O advogado criminalista perante a justiça no mundo dos peixes

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criminalista2Conta-se. Segundo a tradição hindu, o sol mal alumiava o rio e o sábio Manu já purificava o corpo com água recolhida com as mãos juntas em forma de concha. O ritual foi interrompido com os volteios de pequeno peixe no lago raso das palmas das mãos. Prestes a jogar o peixe de volta às águas, ouviu em voz sumida o pedido para que não o devolvesse ao rio! Sob as águas, disse o peixinho, não tenho defesa. Os peixes grandes me comerão de uma só vez…
O trecho acima recolheu-se da fábula O Peixe do Chifre de Ouro, constante do livro A Criação do Mundo – Mitos e Lendas, de Claude-Catherine Ragache e Francis Phillips, que na tradução de Ana Maria Machado foi publicado pela Editora Ática, no ano de 1993.[1]
No mundo como fábula, o deus hindu Vishnu Purana encarnando uma de suas manifestações a Matsya, peixe com escamas de ouro e um chifre, apareceu a Manu para avisá-lo sobre um grande dilúvio que destruiria toda a fonte de vida na terra. O avatar ensinou-o a construir um barco grande o bastante para recolher um casal de cada espécie de ser vivente na Terra.
O texto guarda visíveis semelhanças com a história da Arca da Aliança em que Noé instruído por Deus, de forma igual à de Manu, preservou a vida na Terra.[2] O cunho moral de ambas não coincidem embora as histórias em alguns aspectos se assemelhem.
Não se deve perder de vista que o uso metafórico de peixes remonta aos textos bíblicos. O Livro de Jó, capítulos 40 e 41, refere-se ao Leviatã, descrito como poderoso monstro marinho, representando a Inveja ou um dos sete príncipes infernais. [3]
Thomas Hobbes no livro O Leviatã traçou um paralelo entre a figura bíblica e o Estado um monstro que detém todo o poder sobre a sociedade.
A metáfora foi recentemente evocada por Amartya Sen em A Ideia de Justiça. Sen, em sua obra parte do ditado hindu Matsya Nyaya que prega que peixes grandes irão sempre comer os pequenos na presença de áaguas escuras e ausência de lei ou ordem. [4]
A temática de uma obra de filosofia política pode levar o leitor a diversas interpretações. Há visão quase uniforme de que a ideia de justiça, de Sen trace um contraste entre a abordagem transcendental e a comparativa da justiça. Na percepção de haver forte inclinação de predominar na filosofia política contemporânea a justiça transcendental, Sen desenvolveu a temática de sua ideia de justiça. E o fez, Utilizando-se de antigo texto em sânscrito que traçando a diferença entre niti enyaya, referindo-se à justiça do mundo dos peixes na qual um peixe grande pode livremente devorar um peixe pequeno.
Enfim, o enredo que parece novo, recorrentemente vem sendo utilizado através dos tempos. Padre Antônio Vieira, dele já se utilizara em Sermão de Santo Antônio aos Peixes, no século dezessete. No sermão Padre Antônio Vieira realça com fina ironia as vaidades e vícios humanos e critica a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos que são engolidos e não tendo a quem recorrer, são devorados sem recursos de defesa. [5]
No percurso narrativo deste artigo, os peixes pequenos serão associados à imagem de indivíduos que, atingidos pela fatalidade da autoria de um fato criminoso, veem-se jogados, sem comiseração, no leito revolto da justiça criminal, espaço de caos e ausência de misericórdia, como sói de acontecer sob a lâmina das águas.
A persistência no tema se valida, inobstante diversas abordagens, caso a utilização se faça o sob novo viés. E o novo aqui é configurar a massa carcerária como um bando de peixes que perderam o padrão do cardume e tornaram-se presas fáceis para os predadores de grande porte, o estado e as organizações criminosas, e como pode o advogado criminalista estender a mão para preservar a subsistência do cardume.
