Olá pessoal, tudo certo?
Conforme venho alertando desde que entrou em vigência a Lei Anticrime (Lei 13.954/2019), um dos aspectos mais relevantes em relação ao novo Acordo de Não Persecução Penal, regrado no art. 28-A do CPP, é a sua aplicação no tempo.
Para analisar de forma completa, é preciso fazer uma recapitulação acerca da aplicação da lei processual penal no tempo. A lei processual penal é norteada, no que tange a sua aplicabilidade no tempo, por dois postulados fundamentais: (a) princípio da imediatidade e (b) princípio do isolamento dos atos processuais.
Essa lógica é extraída do art. 2º do CPP, segundo o qual “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. É dizer, portanto, que se estivermos diante de uma norma genuinamente processual, ela terá aplicabilidade no dia de sua vigência, devendo ser observada para os processos em curso. Entretanto, os atos já praticados sob a égide da legislação anterior, serão considerados válidos e serão conservados, ou seja, não é necessário repeti-los com a nova orientação normativa.
Se a regra acima indicada é adotada para as normas puramente processuais (normas processuais genuínas), a orientação para as normas processuais penais mistas é diversa. Aqui, deveremos observar tanto o princípio da irretroatividade, como também o postulado da ultratividade. É dizer, pois, que se for prejudicial, a norma revogada continuará regulando os fatos praticados em sua vigência.
A polêmica sobre o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) se insere justamente aqui. É que, indubitavelmente, essa novidade do Código de Processo Penal ostenta característica de norma processual penal mista (ou heterotópica) o que nos conduziria à conclusão de que, em se revelando favorável (como de fato o é), deve ser aplicada retroativamente. Entretanto, por ora, o tema ainda não pode ser considerado definitivamente uniformizado.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, ao longo de 2020, houve uma clara divergência entre a 5ª e 6ª Turmas. A primeira tem ventilado a retroatividade do ANPP em processos em curso SOMENTE até o recebimento da denúncia, ao passo que a outra vinha admitindo a retroatividade do ANPP aos processos em curso até o TRÂNSITO em julgado. Vejamos esquematicamente:
Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal, essa temática foi afetada ao Plenário, na expectativa de uniformizar a compreensão e aplicação do novo dispositivo. Ao encaminhar o Habeas Corpus 185.913 para o órgão máximo do STF, o Ministro Gilmar Mendes indicou objetivamente que a Corte deve decidir se (i) o ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? (ii) Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? (iii) se é possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado? E (iv) se é potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo? Até o presente momento, não há decisão definitiva do Plenário sobre o assunto.
No entanto, a 1ª Turma do STF encampou tese semelhante à da 5ª Turma do STJ à unanimidade. Segundo o colegiado, o ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
ATENÇÃO! Agora no início de 2021 (março), tivemos uma GRANDE NOVIDADE! A 6ª Turma alterou sua posição e passou a afirmar (por maioria) que é possível a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal, introduzido pela chamada “Lei Anticrime”, DESDE QUE A DENÚNCIA NÃO TENHA SIDO RECEBIDA. Para o colegiado, uma vez iniciada a persecução penal em juízo, não há como retroceder no andamento processual (HC 628.647). A antiga divergência no STJ foi SUPERADA.
Segundo a Min. Relatora (Laurita Vaz), “o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente sobre o qual há, em tese, justa causa para o oferecimento de denúncia se aplica ainda na fase pré-processual, com o claro objetivo de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal” e, assim, permitir sua aplicação retroativa quando já houvesse ação pena recebida desvirtuaria o instituto.
Ainda resta pendente a deliberação do Pleno do Supremo Tribunal Federal, mas – cada vez mais – se consolida a impressão de que essa será a tese que deverá prevalecer.
Espero que tenham gostado e, sobretudo, entendido!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
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