Bagatela imprópria – princípio da (des)necessidade da pena ou irrelevância penal do fato.

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Olá pessoal, tudo certo?

Ao contrário do que frequentemente se verifica em sede doutrinária, não se pode confundir os conceitos entre os princípios da Desnecessidade da Pena e os da Insignificância. Enquanto esse envolve aspectos da tipicidade material, o primeiro se vincula ao caráter de causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa de pena (em razão de sua desnecessidade, como o próprio nome indica, à luz do caso concreto analisado).

Trata-se, em última análise, da chamada infração bagatelar imprópria. Ao contrário da própria, vinculada à insignificância, ela nasce relevante ao Direito Penal – porque existe um efetivo desvalor da conduta e do resultado, mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresentar-se-ia completamente desconectada e irrelevante.

Ressalte-se que tais observações não são produtos de invenções incoerentes e teses carentes de substratos, mas antes uma apreciação direta do texto legal do Código Penal Brasileiro, a partir de uma interpretação consonante com o espírito e postulados constitucionais vigentes. Anote-se que o substrato legal do reconhecimento dos delitos de bagatela imprópria está plasmado no art. 59 do CPB:

Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, ESTABELECERÁ, CONFORME SEJA NECESSÁRIO E SUFICIENTE PARA REPROVAÇÃO E PREVENÇÃO DO CRIME: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

Nesse caminhar, curial, pois, indicar que o reconhecimento do princípio da desnecessidade da pena ou da irrelevância penal do fato não é extralegal (como boa parte da doutrina especializada aponta), mas ao contrário, tem amparo expresso no teor do capitulado no dispositivo supratranscrito.

Para que se reconheça a infração bagatelar imprópria e a consequente incidência do postulado da DESNECESSIDADE DA PENA ao caso concreto, o magistrado deverá se ater a elementos importantes, tais como os aspectos pessoais do agente e do próprio fato em deslinde). Nesse diapasão, é mister atentar, dentro outros, ao ínfimo valor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos ou devolução do objeto (crimes patrimoniais), reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter sido preso ou ter ficado preso por um período (…).

Reconhecendo a importância do instituto e sua viabilidade na prática cotidiana na seara criminal, impera-se trazer à baila o escólio do eminente professor Luiz Flávio Gomes:

O fato em apreço amolda-se, claramente, às circunstâncias exigidas para a aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, que cuida de infração bagatelar imprópria (aquela que nasce relevante para o Direito penal – porque há desvalor da conduta e desvalor do resultado, mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária). Não se pode confundir o princípio da insignificância com o princípio da irrelevância penal do fato: aquele está para a infração bagatelar própria assim como este está para a infração bagatelar imprópria. Cada princípio tem seu específico âmbito de incidência (cf. L.F.GOMES, Princípio da insignificância, RT). O da irrelevância penal do fato está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena. Assim, ao “furto” de dez reais deve ser aplicado o princípio da insignificância (porque o fato nasce irrelevante). Ao “roubo” de dez reais, já que estão em jogo bens jurídicos sumamente importantes, como a integridade física, aplica-se o princípio da irrelevância penal do fato (se presentes os seus requisitos).

Para que se reconheça esse último princípio (assim como a desnecessidade ou dispensa da pena), há múltiplos fatores a serem analisados (…) É certo que não se faz necessária a concorrência de todos esses fatores. Tudo deve ser analisado pelo juiz em cada caso concreto e o fundamento jurídico para o reconhecimento deste princípio reside no art. 59 do CP, visto que o juiz, no momento da aplicação da pena, deve aferir sua suficiência e, antes de tudo, sua necessidade (…).

A dogmática, muitas vezes, consegue andar mais rápida que a (conservadora) jurisprudência. No nosso livro Princípio da insignificância (RT) procuramos demonstrar a diferença inequívoca entre o princípio da insignificância e o princípio da irrelevância penal do fato. O TJMG acertou na absolvição, mas deveria ter aplicado o princípio da irrelevância penal do fato (não o da insignificância). O STJ, da mesma forma, poderia (em tese) ter reconhecido referido princípio. Mas a ele sequer fez referência. A sensação que se tem, muitas vezes, é a de que a jurisprudência está anos-luz longe dos avanços dogmáticos. E por que? Porque (em geral) continua apegada ao modelo formalista do Direito penal, ignorando os avanços do funcionalismo moderado de Roxin (1970), que concebe a união entre Direito penal e Política criminal (seus princípios devem reger todas as categorias do Direito penal, a começar pela tipicidade). Persiste a confusão a que fizemos menção no princípio destes comentários. Ainda falta domínio sobre o tema, o que prejudica sua perfeita adequação e aplicação no mundo jurídico[1].