O peixe que aqui vendo, foi inspirado na informação prestada pelo Centro Internacional para Estudos Prisionais, segundo o qual o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, só ficando atrás em número de presos para os Estados Unidos, China e Rússia. Os crimes mais comuns são o tráfico e o roubo, crimes de baixo potencial ofensivo. Os autores de fatos criminosos praticados contra o erário público e por isso de extrema periculosidade e nocividade social, superiores à criminalidade patrimonial convencional são raros nas estatísticas oficiais.
Releve-se que, crimes desta ordem deveriam ser severamente apurados e reprimidos, evitando a disseminação na sociedade do sentimento de impunidade e de injustiça.
De acordo com levantamento realizado pelo ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro, advogado Técio Lins e Silva, de um total de 8.700 presos daquele Estado, “67% eram negros ou pardos, com profissões como pedreiro, vendedor, feirante e camelô. A maioria havia cometido assaltos e pequenos furtos. Delitos menores, como vadiagem, tinham 211 menções nas fichas dos prisioneiros, mas não havia nenhum preso por uso irregular de dinheiro público ou exploração de prestígio”. [6]
No mesmo sentido, o Conselho de Política Penitenciária e Criminal do Ministério da Justiça, em censo realizado sobre a situação de presos no Brasil, verificou que dos 126.000 encarcerados 93% eram pobres, e, 95% não tinham dinheiro para contratar um advogado.
E pasmem: Só 5% dos presos foram condenados por crimes contra o Erário, sendo estes fiscais e funcionários, não se encontrando nenhum “peixe graúdo”. [7]
Bem recentemente, a metáfora dos peixes, pequenos e graúdos, teve uso na voz de autoridade que atua em grande operação policial. Em meio às críticas de que se atentava contra a legalidade ao se prender cautelarmente sem amparo legal para a colheita de provas na delação premiada, informou que: “não vai fazer a colaboração para trocar um peixe grande por um peixe pequeno. Você faz a colaboração para trocar um peixe pequeno por um peixe grande ou para trocar um peixe por muitos peixes. Esse é um princípio de utilidade social. Quando você pega uma sardinha, você pode comer essa sardinha, ou usá-la como isca para pegar um tubarão”. [8]
Não se conhece o tipo de malha usada na rede de pesca. O MP federal ainda não trouxe a jangada do mar, não se podendo avaliar se da pescaria restou o peixe bom. Espera-se que o que vier à superfície não dê gosto apenas ao quadro catastrófico onde ocorre toda sorte de abusos e violações aos direitos humanos. Não é nenhum segredo que qualquer investigação do sistema prisional detecta em todo país denúncias de agressões físicas e até tortura praticadas contra detentos, seja por outros presos, seja por agentes penitenciários.
A melhor síntese da caótica situação do sistema carcerário brasileiro, talvez se comporte na afirmação do deputado Domingos Dutra que abre o capítulo o Perfil dos presos no Brasil: “Por onde nós andamos não encontramos colarinhos branco presos. Só encontramos presos os pobres, os lascados”.[9]
Em linguajar popularesco, o deputado amostra os tipos de peixes que nadam e predam nas águas rasas da sociedade brasileiras e que já foram percebidos em pleno século dezessete por Vieira. No sermão ou no acórdão, resta explícitos serem os peixes pequenos, os pobres e lascados. Implícitos, os peixes graúdos, os colarinho branco, a elite do crime.
Estes ainda hoje sobrevivem sob o espelho d’água dos Palácios. Outra espécie de peixes grandes, tão venais quanto os de colarinho branco, assombram os pequenos nas poças profundas escondidas nas cavernas, construídas e sustentadas pelo estado: os líderes e comandos do crime organizado.
Os dados espelham a aproximação havida entre o sistema de justiça criminal e e o costume dos seres aquáticos no mundo dos peixes. Há alguma diferença e esta reside no fato de que na fábula, o peixe pequeno, da natureza dos pobres e dos lascados, tem a quem recorrer e pede para ser salvo dos peixes grandes os dominadores dos mares, com raros inimigos naturais.
