Dois livros habitaram a minha cabeceira durante a semana passada: A importância do ato de ler, de Paulo Freire, e uma História da Leitura, de Alberto Manguel. O primeiro é uma coletânea de três artigos que enfatizam a alfabetização de adultos e a experiência das bibliotecas populares. Tem um viés politizado e social – como já se espera do autor, um educador comprometido com essas questões. O segundo é uma análise histórica – mas não só isso! – do processo da leitura, desde a invenção da escrita na Mesopotâmia, no quarto milênio antes de Cristo. Já conhecia os dois livros, mas sempre encontro um novo olhar sobre livros já lidos. Ou minha memória é curta e sempre posso ter o prazer de ler um livro ou assistir a um filme duas vezes com a mesma emoção da primeira. Algum filósofo disse que a memória é inimiga da felicidade. Acho que foi Niestzsche, e acho que, neste caso, ele tinha razão.
O fato é que as leituras me conduziram a uma reflexão: se a leitura é tão importante – e sobre isso não há contestações -, como orientá-la? Qual o papel da escola nesse processo, não de alfabetizar, mas de formar leitores capazes de entender verdadeiramente o que leem? Na verdade, minha reflexão era mais pontual: Como o professor de língua portuguesa deve ensinar a interpretar texto? É possível ensinar isso?
Sim, claro! Sempre achei que qualquer coisa pode ser ensinada, mesmo aquelas que achamos que são mais dom do que técnica (desenho, música). No caso da interpretação de texto, que está além da leitura, mas não prescinde desta, há que se valorizar mais um conjunto de habilidades do que um rol de conteúdos. Não se interpretam textos com base em teorias de signo linguístico, tipos de linguagem ou nomenclatura sobre figuras de linguagem. É claro que esses elementos ajudam, mas nem de longe me parecem suficientes. A leitura está muito além disso.
E, quando falo leitura, não falo só das questões de interpretação de texto da prova. Que são muitas, aliás: na prova da primeira fase do CACD de 2016, havia 41 itens que envolviam interpretação de texto – de um total de 56 itens de língua portuguesa. É muito prestígio que esse tópico do edital tem, não é mesmo? Alguns (poucos) desses itens estabelecem diálogo com questões gramaticais, sobretudo os que envolvem reescritura textual. Fiz as contas por aqui: 71% da prova de língua portuguesa do CACD de 2016 cobraram interpretação de texto! Quem há de negar a importância de se preparar para essas questões?
Mas por que motivo se privilegia tanto isso? Fácil: os textos são o portal que nos conduzem a todos os saberes! Inclusive os necessários ao ingresso na carreira diplomática.
Os textos perpassam todo o processo de aprendizagem e avaliação de conteúdo: você precisa deles para aprender as matérias exigidas e tem de passar por eles para provar que aprendeu. Leitura e interpretação não são, portanto, conteúdos exclusivos da prova de língua portuguesa, como alguns podem ingenuamente pensar.
Para ser um bom leitor, é preciso dominar certas habilidades, pois o entendimento da mensagem exige que se considere a intenção do autor, a significação vocabular e as relações de articulação entre as partes do texto. Entre essas habilidades, estão:
- Ter domínio de vocabulário.
O examinador pode até perdoar o fato de você não saber o que é anadiplose (para não correr o risco – quem quer brincar com a sorte? – eis o significado: repetição de uma palavra na frase ou verso que imediatamente se lhe segue), mas é inaceitável não conhecer a semântica de termos como deletérios ou axiomático, que estão, a propósito, na prova de 2016. - Saber diferenciar fato de opinião.
Essa habilidade é imprescindível ao bom leitor, já que, se não existir, muita coisa que não passa de mero juízo de valor dos autores será recebida como fato. Somos todos capazes de imaginar o desastre que isso significa para a formação do cidadão crítico e autônomo. - Identificar os termos referenciais e seus referentes.
Imagino um candidato deparando-se com um item de prova : “Progressão difere de promoção: esta é a passagem do servidor para o padrão imediatamente superior dentro da classe ou categoria atual de sua Carreira Funcional.; aquela, a passagem do servidor para o padrão imediatamente superior dentro da classe ou categoria atual, de sua Carreira Funcional”. A afirmação está errada, mas para saber disso o candidato precisa não só conhecer a lei que trata desse assunto, mas também os referentes dos pronomes esta (promoção) e aquela (progressão). Só depois de entender os mecanismos de coesão, pode-se o conhecimento na área de direito administrativo. - Reconhecer as relações de sentido estabelecidas pelos operadores sequenciais.
Veja o seguinte tema: A qualidade da democracia aumenta na medida em que a população se escolariza. O que você faria se estivesse na sua prova da segunda fase do CACD: desenvolveria a relação de proporcionalidade entre escolarização da população e qualidade da democracia? Ou discorreria sobre por que a escolarização influencia a qualidade da democracia? Acerta quem opta pela relação de causa (e não de proporcionalidade), já que a locução conjuntiva na medida em que introduz oração causal.
- Depreender informações implícitas.
Um dos textos da prova de português faz a seguinte afirmação: “Os problemas econômicos brasileiros – que decorrem da crise política no País – serão solucionados com políticas interventivas do Estado”. O examinador, concentrando-se nesse trecho, propõe o seguinte item: De acordo com o texto, se não fosse a crise política no Brasil, o País não teria problemas econômicos.
E você, o que faz? Lê as entrelinhas, claro! Se a oração adjetiva (no caso, “que decorrem da crise política do País”) está entre vírgulas, logo ela tem caráter explicativo. Se ela tem caráter explicativo, logo todos os problemas econômicos brasileiros decorrem da crise política no País. Se a crise política no País é causa de todos os problemas econômicos brasileiros, logo… a conclusão é naturalmente lógica: se não fosse essa crise, o Brasil não teria problemas econômicos.
Sabemos, claro, que isso é uma inverdade do ponto de vista econômico-histórico, já que nossos problemas econômicos são (muito) anteriores à crise. Mas a questão, frise-se, não é de atualidades, é de leitura! Então, o que está em jogo são as informações veiculadas no texto, não a pertinência dessas informações em relação ao mundo real.
Veja que o domínio da língua é necessário para ter competência de leitura. Mas não é suficiente! É preciso treinar essas habilidades – e muitas outras. Como são adquiridas (e não natas), há modos de você se instrumentalizar para desenvolvê-las. Parafraseando Simone de Beauvoir: ninguém nasce leitor, torna-se leitor. Boas leituras e bons estudos!
Tereza Cavalcanti – Professora de língua portuguesa desde 1984. Formada pela Universidade de Brasília em 1986 (Letras – Português), com especialização em Literatura Brasileira pela mesma instituição e em Docência para Ensino Superior pelo IESB. Trabalhou em educação regular (ensino médio e superior) e em cursos preparatórios para vestibular durante vinte e cinco anos. Há vinte anos, dedica-se à preparação para concurso público, ministrando aulas de gramática, interpretação de texto, redação oficial e redação discursiva. Aprovada em diversos concursos (Secretaria de Educação, Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Colégio Militar, Correios, IF-DF, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal Militar), encontrou nas aulas para concurso sua verdadeira vocação e tem-se dedicado exclusivamente a essa área há dez anos.
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