Cícero Robson Coimbra Neves[1]
Não é de hoje a discussão sobre a influência da legislação penal comum de repressão às drogas no crime capitulado no art. 290 do Código Penal Militar, intitulado “ Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar”.
As posições eram variadas, alguns defendendo – e este era o ponto principal – que também nos fatos praticados no interior de lugar sujeito à administração militar deveria ser aplicado o art. 28 da Lei n. 11.343/2006, com sanções diversas da privação de liberdade, o que distava – e dista – muito da sanção penal do art. 290 do CPM, com reclusão de 1 a 5 anos.
Discutia-se, ademais, se era possível aplicar o princípio da insignificância nesses casos de porte para consumo, especialmente da substância Cannabis Sativa, também havendo divergência sobre a questão.
A questão foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente na decisão do Habeas Corpus n. 103.684/DF, julgado em 21 de outubro de 2010, com relatoria do Ministro Ayres Britto, em que, por 6 votos contra 4, denegou-se a ordem de habeas corpus.
Em suma, declarou o relator que o “uso de drogas e o dever militar são como água e óleo, não se misturam”, acrescentando que “por discreto que seja o concreto efeito psicofísico da droga nessa ou naquela relação tipicamente militar, a disposição pessoal em si, para manter o vício, implica inafastável pecha de reprovabilidade cívico-profissional, senão por afetar temerariamente a saúde do próprio usuário, mas pelo seu efeito no moral da corporação, na autoestima da corporação e no próprio conceito social das Forças Armadas, que são instituições voltadas entre outros explícitos fins para a garantia da ordem democrática”. Observou ainda o relator o “problema aqui não é de quantidade e nem mesmo do tipo de entorpecente que se conseguiu apreender”, mas de “qualidade da relação jurídica entre o particularizado portador da substância entorpecente e a instituição castrense de que ele fazia parte”. Mais ainda, destacou que a questão se refere a “bens e valores jurídicos insuscetíveis de relativização em sua carga de proteção individual e concomitantemente societária”.
Enfim, no julgado prestigiou-se a especialidade, calcada na relação do agente com o dever militar, prevalecendo a aplicação do art. 290 do CPM para os casos de porte de drogas, inclusive e especialmente a Cannabis, em lugar sujeito à administração militar, afastando-se, ademais, a aplicação do princípio da insignificância.
Todavia, há que se questionar se essa decisão da Suprema Corte foi afetada pelo julgamento do Recurso Extraordinário n. 635.659, julgado em 26 de junho de 2024, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
Entendemos, em resposta, que não, que ainda devem prevalecer para o crime de posse de entorpecente no âmbito militar a visão parida no Habeas Corpus n. 103.684/DF, ainda que tenha sido por maioria apertada e já passados mais de 13 anos de sua concepção.
No RE n. 635.659, o que se discutiu, em resumo, foi a descriminalização da conduta do porte de Cannabis para consumo, lavrando-se o seguinte extrato da Decisão:
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 506 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, para i) declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couberem, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Luiz Fux; e ii) absolver o acusado por atipicidade da conduta, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux. Não votou, no mérito, o Ministro Flávio Dino, sucessor da Ministra Rosa Weber, que já havia proferido voto em assentada anterior. Em seguida, por maioria, fixou a seguinte tese: “1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário”. Ficaram vencidos: no item 1 da tese, os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux; no item 2 da tese, os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques; no item 3 da tese, o Ministro Luiz Fux; no item 4 da tese, os Ministros Flávio Dino e Luiz Fux; e, nos itens 5 e 7 da tese, o Ministro Luiz Fux. Votou na fixação da tese o Ministro Flávio Dino. Por fim, o Tribunal deliberou, ainda, nos termos do voto do Relator: 1) Determinar ao CNJ, em articulação direta com o Ministério da Saúde, Anvisa, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Tribunais e CNMP, a adoção de medidas para permitir (i) o cumprimento da presente decisão pelos juízes, com aplicação das sanções previstas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06, em procedimento de natureza não penal; (ii) a criação de protocolo próprio para realização de audiências envolvendo usuários dependentes, com encaminhamento do indivíduo vulnerável aos órgãos da rede pública de saúde capacitados a avaliar a gravidade da situação e oferecer tratamento especializado, como os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas – CAPS AD; 2) Fazer um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem medidas administrativas e legislativas para aprimorar as políticas públicas de tratamento ao dependente, deslocando o enfoque da atuação estatal do regime puramente repressivo para um modelo multidisciplinar que