Tal situação, se reprise, só é de ocorrer no mundo das fábulas. Na natureza, prevalecendo a lei da selva, nenhum ser iria levar à superfícier ou resgatar os peixes pequenos, porque na selva todos estão por conta própria e só os mais capazes sobreviverão.
No mundo jurídico, assentado no cotidiano, entretanto, o defensor (advogado criminalista ou defensor público) é humano e não parte exclusiva da natureza. Desse modo, na indispensabilidade à administração da justiça conferida pelo artigo 133 da Constituição Federal de 1988, credencia-se a desafiar a justiça dos peixes que como mais vigor prevalece na área criminal. [10]
Nesta esteira, ao contrário do deus hindu que garantiu ao peixinho sua sobrevivência, livrando-o da devoração pelos peixes grandes por ato de compaixão, o defensor deve atuar, tentando extrair de leis e regulamentos um sistema onde os pobres e lascados possam sobreviver sem serem oprimidos pelos grandes. Os fortes são os agentes do sistema criminal, estando os peixinhos soltos. Se ruminando nos ácidos intestinos da sociedade, são os comandantes das organizações criminosas que os engolem como sardinhas.
Ressalve-se haver diferença entre organizações criminosas e crime organizado. Este é difícil de ser combatido por conta de os chefões frequentarem a cozinha e os banquetes oficiais. Nas palavras de Luis Flávio Gomes, as organizações criminosas ficam sempre encarregadas do serviço sujo, sanguinário, arrecadatório (arriscado). Por trás de tudo está o crime organizado. “Quando a polícia invade as favelas, promovendo espetáculos hollywoodianos, operações de ‘saturação’ etc., está atrás das organizações criminosas, não do crime organizado. Muitos policiais acham que estão buscando o crime organizado (nessas operações). Nada mais equivocado. O criminoso organizado não está nas favelas.[11]
Uns e outros, Estado e organizações criminosas, são tubarões que se alimentam dos “animais de menos força e indústria que vão seguindo de longe os leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja”.[12] São os pobres e lascados os pegadores que se sentindo inseguros ante o Estado, buscam a segurança dos peixes grandes das grandes organizações criminosas.
O estado, nau que deveria dar rumo aos homens, está rodeado por tubarões com “os seus pegadores às costas, tão cerzidos como a pelé, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros”.[13]
Destarte, consciente da prevalência da justiça dos peixes no âmbito do julgamento e execução penal, o criminalista deve ser ponte a religar a situação dos desvalidos aos comandos constitucionais. À jusante da ponte fica a defesa dos mais fragilizados antes da condenação. À montante, a atuação em favor da preservação de sua dignidade, após a condenação, no cumprimento da pena.
Não se estimula o defensor a adotar o criminoso, tomando-o por meu peixe, o braço direito, o sangue bom termos em voga na gíria da malandragem. Tampouco dividir a peixaria entre trutas, traíras, tubaranas e piranhas. Sequer considerar os nascidos no signo de peixe, pessoa privilegiadas que devam aproveitar as influências favoráveis de aquário.
O advogado criminalista em seu agir não deve se incluir na categoria dos advogados iresponsáveis defensores de bandidos [14] e nem somente na do pai dos pobres, defensor dos inocentes, protetor das pessoas miseráveis. Nem deve se vender nem tampouco defender somente os reconhecidamente inocentes. A defesa deve conter-se à previsão do artigo  da Constituição Federal, zelando pelos procedimentos legais e pelas leis vigentes, evitando que haja vitimas do Leviatã, estado acusador compulsivo, que na maioria das vezes anseia o cárcere sem o devido processo legal. O advogado criminalista é um profissional que ganha a vida defendendo que seja a lei cumprida indistintamente.
Em outros termos, o advogado criminalista que não sucumbe às circunstâncias do mundo dos peixes, luta para que a vítima das circunstâncias, julgada e condenada, receba do estado o que lhe for de direito, o que está expresso, tanto no Código Penal e Código Processual Penal, quanto na Lei de Execução Penal.
