Este artigo pretende, de forma bem direta, discutir se o contrato típico de fiança pode ser ou não oneroso.
Fiança é o contrato por meio do qual o fiador se obriga a satisfazer uma obrigação de outrem (afiançado) no caso de inadimplência deste. As partes desse contrato são duas: o fiador e o credor da obrigação garantida. Note que o afiançado não é parte do contrato de fiança.
Trata-se de um contrato típico disciplinado pelos arts. 818 e ss do CC.
A doutrina é uníssona em assentar a gratuidade da fiança como uma característica desse contrato, pois o fiador não recebe nenhum proveito econômico da outra parte (o credor, e não o afiançado).
Há, porém, certa imprecisão doutrinária quando se trata das situações em que o fiador recebe uma remuneração paga pelo afiançado para se tornar garante.
De um lado, há quem sustente que excepcionalmente a fiança pode ser onerosa na hipótese de o fiador ser remunerado, ainda que essa remuneração seja paga pelo afiançado (que sequer é parte do contrato de fiança). Haveria aí uma onerosidade especial, pois a remuneração é paga por alguém que não é parte do contrato de fiança. Nessa linha, invocamos a autoridade de Flávio Tartuce (2020, pp. 521-522), que ensina que,
… em alguns casos, a fiança é onerosa, recebendo o fiador uma remuneração em decorrência da prestação de garantia da dívida. Isso ocorre em fianças prestadas por instituições bancárias, que são remuneradas pelo devedor para garantirem dívidas frente determinados credores. O valor da remuneração, na maioria das vezes, constitui uma porcentagem sobre o valor garantido. (…). Em verdade, o que se percebe as fianças bancárias é uma situação atípica. Tanto isso é verdade que o negócio é celebrado entre fiador e devedor.
No mesmo sentido, os professores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho, citando Silvio Rodrigues, salientam que (Gagliano e Pamplona Filho, 2020, p. 764):
Excepcionalmente, todavia, a fiança poderá ser onerosa, caso o fiador seja remunerado. Tal retribuição, dada a natureza sui generis desse contrato, ausente a característica geral do sinalagma, há de ser efetuada pelo próprio afiançado, ou seja, quem se onera não é o credor – parte do contrato de fiança –, mas o devedor afiançado. Trata-se de uma onerosidade especial, sem dúvida, a exemplo do que ocorre na fiança bancária, pois o onerado não é parte do contrato.
Em igual sentido, está Maria Helena Diniz, que, após salientar que a “gratuidade é da natureza da fiança e não de sua essência”, anota que nada impede que o fiador exija uma remuneração, caso em que “a fiança será onerosa” (Diniz, 2012, p. 609, CC).
Outrossim, Carlos Roberto Gonçalves, após apontar a gratuidade como uma característica da fiança, afirma que “pode a avença assumir caráter oneroso, quando o afiançado remunera o fiador pela fiança prestada, como acontece comumente no caso das fianças bancárias e mercantis e até mesmo entre particulares, como se verifica nos anúncios em jornais” (Gonçalves, 2019, p. 568)
Essa primeira corrente não deixa claro se essa “fiança onerosa” seria o contrato típico do Código Civil ou não. A leitura dos respeitados doutrinadores dessa corrente não dá clareza plena, mas apenas dá uma intuição de que eles teriam admitido a fiança típica do CC como sendo passível de ser onerosa.
De outro lado, entendemos que a fiança (pelo menos, o contrato típico disciplinado pelo Código Civil) é necessariamente gratuita. As regras dele partem desse pressuposto, a exemplo da proibição de interpretação restritiva (art. 819, CC). Há, porém, outros contratos (geralmente atípicos) por meio dos quais se paga alguém para que se torne fiador, mas esse não é o contrato típico de fiança.
