Direito da Sociedade – Direitos fundamentais e a teoria do Tatbestand alargado

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Caras e caros colegas,

Vimos semana passada que um dos principais constitucionalistas Portugueses, J.J. Gomes Canotilho, dedicou-se a trabalhar os conceitos de âmbito de proteção e de âmbito de garantia efetiva no contexto das possibilidades de restrições aos direitos fundamentais. Na oportunidade, enfatizamos a existência de mais uma dicotomia na teoria do direito administrativo: a teoria interna e a teoria externa.

Dando continuidade ao tema, hoje iremos expor os principais argumentos utilizados para criticar essa perspectiva dicotômica. Começaremos com o argumento da contradição lógica, utilizado reiteradamente pela teoria interna, segundo o qual não pode haver uso abusivo de um direito, já que “um e o mesmo ato não pode ser simultaneamente conforme o direito e contrário ao direito”. Dito de outra forma, “se um conteúdo X é o conteúdo verdadeiro deste direito, então exige-se para X os efeitos jurídicos desse direito (CANOTILHO, 2006, p. 350-351)”.

Nesse contexto, a teoria principialista postula uma visão menos radical, segundo a qual  “o conteúdo, prima facie, de um direito pode não ser o seu conteúdo definitivo quando, em virtude de um juízo de ponderação concreto, houver necessidade de o restringir, conferindo maior peso a outros bens ou direitos (CANOTILHO, 2006, p. 351)”.

Há também o argumento de ideais irrealistas, segundo o qual a teoria externa está fora da realidade, pois não existiriam direitos sem limites. Canotilho (2006) ressalta que, na realidade, segundo a teoria externa, apenas prima facie os direitos seriam ilimitados, mas sempre existiriam restrições que incidem sobre o âmbito de proteção, o que geraria um âmbito de garantia efetivo como consequência dessas limitações.

Já, de acordo com o argumento de ideais extrajurídicos, existem  “dimensões positivistas dirigidas contra a invocação de validade de princípios jurídicos ou de ideias de ‘direito’ fora do sistema de direito politicamente implantado”. Distingue-se, portanto, o direito vigente dos ideais de valor jurídico-político, que não seriam normas jurídicas. Esses ideais seriam os princípios, que podem ser considerados direitos a partir da ideia de direitos fundamentais como princípios.

O quarto argumento é o da vinculação comunitária, segundo o qual as teorias externas desprezam as dimensões comunitárias. Canotilho (2006) discorda dessa crítica, pois “a teoria externa não pretende dizer mais do que isso: primeiro nascem os direitos e as normas garantidoras destes direitos e depois estabelecem-se normas restritivas destes direitos” (CANOTILHO, 2006, p. 353). Essas normas restritivas possuiriam vinculações comunitárias razoavelmente intensas.

De acordo com o argumento da liberdade constituída, por sua vez, afirma-se que, na teoria externa, o legislador seria entendido como agente da restrição, passando a ser encarado como “inimigo” dos direitos. Aqui, mais uma vez Canotilho (2006) defende a teoria externa, afirmando que:

“com a ideia de direitos prima facie e de direitos definitivos, a teoria externa permite reconstruir a tarefa do legislador com uma tarefa de ponderação (otimizadora, harmonizadora) irreconduzível a uma caricatura de ‘legislador limitador’ inimigo dos direitos” (CANOTILHO, 2006, p. 354).

Canotilho (2006) ainda nos fala do argumento do “pensamento espacial”, para o qual a teoria externa seria uma teoria espacial, pois defenderia a ideia de um espaço onde se localizaria o direito e as restrições seriam uma espécie de invasão deste espaço. Ele afirma, ainda, que o argumento teria razão de ser se a teoria externa fosse apenas uma lógica espacial, mas não o é, a menção a “âmbitos” seria apenas uma linguagem metafórica. Em suas palavras,

“a concretização dos direitos constitucionais pessoais ou dos direitos civis de personalidade, pressupõe, é certo, a delimitação e um programa normativo que, muitas vezes, parece ser reconduzível a um ‘espaço de estatuição’ acoplado a um ‘espaço de realidade’. Trata-se de uma linguagem metafórica, que outra coisa não diz nem pode dizer senão a de que na metódica das restrições e intervenções restritivas é necessário lidar com ‘âmbitos’ de proteção e ‘âmbitos’ de garantia cuja delimitação é teologicamente orientada” (CANOTILHO, 2006, p. 354-355).

