razoável, a considerar a essencialidade do serviço prestado pela ECT (vale lembrar a existência de atividades postais incompatíveis com o trabalho remoto – triagem, entrega de objetos e atendimento à população).
- A realidade do lado comercial da ré no mercado não pode destoar das demais empresas que executam atividades econômicas correlatas, ligadas ao segmento de encomendas, atualmente explorado pelo setor privado da economia e aberto à concorrência.
- Exigir da ECT, sem respaldo legal, comportamento superior ao exigido da totalidade das empresas que atuam em atividade similar e concorrente, proporciona desequilíbrio da livre concorrência, garantido no inciso IV do art. 170 da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido.
O acórdão integral do caso acima pode ser encontrado a partir dos dados processuais: RR-429-17.2020.5.10.0016, 1ª Turma, Relator Ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, DEJT 22/10/2021.