Ações penal no crime de estelionato e a lei anticrime: Divergência entre as turmas do STJ.

A Lei 13.964/2019, também conhecida como Lei Anticrime trouxe diversas alterações na área criminal. Entenda melhor os impactos causados!

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28 de agosto5 min. de leitura

Não é surpresa para ninguém que a Lei Anticrime (Lei 13.964/2019) trouxe várias alterações na seara criminal e, em grande parte delas, polêmicas se evidenciaram. Conforme alertei desde o início de sua vigência, em 23 de janeiro de 2020, um dos grandes impactos a serem observados foi na natureza da ação penal no crime de estelionato. Antes desafiando sempre a ação penal pública incondicionada, com a Lei Anticrime a regra passou a ser a ação penal pública condicionada à representação da vítima.

ATENÇÃO! Eu disse que essa é a nova regra, mas ela comporta exceções. De acordo com o legislador, o crime de estelionato permanecerá desafiando ação penal pública incondicionada quando a vítima for (i) a Administração Pública, direta ou indireta, (ii) criança ou adolescente, (iii) pessoa com deficiência mental ou (iv) maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

Compreendida a nova regra, o ponto de tensionamento em relação a ela se dá justamente no que tange a sua aplicação (ou não) nos processos já em curso. Ou seja, se uma denúncia proposta contra alguém lhe imputando a prática de estelionato tiver sido materializada em novembro de 2019 (ação penal pública incondicionada), a nova regra vigente (exigindo representação da vítima) deverá ser observada?

O debate é intenso e as soluções são múltiplas. Por exemplo, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais propôs um enunciado indicando que “o artigo 171, §5º, do CP, por possuir reflexos de natureza penal, aplica-se aos fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, operando-se a decadência na hipótese de a ação penal ter se iniciado sem a manifestação da vítima e já houver transcorrido o prazo de seis meses contados da data em que o ofendido tomou conhecimento da autoria”. Parece-me uma solução exagerada e incorreta, já que essa retroação sugerida implicaria extinção da punibilidade de todos os estelionatos praticados há mais de 06 meses da vigência da nova norma.

Por sua vez, em encontro realizado pelo Conselho Nacional do Procuradores-Gerais dos MP´s, foi aprovado o enunciado 04, sugerindo que “nas investigações e processos em curso, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência”.

Essa posição parece-me interessante e razoável. Apesar disso, entendo que não seria a melhor opção, justamente porque houve uma omissão do legislador. Explico. É que a Lei nº 13.964/2019 não trouxe previsão para essa fase de transição, diferentemente do que fez a Lei nº 9.099/95 quando de sua promulgação, ao dispor no art. 88 que a ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e culposas passariam a depender de representação. Na época, o art. 91 da referida legislação especial previu que “nos casos em que esta lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência”.

Particularmente, compreendo que a representação é estudada como condição de procedibilidade quando assim indica a lei penal, mas se a infração penal já está sendo apurada ou processada quando a representação passa a ser exigida, sua natureza jurídica será de condição de prosseguibilidade. Nesse caminhar, mesmo quando a lei nova assim não preveja expressamente, as vítimas dos inquéritos e processos em curso devem ser intimadas a se manifestar sobre a representação.

No entanto, considerando que, diferentemente do art. 91 da Lei dos Juizados Especiais, a Lei Anticrime não regulamentou de maneira específica o tema, entendo que, a partir de sua vigência, a vítima terá o prazo decadencial de 06 meses para efetuar sua representação, sob pena de – não o fazendo – restar extinta a punibilidade. Enquanto isso, as investigações e processos em curso sobre o crime de estelionato deveriam permanecer suspensos, sem novos andamentos.

Compreendidas essas posições de caráter doutrinário, o avançar do ano de 2020 permitiu que o debate chegasse aos Tribunais Superiores. Nesse contexto, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 573.093/SC em 09 de junho de 2020, afirmou ser possível observar que o novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu.

Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade[1].

Não me parece acertada a decisão. Explico. Indubitavelmente, a norma apreciada ostenta caráter híbrido ou misto e, dessa maneira, é preciso observar o regramento insculpido no art. 5º, XL da CF/88, ou seja, se a norma for benéfica ao réu, retroage, sendo prejudicial, aplica-se somente para fatos praticados após a vigência da norma. A norma que altera a natureza da ação penal não pode retroagir, SALVO para beneficiar o réu. 

E por que isso se aplica à ação penal no estelionato? É que essa alteração legislativa dispõe sobre a classificação da ação penal e influencia decisivamente o jus puniendi, já interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa, portanto, tem efeito material[2].

De toda forma, tínhamos (até então) essa compreensão estabelecida pela 5ª Turma do STJ. No entanto, no dia 04 de agosto de 2020, a 6ª Turma deliberou sobre o tema ao julgar o HC 583.837/SC[3], fixando uma divergência na Corte.

De acordo com a Turma, as normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do CPP, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.

1] Doutrina: Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha – 12. ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 413.

[2] O próprio STJ já compartilhou dessa orientação em ocasião pretérita (analisando outra alteração legislativa) ao asseverar que “a norma que altera a natureza da ação penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. A norma que dispõe sobre a classificação da ação penal influencia decisivamente o jus puniendi, pois interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa, portanto, tem efeito material. Assim, a lei que possui normas de natureza híbrida (penal e processual) não tem pronta aplicabilidade nos moldes do art. 2º do CPP, vigorando a irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu, conforme dispõem os arts. 5º, XL, da CF e 2º, parágrafo único, do CP (HC 182.714-RJ, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19.11.12), assim como o próprio STF, no julgamento da ADI 1.719-9.

[3] HC 583.837/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2020.

A retroação do § 5º do art. 171 do CPB alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Ou seja, a 6ª Turma agasalhou a tese de aplicação, por analogia, do art. 91 da Lei n. 9.099/1995.

O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.

Ou seja, para além das controvérsias doutrinárias, temos atualmente uma divergência entre as turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, assim sintetizada:

estelionato e Lei Anticrime (Lei 13.964/2019)

Estelionato e Lei Anticrime (Lei 13.964/2019): divergências entre as turmas!

 

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos e a definição sobre o tema!

De toda forma, para fases objetivas de concurso público, o examinador tenderá a exigir dos candidatos a nova regra e suas respectivas exceções, já analisadas por nós. Até eventual definição do tema da possibilidade ou não de retroação da nova norma, a divergência deve ser conhecida e explorada em fases dissertativas, práticas ou orais.

Vamos em frente.

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

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