Analisaremos hoje um tema bastante negligenciado pelos estudantes, mas que se encontra no meu rol de apostas para aparecerem nas provas vindouras do ano de 2021 (e não serão poucas). Refiro-me à possibilidade ou não de fixação de multa em desfavor de advogado que abandona – injustificadamente – um processo.
De acordo com o art. 265 do Código de Processo Penal, “o defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis”.
A interpretação que vem se dando ao dispositivo acima colacionado é no sentido de que “o não comparecimento de advogado a audiência sem apresentar prévia ou posterior justificativa plausível para sua ausência, pode ser qualificado como abandono de causa que autoriza a imposição da multa prevista no art. 265 do CPP” (AgRg no RMS 55.414/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 25/06/2019).
Configura-se o abandono da causa se os advogados, sem juntar aos autos comunicação de renúncia de seu mandato, deixam de atuar em diversas ocasiões, causando prejuízo ao réu, por deixarem de comparecer à audiência, sob o pretexto de que o réu (seu cliente) não lhes havia fornecido meios financeiros para o deslocamento, e se não apresentam alegações finais no prazo fixado pelo magistrado de 1º grau.
Recentemente, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o art. 265 do CPP, restando assim ementada a compreensão:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CAPUT DO ART. 265 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. APLICAÇÃO DE MULTA DE DEZ A CEM SALÁRIOS MÍNIMO AO ADVOGADO QUE ABANDONA INJUSTIFICADAMENTE O PROCESSO, SEM COMUNICAÇÃO PRÉVIA AO JUÍZO. CONSTITUCIONALIDADE. DISPOSIÇÃO LEGAL QUE VISA ASSEGURAR A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA, A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E O DIREITO INDISPONÍVEL DO RÉU À DEFESA TÉCNICA. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. (ADI 4398, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 28-09-2020 PUBLIC 29-09-2020).
É que, para o STF, o papel desempenhado pelo advogado, especialmente no âmbito do processo penal, é indispensável, não havendo como se ter por ilegítima previsão legislativa de sanção processual pelo abandono do processo pelo profissional do direito, cuja ausência impõe prejudicialidade à administração da justiça, à duração razoável do processo e ao direito de defesa do réu. A conduta sancionada pelo art. 265do Código de Processo Penal é clara. Trata-se de situação descrita com especificidade suficiente a se interpretar a sua ocorrência quando o advogado deixa de atuar na defesa do réu (abandona) injustificadamente, sem comunicação prévia ao juízo.
De acordo com abalizada doutrina, “ (…) o artigo trata de situação em que a não continuidade na causa deva ser comunicada com antecedência ao juiz. Além dessa previsão legal, o EOAB prevê que, em situações de advogados constituídos, a renúncia ao exercício do mandato deve ser comunicada ao contratante com antecedência de 10 dias, salvo se antes do escoamento de tal prazo houver a constituição de novo defensor (art.5º, § 3º). Diante desses regramentos, sustenta-se que o abandono da causa é algo distinto do exercício do direito de renúncia, pois enquanto o primeiro pode significar conduta deontologicamente reprovável e até sancionável pelos órgãos de classe censores (Ordem dos Advogados do Brasil e Defensoria Pública), uma vez não apresentado qualquer motivo (quando menos o “imperioso” previsto no dispositivo), o exercício do direito de renúncia ao patrocínio dos interesses do acusado não é decisão censurável, pois se encontra não só regrada em lei como lícita, como é perfeitamente admissível, dada a não compulsoriedade a que qualquer advogado se eternize à frente da condução de qualquer defesa”[1].
Vale registrar, ademais, que o art. 265 do Código de Processo Penal contém previsão de sanção processual pelo abandono do processo, sem impedir que a Ordem dos Advogados do Brasil possa punir, se for o caso, o profissional que compõe os seus quadros administrativamente. A parte final do art. 265 do Código de Processo Penal esclarece que a multa é aplicada “sem prejuízo das demais sanções cabíveis”. O comportamento exigido pelo art. 265 do Código de Processo Penal para a não aplicação da multa nele prevista é que o advogado comunique ao juízo antes de deixar a defesa do réu ou informe a impossibilidade de prática dos atos processuais que lhe cabem.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça analisou novamente o tema, ao julgar o AgRg no RMS 64.313/MG, em 6 de outubro de 2020, anotando pela constitucionalidade do dispositivo, referendando tal compreensão com a improcedência da ADI 4398 (STF), acima mencionada. Consignou-se que a multa do art. 265 do Código de Processo Penal tem natureza processual e não impede eventual censura por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, não havendo que se falar em usurpação da competência disciplinar do órgão de classe ou em dupla punição pelo mesmo fato (AgRg nos EDcl no RMS 57.492/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 21/05/2019).
Destacou-se ainda que “toda profissão legalmente exercida deve ser remunerada e não se olvida que o profissional liberal depende de seus honorários para sobreviver. No entanto, existe um procedimento correto e amparado na boa-fé objetiva para o recebimento de pagamento por serviços prestados e ele não se coaduna com a inércia em relação ao cumprimento de deveres profissionais, sem prévia comunicação a quem de direito, assumindo o risco de causar graves prejuízos ao contratante, ainda que esteja ele eventualmente inadimplente” (AgRg nos EDcl no RMS 54.291/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2017).
Não há como se acolher a justificativa de que o contrato avençado entre o réu e os causídicos somente estabeleciam o compromisso de acompanhar o processo pelo prazo de um ano, se, mesmo após substabelecerem os poderes recebidos e após o alegado fim do prazo avençado no contrato de serviços advocatícios, os advogados continuaram por mais dois anos a apresentar manifestações nos autos. De mais a mais, o contrato celebrado entre as partes não exime o advogado da obrigação, da qual tem ciência até por dever de ofício, de renunciar expressamente ao mandato que lhe fora outorgado, comunicando tanto seu cliente quanto o Juízo[2].
Tema muito legal, pouco abordado e, tenho certeza, aparecerá nas próximas provas!
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente.
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] VEIRA, Renato Stanziola. “Comentário ao art. 265”. In:GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, AlbertoZacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique (Coord). Código deProcesso Penal comentado. 2. ed. São Paulo: Thomson ReutersBrasil, 2019
[2] AgRg no RMS 64.313/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 15/10/2020
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