Por Fernando Andreoni Vasconcellos
Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça, em recurso repetitivo, fixou requisitos/critérios cumulativos para que o Poder Judiciário possa deferir pedidos de fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS, exigíveis em processos distribuídos após a referida decisão. Ei-los:
“(i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento” (REsp 1.657.156/RJ, rel. min. Benedito Gonçalves).
O Supremo Tribunal Federal pode confirmar (ou infirmar) tais critérios no julgamento dos recursos extraordinários 566.471 e 657.718, mas também pode ir além. Como já dissemos, nos pronunciamentos de nossas cortes de vértice quanto à judicialização da saúde, “aguarda-se a definição do que se pode postular em juízo, de quem pode fazê-lo e em face de quem”[1].
A discussão constitucional da matéria pode alcançar o espinhoso tema da solidariedade dos entes estatais no dever de prestar serviços na área de saúde. Segundo a tese 793 do STF em repercussão geral, “[o] tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, sendo responsabilidade solidária dos entes federados, podendo figurar no polo passivo qualquer um deles em conjunto ou isoladamente”.
Essa tese foi extraída do julgamento do Recurso Extraordinário 855.178, todavia, não houve trânsito em julgado, e seu desfecho foi adiado por determinação do ministro Fachin, em razão da pendência dos julgamentos dos recursos extraordinários 566.471 e 657.718.
Em que pese o entendimento do STF sobre a solidariedade, há enunciados interpretativos indicando a necessidade de atenção às atribuições administrativas — enunciados 7, 8 e 60 das Jornadas de Direito à Saúde do CNJ. Conforme o Enunciado 8, “[n]as condenações judiciais sobre ações e serviços de saúde devem ser observadas, quando possível, as regras administrativas de repartição de competência entre os gestores”.
Tal tema pode receber um novo colorido em razão das recentes alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.655/2018. Dentre as novas modificações na LINDB, ao menos um artigo repercute diretamente no tema da solidariedade dos entes federados no âmbito da saúde. Prevê o novo artigo 20: “[n]as esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.
Em primeiro lugar, não nos parece que a simples concessão judicial de um medicamento/tratamento de saúde (mesmo que fora da lista do SUS) atraia a aplicação desse dispositivo. Dessarte, a saúde não é um valor jurídico abstrato, pois possui regramento jurídico específico, no âmbito constitucional e infraconstitucional. Em verdade, há divergências sobre o conteúdo e alcance do direito à saúde, mas a sua carga de vagueza não o torna um “valor jurídico abstrato”, despido de substancial conteúdo deôntico.
No entanto, a ideia de solidariedade no âmbito da saúde enquadra-se nesse conceito. Isso porque ela não possui uma referência normativa clara, mas, sim, decorre de um esforço interpretativo a partir do artigo 23/CF — que trata da competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Confirmando a abstração da ideia de solidariedade dos entes, frise-se que o Supremo Tribunal Federal, quando analisou a competência comum dos entes federados para proteção dos sítios arqueológicos (CF, artigo 23, inciso III), entendeu que isso não significa a necessidade de ações simultâneas (ADI 2.544, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 17/11/2006). Cumpre mencionar, ainda, que existem estudos acerca do tema apontando a solidariedade, no âmbito da saúde, como algo relativo, unicamente, à organização do Sistema de Único de Saúde — isto é, instituição de políticas públicas, inexistindo solidariedade quando existente repartição de atribuições entre os entes gestores[2].
Com efeito, o direito positivo não prevê expressamente a solidariedade dos entes federados no âmbito da saúde, tampouco a sua referência legislativa segundo a jurisprudência — artigo 23/CF — permite a extração de contornos normativos exatos de seu conceito (e de sua consequência normativa). Assim, por mais que ontologicamente a solidariedade, sobretudo no Direito Civil, não seja um “valor”, a forma com a qual fora construída/inferida pela doutrina e jurisprudência no âmbito da saúde a torna um “valor jurídico abstrato”.
Encampando essa premissa, e aplicando o artigo 20/LINDB, cumpre analisar as consequências práticas da decisão que invoca a solidariedade no âmbito da saúde. A principal consequência prática é, sem dúvida, a interferência nas regras administrativas de repartição de competência. Importa dizer, em virtude da solidariedade, judicialmente se desconsidera a existência de diferentes atribuições dos entes públicos no âmbito da saúde. Com isso, um ente federado pode vir a arcar com um medicamento/tratamento que, administrativamente, não tinha a obrigação de fornecê-lo, prejudicando-se a racionalidade do sistema de saúde e interferindo-se indevidamente no orçamento do ente.