Exemplos de (interessante) Utilização

No dia a dia da Defensoria Pública da União, podemos vivenciar uma série de casos em que a tese da (des)necessidade da pena ou bagatela imprópria pode e deve ser cada vez mais utilizada. Insta trazer como ilustração as situações em que a jurisprudência nacional rechaça a aplicação do postulado da bagatela própria (insignificância).

Os crimes de moeda falsa, crimes contra a administração pública em geral, contrabando, falsificação de cd´s e dvd´s (lastimavelmente), crimes ambientais possuem contra si enorme resistência quanto ao reconhecimento da natureza insignificante (atipicidade material) pela jurisprudência das Cortes Superiores, ressalvadas pontuais exceções[2]. Impere registrar que a bagatela imprópria somente será apreciada caso afastada eventual argumentação vinculada à insignificância, já que, logicamente, não há de se questionar se uma punição é necessária se a ação é atípica.

É preciso difundir e, portanto, arguir, de maneira mais frequente a tese da desnecessidade da pena, de modo a instigar os Tribunais Superiores a apreciá-la e, talvez, superar a resistência argumentativa que insiste aplicar o direito penal visando punir condutas irrelevantes, totalmente dissonantes da “regra” consagrada no combalido brocardo da ultima ratio.

Quando deve se dar a alegação da Desnecessidade da Pena?

Ao contrário do que acontece na bagatela própria (Princípio da Insignificância), para que o magistrado aplique o princípio da irrelevância penal do fato (LFG), curial se revela a observância do devido processo legal. É dizer, não se deve confundir os momentos e consequências das bagatelas (própria e imprópria).

Enquanto a primeira pode ensejar a absolvição sumária (art. 397 do CPP) antes mesmo da submissão de instrução probatória, a bagatela imprópria deve se dar após o regular desenvolvimento do processo criminal, com efetiva análise das circunstâncias do fato pelo Poder Judiciário e, ao final, a conclusão e reconhecimento pela (des)necessidade da pena, a partir das peculiaridades do caso concreto, com arrimo legal no artigo 59 do CPB.

Bagatela Imprópria na Jurisprudência

Consoante já mencionado e devidamente advertido pelo professor Luiz Flávio Gomes, a jurisprudência das Cortes Superiores (ainda) é bastante tímida na adoção de teses “despenalizadoras e pró defesa”, como é a da bagatela imprópria. Todavia, como um verdadeiro sopro de esperança, é possível identificar vez por outra um julgado em que se trabalha e desenvolve a desnecessidade da pena. Nesse contexto, vale a pena destacar precedente do Superior Tribunal de Justiça em que o referido postulado foi analisado e parcialmente reconhecido! Trata-se de tese extremamente minoritária, com tímida repercussão na jurisprudência, mas que vejo com excelentes perspectivas e ânimo para a sua análise e reconhecimentos cada vez mais frequentes! Vide o HC 222.093[3]/MS, 5ª Turma do STJ.

Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 


[1] GOMES, Luiz Flávio. SOUSA, Áurea Maria Ferraz de. Roubo, insignificância e princípio da irrelevância penal do fato. Disponível em http://www.lfg.com.br.

[2] STF, HC 83.526/CE – Emblemático caso em que o Supremo reconheceu a atipicidade material da conduta de moeda falsa em razão da Insignificância, rompendo (no caso concreto) com a conservadora tese da inviabilidade de aplicação da bagatela própria aos crimes contra a fé pública e administração pública.

[3] PENAL. HABEAS CORPUS. CÁRCERE PRIVADO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRINCÍPIO DA BAGATELA IMPRÓPRIA. IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. AUSÊNCIA DE REQUISITOS SUBJETIVOS POSITIVOS. MAUS ANTECEDENTES. RECONHECIMENTO DA DESNECESSIDADE DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. I. O reconhecimento do princípio da bagatela imprópria permite que o julgador, mesmo diante de um fato típico, deixe de aplicar a pena em razão desta ter se tornado desnecessária, diante da verificação de determinados requisitos. II. No vertente caso, o Tribunal a quo reconheceu a incidência do princípio da bagatela imprópria quanto ao crime de lesão corporal, tendo em vista que este se processa mediante ação penal pública condicionada.(…). IV. Ademais, o paciente não reúne requisitos subjetivos positivos, pois foi condenado anteriormente por outros delitos igualmente graves, o que não permite o reconhecimento da desnecessidade da pena. V. Ordem denegada, nos termos do voto do Relator. (HC 222.093/MS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 14/08/2012).

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