Por Rafael Dantas | Juiz Federal
O terrível acontecimento que se passou recentemente na Avenida Paulista, onde um homem ejaculou sobre uma jovem, que jamais consentiu esse ato, acendeu rumoroso debate sobre a violência contra a mulher e os mecanismos jurídicos para coibir essas condutas.
Houve justificado clamor público decorrente da soltura do agressor, horas depois, em audiência de custódia, por ausência de tipicidade para o crime de estupro, sob a alegação de não ter havido nem constrangimento, nem violência.
A realização da Justiça passa ao largo de um tecnicismo gramatical, pois envolve compreender, na teleologia e na sistemática jurídica, como funciona a proteção ao bem jurídico, no caso, a dignidade sexual da mulher.
Dados estatísticos apenas demonstram o óbvio, que a mulher é a pessoa mais vulnerável em casos de crimes sexuais, constituindo a imensa maioria de suas vítimas.
Tendo-se esses dados como norte comprovado, cabe-nos, como sociedade e como juristas, compor uma sistemática de proteção, de modo a prevenir, garantir, punir e evitar ataques sexuais, de qualquer natureza, contra as mulheres.
É dessa forma que a civilização brasileira deve se apresentar, por meio de um pacto social, em que pessoas, ideias e instituições repudiam um estado de natureza selvagem, de modo a garantir uma vida digna a todos os seres humanos, independentemente de seu gênero.
Nossa principal norma, a Constituição Federal, já aduz em seus primeiros artigos a principiologia que abrange a dignidade da pessoa humana em uma sociedade livre, justa e solidária, que repudia todo preconceito e discriminação.
Diante desse cenário constitucional, como explicar que aquele que ejaculou sobre a jovem no ônibus viu-se livre momentos depois, de modo que, após algumas horas, voltou a delinquir contra outra mulher?
Não há outra conclusão senão a de que o sistema jurídico de proteção à mulher falhou miseravelmente.
Percebe-se, de início, o costume de culpar a inércia do legislador, em relação a criar um mecanismo jurídico moderno para a proteção às mulheres.
Mas será que essa crítica pode servir como desculpa para deixar livre um reiterado agressor sexual?
Não a nosso ver.
Mesmo depois de editada a Constituição Federal, em 1988, a sociedade brasileira vem passando por mudanças, que exigem uma nova conformidade na interpretação e na aplicação de direitos e garantias.
Dentre essas exigências está a necessidade de melhor proteção à mulher, o que terminou por ocorrer, ao menos juridicamente, após a vergonhosa exposição internacional do país, no caso que redundou na impunidade do agressor de Maria da Penha.
Em meio à severa pressão nacional e internacional, editou-se a Lei n. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que trouxe um novo patamar para a proteção da mulher.
Não parece correto restringir as normas protetivas da Lei Maria da Penha às circunscritas situações decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Pergunta-se: seria constitucional definir formas de violência contra a mulher na Lei Maria da Penha para aplicá-las somente em situações domésticas e familiares contra a mulher? Parece correto deixá-la desprotegida em todas as outras situações?
Vale destacar, nesse particular, o que o preâmbulo da Lei Maria da Penha dispõe sobre o alcance e a mens legis por trás das normas.
Esse preâmbulo determina que a Lei Maria da Penha vem regulamentar o § 8º do Art. 226 da Constituição Federal, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Para os fins desse texto, vale destacar o contido na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará (sim, aconteceu aqui no Brasil, em 1994).
Como se está diante de tratado internacional que versa sobre direitos humanos, trata-se de, no mínimo, norma supralegal, de modo que deve, ao menos, nortear a aplicação das leis aos casos concretos.
Observe o que dispõe a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, quanto à definição de violência.
Artigo 2
Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:
b. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar.
A mera leitura da norma da Convenção de Belém do Pará já evidencia que a interpretação da palavra “violência”, quando a mulher é vítima, ganhou nova dimensão.
Voltando ao crime de estupro contra a mulher, percebe-se que adotar a tradicional compreensão de que a elementar “violência” configura apenas o desforço físico empregado contra a vítima significa ignorar a Constituição Federal e os tratados internacionais adotados pelo Brasil.
Nesse sentido, a elementar violência não significa “apenas” socos, golpes musculares ou uso de armas contra a mulher estuprada. Essa elementar “violência” tem, atualmente, nova estatura em seu significado.
Veja o que estabelece a Lei Maria da Penha, quanto à violência sexual contra a mulher.
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Não seria aquele asqueroso ato do agressor do ônibus na Avenida Paulista uma violência contra a mulher?
Sob o aspecto do constrangimento, a vítima não queria ser objeto da lascívia do agressor, isso aconteceu a contragosto dela.
O auge do ato sexual do delinquente a atingiu fisicamente, algo que, muito além de a intimidar, a humilhou severamente.
Por epítrope, pode-se aventar que o Art. 7º da Lei Maria da Penha tem sua aplicação circunscrita à violência doméstica e familiar contra a mulher, de modo que não poderia ser utilizado para configurar o crime de estupro, no caso da Avenida Paulista.
Fosse assim, o próprio preâmbulo da Lei não abrangeria os tratados internacionais ali descritos, os quais vão além da proteção doméstica e familiar.
Mas vamos à aplicação prática desse mesmo Art. 7º, porém em uma situação patrimonial.
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
IV—a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Nessa esteira, cabe observar a aplicação desse inciso IV, nas escusas absolutórias, previstas nos arts. 181 a 183 do Código Penal.
Essas escusas absolutórias afastam a incidência criminal em específicas situações de crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça.
O debate envolve o afastamento das escusas absolutórias em situações de crimes em que a mulher é vítima.
Explica-se. O Art. 183 do Código Penal revela que não se aplicam as escusas em casos em que tenha havido grave ameaça e violência contra a pessoa.
Imaginemos o seguinte caso: um companheiro, indignado pela ruptura do relacionamento, furta os instrumentos de trabalho da mulher e os destrói.
Tratou-se de violência contra a pessoa? Incide a escusa absolutória?
Quando da edição do Código Penal, em 1940, incidia a escusa absolutória, pois o furto, gramaticalmente, não traz em suas elementares a violência.
Façamos novamente a pergunta, hoje. Com uma nova Constituição e com tratados internacionais, regulamentados pela Lei Maria da Penha, muito mais nova que o Código Penal.
Responde-se: faz sentido, hoje, afastar o crime desse companheiro que furtou e destruiu os instrumentos de trabalho da mulher? É essa a contemporânea política criminal?
A resposta é óbvia. Não e não. O direito penal deve funcionar conforme a Constituição Federal e para a sociedade.
O caos legislativo e a inércia do Congresso Nacional em promover uma legislação minimamente decente não nos autoriza a desproteger as mulheres.
É preciso interpretar e alcançar o sentido das normas que temos, de modo a satisfazer a dignidade da pessoa humana.
Por esses motivos, compreende-se que houve, sim, crime de estupro no caso que ocorreu dentro de um ônibus na Avenida Paulista, pois ejacular em uma mulher é ato de constrangimento, praticado com violência, cujo significado está descrito em Lei e em Tratado Internacional.
Temos os instrumentos, temos os conhecimentos, temos os mecanismos e temos também a coragem para dizer e impor o seguinte: não se tolera mais nenhuma agressão sexual contra a mulher!
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