Nesse cenário, há três alternativas factíveis juridicamente para a decisão acerca do tema, no âmbito do Supremo Tribunal Federal: (1) manter-se o modelo atual, com a solidariedade permitindo que qualquer ente federado seja demandado, por qualquer medicamento/tratamento; (2) reconhecimento das regras administrativas de repartição de atribuições como regras imperativas, pelas quais somente o(s) ente(s) responsável(is) administrativamente detém(êm) legitimidade passiva para ser(em) demandado(s) judicialmente; (3) manutenção da regra de solidariedade, de forma temperada, em conjunto com as regras administrativas de repartição de competências.
O modelo atual “1” não é necessário nem adequado. Ele falha por imputar responsabilidade a quem não possui, prejudicando a racionalidade do sistema e o orçamento dos entes públicos, principalmente municípios e estados, gerando consequências práticas indesejáveis[3]. Note-se que a Lei 8.080/90 prevê o “ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo” (artigo 35, inciso II), todavia, a experiência tem demonstrado a ineficiência dessa previsão legal[4].
A opção “2” seria a ideal, se houvesse uma disciplina jurídica, de todas as competências administrativas, clara e completa. Como infelizmente não existe, tal opção se torna inapropriada, porque não é correto penalizar, pela falha na definição objetiva do responsável, o paciente que se vê na necessidade de ingressar em juízo para postular determinado medicamento/tratamento.
A alternativa “3” é a mais adequada. No entanto, ela depende de uma releitura do dever de solidariedade, pelo Supremo Tribunal Federal, e com ela seriam efetivamente minimizadas as consequências danosas da decisão. A “solidariedade temperada”, “derrotável”[5], é aquela que permite ao paciente demandar qualquer dos entes federados, mas também autoriza ao demandado postular, (3.1) imediatamente ou (3.2) oportunamente, o cumprimento pelo responsável ou ressarcimento dos gastos, respectivamente — quando o demandado não for o responsável.
Sabe-se que trazer a discussão acerca da responsabilidade passiva, juntamente com o mérito da demanda, pode causar tumulto processual. Por isso, o pedido de citação de determinado(s) ente(s) deve ser excepcional (opção 3.1), sendo permitido somente quando for demonstrada a impossibilidade, ou grande dificuldade, de cumprimento da ordem pelo demandado — por exemplo, um tratamento de câncer extremamente caro, postulado em face de certo município de pequeno porte.
Pela opção “3.2”, a decisão do STF asseguraria ao ente demandado o direito de, oportunamente, requerer administrativamente o ressarcimento pelos gastos efetuados por força de demanda judicial, independentemente de que isso conste no título judicial. Em tal situação, em nome da boa-fé e do próprio pacto federativo, seria necessário ao demandado informar, administrativamente, em um diálogo interinstitucional, o ajuizamento de tal demanda, para que, caso queira, possa o ente responsável pedir o seu ingresso no feito — podendo haver deslocamento da competência, caso a União venha a integrar a lide.
Por intermédio dessa informação/notificação, o ente responsável terá ciência da demanda e de que, em caso de derrota, ser-lhe-á requerido o ressarcimento. Essa informação/notificação seria desnecessária caso o ente responsável já estiver no polo passivo da demanda. O prazo para decisão do pedido de ressarcimento seria de 30 dias, no âmbito federal (artigo 49, Lei 9.784/99), também aplicável, em razão da isonomia, aos demais entes.
É fundamental o reconhecimento de que tal direito independe de constar ou não no título judicial, para se evitar desnecessárias discussões sobre competência e legitimidade, dando-se, assim, plena eficácia à previsão do artigo 35, inciso II da Lei 8.080/90. Por exemplo, exigir que, para o ressarcimento da União, ela devesse compor a lide prejudicaria o acesso à Justiça, porquanto a demanda somente poderia ser proposta na Justiça Federal, que não possui a capilaridade da Justiça estadual.
