A Lei n. 14.192, de 4 de agosto de 2021, e os crimes eleitorais

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08 de agosto7 min. de leitura

No dia 4 de agosto de 2021 foi publicada a Lei n. 14.192 que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, altera o Código Eleitoral, a Lei n. 9.096/1995 (“Lei dos Partidos Políticos”) e a Lei n. 9.504/1997 (“Lei das Eleições”), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais.

Ao que nos interessa neste artigo, as inovações na parte criminal podem ser notadas nos seguintes quadros comparativos:

 

Código Eleitoral  (Lei n. 4.737/1965)
Antes da alteração Depois da alteração
“Divulgação na propaganda de fatos inverídicos”

Art. 323. Divulgar, na propaganda, fatos que sabe inverídicos, em relação a partidos ou candidatos e capazes de exercerem influência perante o eleitorado:

Pena – detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.

Parágrafo único. A pena é agravada se o crime é cometido pela imprensa, rádio ou televisão.

“Divulgação na propaganda de fatos inverídicos”

Art. 323. Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado:

Pena – detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.

§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos.

§ 2º. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até metade se o crime:

I – é cometido por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social, ou é transmitido em tempo real;

II – envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.

 

Código Eleitoral  (Lei n. 4.737/1965)
Antes da alteração Depois da alteração
“Violência política contra a mulher”

Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher:

I – gestante;

II – maior de 60 (sessenta) anos;

III – com deficiência.

 

Código Eleitoral (Lei n. 4.737/1965)
Antes da alteração Depois da alteração
“Causas especiais de aumento de pena” 

Art. 327. As penas cominadas nos arts. 324, 325 e 326 aumentam-se de 1/3 (um terço), se qualquer dos crimes é cometido:

I – contra o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro;

II – contra funcionário público, em razão de suas funções;

III – na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da ofensa.

 

“Causas especiais de aumento de pena”

Art. 327. As penas cominadas nos arts. 324, 325 e 326 aumentam-se de 1/3 (um terço) até metade, se qualquer dos crimes é cometido:

I – contra o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro;

II – contra funcionário público, em razão de suas funções;

III – na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da ofensa.

IV – com menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia;

V – por meio da internet ou de rede social ou com transmissão em tempo real.

Inaugurando o comentário pela alteração mais simples, no art. 327 do Código Eleitoral, as causas de aumento de pena ou majorantes foram inovadas, primeiro, permitindo um acréscimo – em terceira fase de aplicação da pena, frise-se – de até metade, quando na redação primeira era apenas possível chegar a um terço e, segundo, somando-se duas ouras causas específicas, a saber, quando o crime for praticado com menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia ou por meio da internet ou de rede social ou com transmissão em tempo real.

Não de olvide que o art. 327 do Código Eleitoral é aplicável apenas nos crimes dos arts. 324, 325 e 326 do mesmo diploma, ou seja, nos crimes de calúnia, difamação e injúria eleitorais.

A outra inovação no plano criminal foi a alteração da descrição típica do crime conhecido como “divulgação na propaganda de fatos inverídicos” do art. 323 do Código Eleitoral.

A primeira inovação está no caput do artigo que não mais se limita à propaganda, mas alcança toda a campanha do candidato. Quando comentávamos este delito com a limitação do elemento típico “propaganda”, já buscávamos uma ampliação do contexto compreendendo que poderia abranger a propaganda eleitoral, destinada à captação de votos e permitida apenas no período eleitoral, ou seja, após 15 de agosto, sob pena de ser “propaganda antecipada” (art. 36 da Lei das Eleições – Lei n. 9.504/1997), a propaganda partidária, destinada a divulgar planos e projetos dos partidos, e a intrapartidária, destinada ao público filiado, para a escolha dos candidatos que disputarão as eleições. O delito era possível de ser praticado nas três espécies de propaganda (GOMES, José Jairo. Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. São Paulo: Atlas, 2021, p. 118). Agora, ao adicionar a elementar “período de campanha eleitoral”, ratifica-se essa compreensão mais ampla, pois o período de campanha eleitoral será exatamente aquele em que já existirá o candidato, vencidas as prévias em que houve a propaganda intrapartidária, por exemplo. Por outro lado, o legislador fechou a compreensão na propaganda eleitoral. Em outros termos, ampliou para fora do ato estrito de propaganda, alcançando a campanha como um todo, mas parece ter excluído as espécies de propaganda partidária e intrapartidária.

O parágrafo único do art. 323, que trazia a majorante do crime cometido pela imprensa, rádio ou televisão – quando se majorava entre um quinto e um terço, nos termos do art. 285 do Código Eleitoral, vez que o dispositivo não definia a majoração – foi revogado, dando lugar a dois parágrafos.

O § 1° traz um caso assimilado, cominando a mesma pena a quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos, ou seja, pune-se o fornecedor do material que será utilizado no crime de “divulgação na propaganda de fatos inverídicos”.