Por estes ordenamentos, o preso, tanto o que ainda está respondendo ao processo, quanto o condenado, continua tendo todos os direitos que não lhes foram retirados pela acusação ou pela pena. Isto significa que o preso perde a liberdade, mas mantem direito a um tratamento digno, direito de não sofrer violência física e moral, como assegurado pela Constituição Federal.
O advogado criminalista ao repudiar a justiça do mundo do peixes, deve “debater propostas de um novo modelo de execução penal que garanta os direitos dos presos e reduza o índice de encarceramento no país e a violência nos presídios”.[15]
Posicionar-se em relação à maioridade penal, sabendo que a redução pura e simples da maioridade penal não vai trazer os benefícios esperados pela sociedade. Os presos com a redução da maioridade, sem receberem o tratamento adequado, acabam virando piabas ou sardinhas aos tubarões do crime.
No que tange ao sistema carcerário, deve pugnar pela “construção de novas vagas, principalmente no regime semiaberto; a diminuição no fluxo de entrada de novas pessoas nas prisões e o aumento do fluxo de saída de presos”. [16]
O advogado crimalista do mundo moderno não pode ser apenas a mão de Manu que, misericordiamente, recolhe e impede a devolução às águas dos pequenos peixes.
Ao pugnar pelas medidas propostas pela OAB, o advogado criminalista deve atuar como fez o pesquisador britânico Dan Watson que projetou um novo tipo de rede de pesca, artefato composto por vários aros de luz de LED que permite que os peixes menores consigam escapar.[17]
Como no mundo da pescaria com o uso da rede os pescadores profissionais acabam conseguindo melhores resultados, é possivel que o advogado criminalista consiga reduzir a pesca de peixinhos. Essa pesca de presos que se faz atualmente com redes e tarrafas que permitem a captura de uma maior quantidade de peixes pequenos, sendo a captura dos grandes capturas acidentais.
O advogado criminalista perante a justiça do mundo dos peixes deve assumir a exata dimensão de sua oitava manifestação, Krishna, a aparição mais consciente de Vishnu: a verdade absoluta que abre caminhos de paz, equilíbrio e amor. [18]


[1]RAGACHE, Claude-Catherine. A criação do mundo. Trad. Ana Maria Machado.. São Paulo: Ática, 1993.
[2] A história de Noé é contada no primeiro livro de Moisés, chamado Gênesis, capítulos 6-8
[3] BÍBLIA. Jó. In: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966.
[4] SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. Editora Companhia das Letras.
[5] A alegoria dos peixes, o Sermão de Santo Antônio aos Peixes, foi proferido na cidade de São Luís do Maranhão, em 1654, pouco antes do jesuíta partir para Lisboa, depois de um litígio com os colonos, por causa da escravização dos índios. O título do Sermão foi retirado do milagre que se conta a respeito de Santo Antônio, que teria sido mal recebido numa pregação na cidade italiana de Arimino, foi perseguido, teria se dirigido à praia e pregado aos peixes, que o teriam escutado atentamente, ao contrário dos homens, que viraram-lhe às costas
[6] SANTOS. Alberto Marques dos. Obstáculos ao acesso à justiça. Disponível em: Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
[11]GOMES, L. Flávio Quem combate lambaris não pega tubarão. http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121930639/quem-combate-lambaris-nao-pega-tubarao
[12] Vieira, Padre Antônio/ Bosi, Alfredo (Orgs.). Essencial Padre Antônio Vieira. Peguim. Companhia das Letras.
[13] VIEIRA. Padre Antônio. Ibdem.
[14] Rodrigo Constantino. A estranha seletividade das ONGs dos direitos humanos. http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/leieordem/a-estranha-seletividade-das-ongs-dos-d…
[15]Consultor Jurídico. Conferência Nacional. OAB vai debater propostas para reforma da Lei de Execução Penal. Disponível:. Acesso em: 14 jan. 2015.
[16] COELHO, Marcus Vinicius Furtado.
Fonte: Jusbrasil
 

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