Buscando a síntese, a decisão do Supremo Tribunal Federal que melhor trataria das consequências da solidariedade na judicialização da saúde (artigo 20/LINDB) deve conter os seguintes pressupostos:
a) a solidariedade no dever de prestar serviços na área de saúde deve ser interpretada com temperamento;
b) o(s) ente(s) federado(s) demandado(s) pode(m) postular, oportunamente, o ressarcimento do valor gasto, judicialmente, com determinado medicamento/tratamento, em face do(s) ente(s) responsável(eis), por força do artigo 35, II da Lei 8.080/90, independentemente de que isso conste no título judicial e mesmo que o(s) responsável(eis) não tenha(m) integrado a lide. O prazo para decisão do pedido de ressarcimento é de 30 dias, no âmbito federal (artigo 49, Lei 9.784/99), também aplicável, em razão da isonomia, aos demais entes;
c) para valer-se do direito previsto no item (b) supra, deve a parte demandada notificar, administrativamente, o(s) ente(s) responsável(eis), para dar-lhe(s) ciência da demanda, para que, caso queira(m), possa(m) nela ingressar, para o exercício do contraditório e ampla defesa;
d) é possível ao demandado formular pedido de citação de determinado(s) ente(s), de forma excepcional, sendo lícito somente quando for demonstrada a impossibilidade, ou grande dificuldade, de cumprimento da ordem;
e) devem os entes federados, por meio das comissões intergestores (Decreto 7.508/2011), num prazo razoável, desenvolver um sistema interinstitucional/interfederativo de acompanhamento das demandas judiciais em matéria de saúde, pelo qual será possível a comunicação e ciência das demandas ajuizadas;
Mesmo com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que ainda existem pontos importantes a serem enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal, sobretudo no campo da divisão de responsabilidades dos entes federativos e na interpretação do conceito de solidariedade.
Por fim, frise-se que a solução proposta pelo ministro Barroso em seu voto no RE 566.471, de que a demanda deveria ser proposta necessariamente em face da União, em caso de pedido de fornecimento de medicamento/tratamento não incorporado pelo SUS, não é a mais correta. Tal interpretação acaba por esvaziar completamente a ideia de solidariedade dos entes federados e gera uma espécie de “lide secundária”, na qual se discutiria a necessidade/possibilidade de incorporação do medicamento postulado, o que prejudicaria o conhecimento e julgamento do pedido individual e concreto de fornecimento do medicamento/tratamento.
Essa solução, ademais, desconsidera a possibilidade de existência de listas complementares à Rename, nos âmbitos estadual, distrital e municipal. Segundo o artigo 24 do Decreto 7.508/2011, “[o]s Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações específicas e complementares de ações e serviços de saúde, em consonância com a RENASES, respeitadas as responsabilidades dos entes pelo seu financiamento, de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores”.
Conforme o artigo 6º da Resolução 1/2012, da Comissão Intergestores Tripartite, “[o]s Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem definir medicamentos de forma suplementar à RENAME, para atendimento de situações epidemiológicas específicas, respeitadas as responsabilidades dos entes federativos, conforme análise e recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC)”.
[2] “A responsabilidade solidária entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios tem por escopo impor a organização do Sistema de Único de Saúde para assegurar o acesso universal e igualitário, com atendimento integral nas políticas públicas de saúde. Havendo políticas públicas com a repartição de atribuições entre os entes gestores, estas devem ser consideradas para fins do exame da competência e legitimidade passiva nas ações judiciais sobre direito à saúde, atendendo-se, desse modo, ao comando do art. 8º, XIII, da Lei 8.080/90, evitando a duplicidade de meios para fins idênticos, efetivando-se o princípio constitucional da eficiência da administração pública” (GEBRAN NETO, João Pedro; DRESCH, Renato Luís. A reponsabilidade solidária e subsidiária dos entes políticos nas ações e serviços de saúde. p. 21. Disponível em: http://goo.gl/3xcw7A). No mesmo sentido: DRESCH, Renato Luís. Federalismo solidário: a responsabilidade dos entes federativos na área da saúde. p. 6. Disponível em: http://goo.gl/nnxYbb.
[3] Antes mesmo da recente alteração na LINDB, Renato Luís Dresch já defendia a necessidade de que o julgador observasse as consequências de sua decisão, no âmbito da judicialização da saúde, em relação ao orçamento público: “As decisões judiciais devem ser tomadas levando em conta a repercussão que terão na esfera administrativo-orçamentária, de modo que o magistrado deve ficar atento ao que se chama de consequencialismo jurídico da sua decisão, porque podem irradiam impactos sociais e econômicos que as vezes transcendem a própria lide, eventualmente tornando inviável a gestão administrativa, sobretudo de pequenos Municípios” (DRESCH, Renato Luís. A garantia de acesso à saúde e as regras de repartição da competência entre os gestores. p. 40. Disponível em: https://goo.gl/FFmGBM).
[4] “Embora no art. 35, VII, da Lei 8.080/90 esteja previsto o ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo, não se pode desprezar que inexiste um fluxo automático de ressarcimento administrativo, de modo que impor ações e serviços de outro ente pode impactar negativamente o orçamento, sobretudo se isso for imposto a pequenos Municípios” (DRESCH, Renato Luís. A garantia…, op. cit., p. 40).
[5] Sobre a derrotabilidade, v. o nosso: VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Hermenêutica jurídica e Derrotabilidade. Curitiba: Juruá, 2010.
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