Caso Nadia Eweida: compliance, dress code, dever de adaptação razoável e discriminação religiosa no trabalho

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No dia 15 de janeiro de 2013 a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) julgou interessante caso envolvendo diversos temas de direito do trabalho, tais como compliance, dress code e discriminação religiosa no âmbito laboral. Trata-se do emblemático “Case of Eweida and others v. The United Kindgom”.

Em apertada síntese, a decisão final reconheceu o dever de acomodação razoável em favor de uma empregada cristã, no contexto de uma relação empregatícia firmada com a companhia aérea britânica British Airways, como adiante se explicará.

A companhia aérea British Airways possuía uma política de vestimenta (dress code) que proibia seus empregados de deixarem a mostra adereços de cunho religioso, tais como colares com crucifixo. Na parte do regulamento da empresa que tratava da política de vestimentas havia uma seção intitulada “acessórios femininos”, com os seguintes dizeres:

Qualquer acessório ou roupa que o funcionário, por motivos religiosos, esteja obrigado a usar, deve sempre ser coberto pelo uniforme. Se, no entanto, isso for impossível, dada a natureza do objeto e a maneira como ele deve ser usado, então será necessária a aprovação, por meio da liderança local, da adequação do projeto para assegurar a conformidade com padrões dos uniformes, a menos que tal aprovação já esteja incluída na guia uniforme. Nota: outros objetos não são aceitáveis para serem usados com o uniforme. Se pedirá a retirada de qualquer objeto de joalheria que não se ajuste à normativa.

Nesses casos, quando um empregado era advertido por vestir um elemento ou objeto que não cumpria com a normativa sobre o uniforme de trabalho, era prática da empresa pedir ao empregado a retirada do objeto em questão ou, se necessário, voltar para a sua casa e trocar de roupa. Ainda, o tempo dedicado pelo empregado para corrigir sua vestimenta era deduzido de seu salário.

Mesmo sabendo que a política de vestimenta da empresa vedava especificamente a utilização visível adornos religiosos, no dia 20 de maio de 2006, Nadia compareceu ao trabalho vestindo um colar que continha um pequeno crucifixo de prata, pelo que sua superior hierárquica determinou que a cruz fosse colocada por baixo do lenço do uniforme, de modo a ficar oculta para o público. Inicialmente, a empresa se opôs, mas logo depois resolver cumprir a ordem.

Em 7 de setembro de 2006, Nadia compareceu novamente ao trabalho vestindo o crucifixo, mas dessa vez se negou a cumprir a ordem de sua superior para que a cruz ficasse escondida, mesmo advertida de que se não o fizesse seria enviada para casa, sem direito aos salários.

Em razão de tal conduta a empresa determinou à empregada que fosse para sua casa, sem direito à remuneração até que ela resolvesse trabalhar sem o seu colar. Tempos depois, voltou a trabalhar porque a companhia passou a permitir o uso da cruz.

Já em 23 de outubro de 2006, a empresa lhe ofereceu um trabalho administrativo, sem contato com o público, que não requeria o uso de uniforme, mas a empregada rechaçou a oferta.

O caso foi duramente criticado na mídia e, em 24 de novembro de 2006, a empresa British Airways resolveu rever sua política de vestimentas em relação ao uso de símbolos religiosos e passou a permitir o uso de crucifixos.

Eweida regressou ao trabalho em 3 de fevereiro de 2007, com permissão para usar a cruz segundo a nova política. Sem embargo, a empresa se negou a indenizar a empregada pelos salários não recebidos no período de tempo no qual ela decidiu não ir trabalhar.

Diante dos fatos, Nadia ajuizou, em dezembro de 2006, ação contra a British Airways alegando que sofreu discriminação religiosa indireta. Alegou ainda violação de seu direito em manifestar sua religião, assegurado no art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos – CEDH.

Os tribunais ingleses julgaram improcedentes os pedidos, sob o fundamento de que a política de vestimenta da empresa não colocava os empregados cristãos, especialmente Nadia, em desvantagem em relação aos demais empregados não cristãos que não utilizam seus símbolos em formas de joias. Ainda, os tribunais ingleses entenderam que o código de vestimentas era legítimo, pois visava resguardar a imagem da empresa e promover o reconhecimento de sua marca.

Trata-se, a toda vista, de um conflito entre o direito fundamental do indivíduo em poder manifestar suas crenças religiosas, inclusive perante terceiros, e o direito da empresa em projetar uma certa imagem corporativa.

Nadia Eweida apresentou então uma queixa perante a Corte Europeia de Direitos Humanos contra o governo do Reino Unido, alegando violação do art. 9º da CEDH, que trata da liberdade de pensamento, de consciência e de religião:

Art. 9º, 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.

A Corte decidiu que a política da British Airways não equilibrava de forma justa as crenças religiosas de seus empregados e o desejo da empresa de projetar uma certa imagem corporativa, razão pela qual entendeu violado o art. 9º da CEDH. Entendeu ser sim legítimo o objetivo da empresa, mas que os tribunais ingleses deram um peso demasiado a essa pretensão, até porque o crucifixo da empregada era discreto.

O Tribunal considerou que o comportamento da empregada foi uma manifestação de sua crença religiosa que deve ser protegida com base no art. 9º da CEDH e que a conduta da empresa de não a deixar trabalhar consubstanciou-se em ingerência indevida em seu direito de manifestar sua religião.

Outrossim, como já dito, a sentença também se fundamentou na chamada “reasonable accommodation” (dever de acomodação ou adaptação razoável), assim entendida como a obrigação imposta ao empregador para por fim a qualquer situação de discriminação baseada em deficiência, religião, idade ou qualquer outro motivo.

Como exemplos, pode-se mencionar o dever de adaptação da estação de trabalho para as limitações funcionais do empregado; garantia de day off nos feriados religiosos; garantia de ferramentas de ensino adequadas para alunos desabilitados ou com comportamentos desordenados; modificação do menu para pessoas com dietas restritivas, dentre outras situações.

Somente não haverá a obrigação de acomodar nos casos de “undue hardship”, ou seja, nos casos de dificuldade indevida, como por exemplo quando o custo é muito alto para uma empresa absorver; quando a acomodação interfere substancialmente no funcionamento adequado da organização ou, ainda, quando prejudica significativamente a segurança alheia ou infringe os direitos dos outros.

Como não se tratava de dificuldade indevida, a Corte, ao final, concluiu que as autoridades nacionais inglesas não protegeram de maneira suficiente o direito da empregada a manifestar sua religião, vulnerando a obrigação positiva prevista no artigo 9º da CEDH.

A título de compensação, a empregada foi indenizada em lucros cessantes pelo período no qual ficou sem trabalhar, bem como por danos morais, pois a CEDH considerou que a violação de seu direito de manifestar sua crença religiosa causou a Eweida uma angústia, frustração e sofrimento considerável.

 


Carolina Marzola Hirata. Procuradora do Trabalho. Ex-Procuradora do Estado de Goiás. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil pela PUC-Minas. Mestre em Direitos Fundamentais Coletivos e Difusos pela Unimep. Autora de livros e artigos jurídicos. Professora do Gran Cursos On Line nas disciplinas de Processo do Trabalho e Regime Jurídico do Ministério Público da União e em cursos de pós-graduação.

Raphael Miziara. Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pela UDF. Especialista em Direito do trabalho e governança global pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha). Advogado. Professor na Faculdade Baiana de Direito e em cursos de Pós-Graduação em Direito.

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