O § 2º, por seu turno, é o que substitui efetivamente o revogado parágrafo único, trazendo a majorante de um terço – sem a necessidade de aplicação do art. 285 do Código Eleitoral e aplicável em terceira fase – para os crimes cometidos por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social, ou é transmitido em tempo real, ou que envolva menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, este o foco principal da alteração da Lei n. 14.192/2021. Neste caso, parafraseando Victor Rios Gonçalves, haverá situação em que o autor entenderá que a mulher não deva estar em determinado cenário ou profissão, por exemplo, que não devam trabalhar como motoristas ou que não devam estudar em universidades etc. (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 125).

Por fim, a grande novidade da Lei em comento foi o surgimento do crime de violência política contra a mulher, com a inserção do art. 326-B no Código Eleitoral, acima transcrito.

Sobre o novo crime, pode-se, em primeira análise,  sustentar que a objetividade jurídica é a tutela dos direitos políticos da mulher, especialmente a sua liberdade em se candidatar e exercer, uma vez eleita, seu mandato, obviamente buscando-se uma maior representatividade política feminina no Brasil. Claro, também se tutela a honra objetiva e subjetiva da mulher, assim como elementos ligados a cor, raça e etnia.

O sujeito ativo, embora mais comum no ambiente político, pode ser qualquer pessoa, vez que o tipo penal não traz elemento que reduza a sujeição ativa.

O sujeito passivo do delito é a coletividade (Estado) que tem interesse em maior representatividade feminina na política. Obviamente, a mulher também figura como sujeito passivo neste delito, podendo-se, inclusive chegar à mulher transexual, como se sustenta hoje em alguns delitos, como no feminicídio. Neste sentido:

A nosso ver, a mulher tratada na qualificadora do homicídio é aquela assim reconhecida juridicamente. No caso da transexual que formalmente obtém o direito de ser identificada civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os demais efeitos, será considerada mulher. Acrescentamos apenas a desnecessidade de intervenção cirúrgica, pois, na ADI 4275, invocando sobretudo o respeito à dignidade humana, o Supremo Tribunal Federal decidiu que transexuais podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia e sem necessidade de autorização judicial (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: Parte Especial. Salvador: Jus Podivm, 2020, p.66-7).

Ingressando nos elementos objetivos do novel delito, o primeiro verbo nuclear é assediar, que significa molestar, cercar, sitiar. Constranger, em sequência, traduz-se por obrigar, forçar, compelir, coagir. Humilhar é rebaixar, afetar moralmente. Perseguir, por sua vez, é acompanhar com insistência, seguir à caça. Ameaçar, por fim, é prometer um mal futuro, não necessariamente injusto.

Essas condutas são perpetradas por qualquer meio, ou seja, estamos diante de um crime de forma livre, que pode ser praticado por palavras escritas, por forma verbal oral, gestos etc.

A conduta, ademais, é direcionada a candidata a cargo eletivo, ou seja, àquela que concorre a um cargo eletivo, ou a uma efetiva detentora de mandato, já diplomada, no exercício do mandato.

Mais, ainda, o autor utiliza-se de menosprezo ou discriminação, ou seja, um desprezo ou uma bizarra compreensão de que a condição da pessoa (mulher) lhe traz uma condição inferior, uma capacidade menor. O signo distintivo é a condição de mulher, ligada ao sexo biológico, ou como acima colocado a uma identidade de gênero (mulher transexual), sua cor – “no contexto em que é utilizada, dá-se em relação à cor d. a pele, como na discriminação contra negros, brancos ou amarelos (asiáticos)” (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 474) –, raça – “o conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como cor da pele, conformação do crânio e do rosto, tipo do cabelo e outros traços são semelhantes e se transferem por hereditariedade, conquanto variem de pessoa para pessoa. O STF negou, porém, a existência de diferenças de raça, em sentido estrito, considerado o atual estágio da ciência, já que não existem raças humanas efetivamente diferenciadas, embora afirmando, ainda assim, a possibilidade de racismo, em sentido amplo, contra judeus (STF, HC 82.424, Corrêa, Pl., 17/09/2003). A partir daí, a expressão raça passou a ser considerada sinônimo de etnia (TRF4, AC 200172020046715, 7a T., u., 12/09/2006)” (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 474) – ou etnia – um grupo étnico “é definido, além de fatores biológicos, por dados culturais, psicológicos e mesmo políticos, ou, ainda, o grupo cultural e linguisticamente homogêneo, como, por exemplo, a comunidade indígena (TRF4, AC 200371010018948, Vaz, 8a T., u., 05/04/2006)” (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 474).

Por derradeiro, como elemento expresso é trazida a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo, um elemento subjetivo especial do tipo que evidencia a violência política em impedir o acesso à representação política ou ao efetivo exercício do mandato.

Trata-se de crime formal, consumando-se no momento da prática da conduta (assédio, ameaça etc.), ainda eu não se obtenha o fim desejado. Possível a tentativa, por exemplo, na conduta por escrito.

No que se refere a aplicação da pena, fixa-se a pena de reclusão de 1 a 4 anos, com a pena pecuniária de multa (aditiva), além de haver majorante no parágrafo único de um terço nos casos em que o delito for praticado contra mulher gestante, maior de 60 anos ou portadora de deficiência.

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