O sétimo argumento elencado pelo constitucionalista luso é o da hierarquia de normas, segundo o qual a teoria externa toleraria restrições aos direitos constitucionais por normas de hierarquia inferior, as leis, ou seja, as leis ordinárias se sobreporiam a normas constitucionais. Segundo ele, essa é uma argumentação redutora, pois, na realidade, o legislador busca ponderar os direitos e evitar colisões. Além disso, a visão dicotômica superior/inferior; ordinário/constitucional seriam insuficientes por não considerar que a dimensão básica de muitos direitos é a ‘abertura material’ e o seu ‘peso principal’ inevitavelmente postuladores de tarefas de concordância e de ponderação. Por isso, Canotilho (2006) aplaude a doutrina do direito civil ao tratar da colisão entre direitos de personalidade, direitos de liberdade de expressão e de criação artística. Para o autor,

“a questão central não é a de saber se os direitos em causa têm caráter ‘constitucional’ ou simplesmente ‘ordinário’, mas sim como decidir como é que nas relações intersubjetivas de pessoas iguais os direitos se ‘conformam’, se ‘conciliam’, se ‘limitam’ e se ‘realizam” (CANOTILHO, 2006, p. 356).

Temos também o argumento da deslealdade, que faz a seguinte acusação ao sistema: “promete-se muito e acaba-se dando pouco”. A teoria externa criaria, então, ilusões. Canotilho (2006) defende a teoria externa, dizendo apenas que ela pressupõe que os limites dos direitos dependeriam dos direitos em colisão e do respectivo peso nas condições concretas.

O argumento da força legitimadora, por sua vez, questiona que força teria um direito sobre o qual paira a ameaça de redução a zero. Canotilho (2006) responde que

o argumento prova de mais e prova de menos. Prova de menos, ao afirmar que um direito eventualmente sujeito a restrições e intervenções restritivas mais ou menos significativas perde por completo a sua força legitimadora. Prova de mais, pois sugere que a exclusão do âmbito do direito de determinados comportamentos, atos ou situações, impede casos de conflito e torna supérfluas tarefas de ponderação (CANOTILHO, 2006, p. 357).

Já o argumento de inflação de pretensões subjetivas defende que “insistir nos direitos e ocultar os limites origina escaladas crescentes de pretensões”. Para o autor, esse argumento tem mais relação com o “alargamento dos pressupostos”, ou seja, com a teria do tatbestand alargado. Dito de outra forma, a questão é muito mais sobre alargar, ampliar pressupostos do que sobre a teoria externa, pois, segundo esta, não se afirma que os direitos são ilimitados na realidade nem se desprezam os direitos dos outros ou as vinculações comunitárias.

Segundo a teoria do tatbestand alargado (expressão de origem germânica que significa “fatos”), todas as dimensões dos direitos fundamentais, que possam ser integradas nos pressupostos das normas, devem ser consideradas cobertas pelo âmbito normativo desses direitos, pois não é possível estabelecer limites apriorísticos, em abstrato a tais direitos, ou seja, a teoria do tatbestand alargado propõe que rejeitemos a teoria dos limites imanentes, natos, naturais, dos direitos fundamentais.

Por fim, temos o argumento da força vinculativa, o qual defende que a teoria externa seria obrigada a recorrer à concepção principiológica dos direitos, sob pena de prejudicar sua operacionalidade prática. Nesse contexto, Canotilho (2006) ressalta que o preço a pagar por uma teria principialista dos direitos pode ser elevado, pois,

“se, por um lado, os direitos como princípios alicerçam uma metódica de concretização aberta à ponderação e balanceamento segundo o peso específico dos direitos nas circunstancias concretas, isto é feito à custa da relativização da força vinculativa dos próprios direitos. (…) Além disso, a acentuação principialista dos direitos desloca para os tribunais a garantia do direito que deveria ser obtida logo a nível da mediação concretizadora do legislador democrático” (CANOTILHO, 2006, p. 358).

Em uma tentativa de conclusão, podemos dizer que as dogmáticas das restrições de direito que são desenvolvidas no direito constitucional e no direito civil não podem chegar a soluções materiais muito diferentes nos quadros da mesma ordem jurídica livremente constituída e no quadro da mesma ordem axiológica-jurídica.

Segundo Canotilho (2006), se alguma diferença existe, talvez seja a de que a teoria externa e a do tatbestand alargado permitem uma adaptação melhor aos desafios da inclusividade e da multiculturalidade, com os quais hoje se defronta a justiça constitucional, do que a teoria interna e a do tatbestand restrito, sedimentadas em sociedades civis tendencialmente mais homogêneas.

Bem, espero que tenham gostado.

Sigamos sempre com foco, força e fé.

Até breve.


 

Referências

CANOTILHO, J.J. Gomes. Dogmática de direitos fundamentais e direito privado. In SARLET, Ingo W. (coord). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª edição. São Paulo: Livraria do Advogado, 2006, págs. 341-359.


 

Chiara Ramos

Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito. 


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