reconheça a interdependência das atividades de (a) prevenção ao uso de drogas; (b) atenção especializada e reinserção social de dependentes; e (c) repressão da produção não autorizada e do tráfico de drogas; 3) Conclamar os Poderes a avançarem no tema, estabelecendo uma política focada não na estigmatização, mas (i) no engajamento dos usuários, especialmente os dependentes, em um processo de autocuidado contínuo que lhes possibilite compreender os graves danos causados pelo uso de drogas; e (ii) na agenda de prevenção educativa, implementando programas de dissuasão ao consumo de drogas; (iii) na criação de órgãos técnicos na estrutura do Executivo, compostos por especialistas em saúde pública, com atribuição de aplicar aos usuários e dependentes as medidas previstas em lei; 4) Para viabilizar a concretização dessa política pública – especialmente a implementação de programas de dissuasão contra o consumo de drogas e a criação de órgãos especializados no atendimento de usuários – caberá aos Poderes Executivo e Legislativo assegurar dotações orçamentárias suficientes para essa finalidade. Para isso, a União deverá liberar o saldo acumulado do Fundo Nacional Antidrogas (Funad), instituído pela Lei 7.560/86 e gerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e se abster de contingenciar os futuros aportes no fundo, recursos que deverão ser utilizados, inclusive, para programas de esclarecimento sobre os malefícios do uso de drogas. Por fim, a Corte determinou que o CNJ, com a participação das Defensorias Públicas, realize mutirões carcerários para apurar e corrigir prisões decretadas em desacordo com os parâmetros fixados no voto do Relator. Ausente, justificadamente, o Ministro André Mendonça, que já havia proferido voto em assentada anterior. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 26.6.2024.
Ao que interessa à compreensão em construção, pode-se resumir do julgado:
- declarou-se a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couberem, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas;
- não houve discussão sobre o art. 290 do Código Penal Militar;
- a decisão apreciou, em alguns pontos, especialmente na fixação de critério para a presunção de conduta do usuário, um caso envolvendo Cannabis, sendo discutível sua ampliação para drogas outras, como a cocaína;
- a conduta do usuário continua a ser ilícita, mas as sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;
- para aquele que possui ou porta até 6 plantas fêmeas de Cannabis ou 40 gramas – inicialmente pensou-se em 60 gramas[2], fixando-se ao final as 40 gramas –, haverá uma presunção de que se trata de usuário;
- acima dos patamares supra, a presunção é de traficância;
- as presunções são relativas, não estando “a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes”.
De outra banda, no entanto, tem-se um paradigma que pode ser interessante ao Direito Castrense, qual seja, a fixação do quantitativo de 40g ou 6 plantas fêmeas como critério – não absoluto, frise-se – para a distinção entre consumo pessoal e tráfico, que se cristalizou, restando saber se será acompanhado na jurisprudência castrense. Entendemos ser razoável segui-lo na conduta do caput, mas em relação aos casos assimilados, como sustentaremos adiante, a quantidade da droga poderá ser critério indiferente para a traficância.
Aguardemos o que nos trará a jurisprudência sobre essa questão.
[1] Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policias de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
[2] “Decisão: Após o voto reajustado do Ministro Gilmar Mendes (Relator), no sentido de restringir a declaração de inconstitucionalidade a apreensões relativa à substância entorpecente tratada nos autos do presente recurso (cannabis sativa), bem como para incorporar os parâmetros objetivos sugeridos pelo Ministro Alexandre de Moraes, presumindo como usuário o indivíduo que estiver em posse de até 60 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, sem prejuízo da relativização dessa presunção por decisão fundamentada do Delegado de Polícia, fundada em elementos objetivos que sinalizem o intuito de mercancia; do voto do Ministro Cristiano Zanin, que negava provimento ao recurso extraordinário e propunha a seguinte tese: “I – É constitucional o art. 28 da Lei nº 11.343; II – Para além dos critérios estabelecidos no parágrafo 2º do art. 28 da Lei nº 11.343, para diferenciar o usuário de maconha do traficante, o Tribunal fixa como parâmetro adicional a quantia de 25 gramas ou 6 plantas fêmeas – tal como sugerido pelo eminente Ministro Luís Roberto Barroso -, para configuração de usuário da substância, com a possibilidade de reclassificação para tráfico mediante fundamentação exauriente das autoridades envolvidas”; e do voto antecipado da Ministra Rosa Weber (Presidente), acompanhando o voto do Relator, pediu vista dos autos o Ministro André Mendonça. Aguardam os demais Ministros. Plenário, 24.8.2023” (g.n.).
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Outro excelente texto sobre a recente decisão do STF. parebéns ao professor Coimbra por mais uma contribuição!