A título ilustrativo, citamos casos conhecidos como o “seguro-fiança”, por meio do qual a seguradora recebe um valor (prêmio) para, no caso de inadimplência de uma obrigação (sinistro), pagar a quantia estipulada (cobertura securitária). Aí não há fiança, e sim, um contrato de seguro.
Semelhantemente, as chamadas “fianças bancárias”, mencionadas na supracitada lição de Flávio Tartuce, representam, na verdade, contratos atípicos firmados entre o devedor e o fiador por meio do qual este, em troca da remuneração, assume o dever de celebrar um contrato de fiança com o credor. Nessas operações, há, pois, dois contratos: (1) o contrato atípico entre o devedor e o fiador; e (2) o contrato típico de fiança firmado entre o fiador e credor. O fato de ambos os contratos estarem no mesmo instrumento é apenas uma “união de contratos”, fruto de uma conveniência meramente formal das partes. Há, pois, dois contratos.
Assim, entendemos que a fiança (contrato típico do CC) sempre é gratuita, embora ela possa ser conexa a um contrato atípico e oneroso por meio do qual o fiador assume o dever de celebrar a fiança em troca de uma remuneração.
Nesse sentido, podemos citar Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, que afirmam que a dita “fiança onerosa”, de que é exemplo a popular fiança bancária, “é certamente atípica, pois a relação se estabelece diretamente entre fiador e devedor, e não entre aquele e o credor” (Farias e Rosenvald, 2015, p. 1.023).
Igualmente, Fábio Ulhoa Coelho (2010, pp. 267-268) chama a atenção para a gratuidade da fiança, embora, em conexão a esse contrato, o fiador pode ter celebrado um contrato com o devedor para assumir o dever de se tornar fiador em troca de uma remuneração.
Paulo Lôbo, citando Pontes de Miranda, acena para essa corrente também, ensinando (Lôbo, 2019, pp. 424-425):
O contrato de fiança é, por sua natureza, gratuito, pois é negócio jurídico benéfico. (…) Tem sido admitida a fiança onerosa, que refoge ao sentido tradicional da fiança, quando o devedor contrata a fiança mediante pagamento de determinado valor e durante tempo certo, principalmente com instituição financeira, também denominada de carta de fiança. Todavia, para Pontes de Miranda (1972, v. 44, p. 112), a onerosidade que se atribui à fiança não a faz fiança onerosa, sendo elemento estranho; há, necessariamente, outro negócio jurídico, ainda que no mesmo instrumento, que atribui ao fiador contraprestação pelo seu ato de ser fiador. De natureza distinta é o seguro-fiança, como espécie de contrato de seguro, cujo evento a ser indenizado é o não pagamento da dívida pelo devedor.
Em suma, preferimos essa segunda corrente, no sentido da gratuidade do contrato de fiança típica e da sua possível conexão com algum contrato atípico e oneroso (o qual pode ou não ter sido formalizado no mesmo instrumento da fiança), apesar vários respeitados doutrinadores – sem deixar claro se a dita “fiança onerosa” é ou não um contrato típico do CC – acabarem por sinalizar para a primeira corrente. Diante do dissenso (ou imprecisão) doutrinário, eventual questão objetiva de concurso afirmando que a fiança pode ser onerosa merece ser anulada[1].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, 3: contratos. São Paulo: Saraiva, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: contratos. São Paulo: Atlas, 2015.
FLÁVIO, Tartuce. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
STOLZE, Pablo. Novo curso de direito civil, volume 4: tomo II: contratos em espécie. São Paulo: Saraiva, 2015.
[1] Em concurso público, foi considerada correta a seguinte afirmativa com base na primeira corrente, apesar de entendermos que essa questão merecia ser anulada diante do dissenso doutrinário:
(VUNESP/Juiz – TJSP/2018 – adaptada) O contrato de fiança é celebrado entre o fiador e credor do afiançado, podendo ser gratuito ou oneroso, mas o fiador, se como tal demandado, poderá compensar sua dívida com a de seu credor ao afiançado.
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