Olá, pessoal! Tudo certo? Espero que sim.
Neste artigo buscarei tratar de uma tese que é usada reiteradamente e que foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, fato que demonstra como ainda vivemos em um país pautado por inúmeros tipos de preconceitos: a tese da legítima defesa da honra.
Para aqueles que não me conhecem, sou Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais e, atualmente, sou a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher na cidade de Passos.
Infelizmente, dentro da minha rotina, é comum que investigados homens cheguem à Delegacia, seja porque foram presos em flagrante, seja apenas para o interrogatório, e afirmem: “Mas, Dra., eu não sou criminoso. Apenas dei uma surra nela. Afinal, estou no meu direito de corrigir a minha mulher.”
Enfim, vou poupá-los de outras atrocidades que escuto.
Bom, de modo geral, podemos dizer que os avanços legais em busca da proteção da mulher vieram impulsionados por movimentos sociais, pela doutrina e, também, pela jurisprudência. Assim, no fim do texto, vocês poderão compreender como a decisão dada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 779 é positiva para evitar a impunidade daqueles que violam os direitos das mulheres e ainda acham que “estão no seu direito”.
Por meio da análise de diversos diplomas legais no Brasil e no mundo, é certo que a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de obter a sua “cidadania”. Batalhava para escolher a própria nacionalidade, por poder ter a plena capacidade civil e pelo direito de participação política, por intermédio do direito de votar e de ser votada.
Nesse contexto, considerando que a mulher era (muitas vezes ainda é) tratada basicamente como uma propriedade do seu marido, surgiu, no âmbito jurídico, a tese da legítima defesa da honra.
Essa tese afirma que o homem que descobrisse um adultério ou uma traição praticada por sua esposa/companheira poderia defender a sua “honra masculina”, seja por meio de agressões ou até mesmo consumando um feminicídio, uma vez que estaria agindo em legítima defesa da sua honra.
Lamentavelmente, essa teoria imputava às vítimas a causa de sua morte, ou seja, reforçava que a honra de um homem valeria mais do que a vida da sua esposa/companheira. É evidente que o reconhecimento dessa tese incentivava a prática de novas violações à dignidade das mulheres.
Percebe-se que honra e vida são bens jurídicos de hierarquias completamente diferentes. O fato de muitas vezes o homem conseguir a absolvição no Tribunal de Júri alegando a legítima defesa da sua honra deixa claro que a vida da mulher era considerada menos importante do que a honra do homem.
Todavia, tecnicamente falando, não há nenhuma legítima defesa na tese que tem o nome de “legítima defesa da honra”. Explico.
Sabemos que a legítima defesa é positivada nos artigos 23, inciso II, e 25, ambos do Código Penal, e que ela é uma causa de exclusão da ilicitude. Vejamos:
Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
II – em legítima defesa;
Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
A partir da análise do instituto e dos dispositivos legais que tratam da legítima defesa, conseguimos compreender que os seus requisitos são:
- usar moderadamente dos meios necessários;
- para repelir injusta agressão;
- a agressão deve ser injusta, atual ou iminente;
- com a finalidade de preservar direito seu ou de outrem;
- e obviamente, o agente deve saber que se encontra em uma situação que o ampara a utilizar a legítima defesa.
Considerando os requisitos acima apresentados, podemos concluir que a tese da “legítima defesa da honra” nada tem de legítima defesa. Isso porque a traição não é considerada uma “injusta agressão”. Grande parte da doutrina também afirma que não há, no caso em tela, a finalidade de preservar direito seu ou de outrem, uma vez que a traição é uma atitude que se encontra no campo moral/ético.
No mais, soma-se a isso o fato de o artigo 28 do Código Penal dispor que a emoção e a paixão não podem excluir a imputabilidade penal.
Ultrapassada a crítica à nomenclatura da tese, vamos entender os fundamentos jurídicos que fizeram o Supremo Tribunal Federal a declarar inconstitucional.
Resumindo: por que a tese da legítima defesa da honra deve ser considerada como inconstitucional?
- O art. 226, § 8º, da CF/1988, determina uma postura do Estado de preservar cada integrante da família, a saber: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”
- A tese é ofensiva à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualdade e à vida (a tese da legítima defesa da honra viola o art. 1º, III, o art. 3º, IV, e o art. 5º, LIV, da Constituição Federal).
Vejam o teor da decisão do Supremo Tribunal Federal, que, por unanimidade, julgou:
O Tribunal, por unanimidade, referendou a concessão parcial da medida cautelar para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator. Os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux (Presidente) e Roberto Barroso acompanharam o Relator com ressalvas. A ressalva do Ministro Gilmar Mendes foi acolhida pelo Relator. Falaram: pelo requerente, o Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti; pelo interessado, o Ministro José Levi Mello do Amaral Junior, Advogado-Geral da União; e, pelo amicus curiae Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, a Dra. Eliana Calmon. Plenário, Sessão Virtual de 5.3.2021 a 12.3.2021.
Por isso, o STF entendeu que a chamada “legítima defesa da honra” não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio e não pode ser usada, sob pena de nulidade do ato, no momento pré-processual ou processual, inclusive no bojo do Tribunal do Júri.
Essa decisão do Supremo Tribunal Federal não viola a plenitude de defesa existente no Tribunal do Júri? Bom, vejam bem: a garantia da plenitude de defesa no Júri não pode ser um instrumento para a salvaguarda de práticas ilícitas. Afinal de contas, nenhum direito é absoluto.
Portanto, se a defesa do acusado utilizar a tese da legítima defesa da honra, durante o Plenário do Júri, e os jurados absolverem o acusado, poderá o Ministério Público (ou o assistente de acusação) interpor o recurso de apelação com base no artigo 593, inciso III, alínea “a”.
No mais, ressalto que o caminho pela busca da proteção à mulher no Brasil, obviamente, não foi e não é linear. Existe retrocesso, avanço e ficamos entre perdas e ganhos de direitos fundamentais/direitos humanos.
Desse modo, podemos concluir que a decisão do STF, no bojo da ADPF n. 779, foi acertada e reflete a preocupação dos membros da Suprema Corte Brasileira de residirem e julgarem casos em um país que ocupa as primeiras posições no ranking do feminicídio.
Por fim, espero que tenham gostado do texto e que estejam conseguindo manter o foco durante este período difícil da pandemia. Sugiro que vocês conheçam a nossa equipe de GranXperts para que possamos auxiliá-los com metas específicas de estudo, organizando todo o seu processo de aprendizado.
Para qualquer dúvida, encontro-me à disposição. Contem sempre comigo.
Mariana Fioravante Romualdo – Delegada de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais e GranXpert da Carreira de Delegado(a) de Polícia no Gran Cursos Online.
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