Aplicação por eclusas de dispositivos de “Parte Geral” nos crimes militares extravagantes

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04 de outubro5 min. de leitura

Com a inovação da Lei n. 13.491, de 16 de outubro de 2017, como já se sabe, houve uma ampliação das possibilidades de configuração de crimes militares, naquilo que rotulamos de “crimes militares extravagantes”.

Já se escreveu muito sobre as inquietações que a nova lei nos trouxe. Entre essas inquietações, está a que discute  quais dispositivos de Parte Geral se deve aplicar nos crimes militares extravagantes, se aplicamos os dogmas do Direito Penal comum, de onde parte o tipo penal trasladado para o Direito Castrense, ou se mantemos a fidelidade ao Código Penal Militar nestes casos.

Em avaliação específica, publicada no Observatório da Justiça Militar (https://www.observatoriodajusticamilitar.info/), sustentei a aplicação da Parte Geral do Código Penal Militar.

Nessa construção, deve-se estabelecer uma premissa, estabelecida à luz do que dispõe o art. 12 do CP, segundo o qual as “regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.

É dizer, por outras letras, que qualquer lei brasileira que possua tipos penais incriminadores deverá ter por aplicação a Parte Geral do CP, salvo se esta própria lei dispuser de maneira diversa.

O exemplo dado na ocasião foi o conceito de reincidência para os crimes ambientais. O art. 63 do CP define o reincidente como aquele que “comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”, tendo-se ainda em conta o período depurador e excluindo-se os crimes políticos e propriamente militares (art. 64 do CP), idealizando um conceito genérico de reincidência. Este conceito se espraia para toda a legislação penal especial, salvo se houver disposição em sentido diverso, justamente o que ocorre com os crimes ambientais, pelo art. 15, I, da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que considera como circunstância agravante apenas a reincidência em crimes de natureza ambiental. Esta regra, note-se, excepciona aquela, justamente como comanda o art. 12 do CP.

Nessa linha, sustentei que a mesma situação ocorre em relação ao CPM, no sentido de que ao prever regras específicas da Parte Geral – inclusive, um conceito próprio de reincidência, em que, além do período depurador, excluem-se apenas os crimes anistiados – são elas aplicadas aos crimes militares, justamente em observância à regra geral do art. 12 do CP.

Conclui, finalmente, que os dispositivos da Parte Geral do CPM devem ser aplicados, em regra, aos fatos apreciados como crimes militares, incluindo-se aí a teoria diferenciadora do estado de necessidade, a prescrição – mais benéfica no CPM se considerado que ocorre em dois anos para os crimes em que o máximo da pena é inferior a um ano (art. 125, VII, CPM), enquanto no CP, nesses mesmos casos, a prescrição ocorrerá em três anos (art. 109, VI, CP) – etc.

Essa realidade, frise-se, não foi abalada pela Lei n. 13.491/17, porquanto não alterou ela outros dispositivos da Parte Geral do CPM, além do art. 9º, e nem comandou que nos crimes militares extravagantes deveria ser aplicada a Parte Geral do CP, de maneira que uma interpretação nesse sentido importaria em ir além daquilo que o legislador desejou. Ele, o legislador, apenas ampliou o rol dos crimes militares e, frise-se, o fez pela alteração do CPM, de maneira que os crimes militares extravagantes ganham a natureza de militares por força do Código Castrense, que exige a aplicação de sua Parte Geral.

Claro, essa interpretação admite exceções, como o caso, também apontado na ocasião do artigo, de institutos do Código Penal Militar, em sua Parte Geral, que padeçam do grave vício de afrontar a Constituição Federal, a exemplo, na minha concepção, do erro de direito.

Mas uma outra questão, após a publicação do artigo, surgiu a me inquietar.

E se o crime militar extravagante for trazido também de uma lei penal especial que possua dispositivos que excepcionem regras de Parte Geral, quais dispositivos devem ser aplicados? Os do Código Penal Militar ou os da lei penal especial de origem.

Aqui, para solucionar a questão, proponho a análise por eclusas, ou seja, por etapas de preenchimento, que passo a construir.

 A primeira etapa é justamente a que acima se evidenciou, ou seja, estabelecer a regra de que nos crimes militares extravagantes deve-se aplicar, em princípio, a Parte Geral do Código Penal Militar, em homenagem ao artigo 12 do Código Penal comum.

Partindo-se dessa “eclusa preenchida”, a navegação continua e chega ao ponto em que se depara com o obstáculo de uma outra lei penal especial, exigindo uma nova compreensão.

Para exemplificar, imagine-se um crime do art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais, em que um militar do canil de uma Instituição Militar mutile um cão pertencente ao patrimônio da administração militar (art. 9º, II, “e”, do CPM). A configurar o crime, já com na forma qualificada, com pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição da guarda, conforme a Lei n. 14.064, de 29 de setembro de 2020, como aplicaríamos dispositivos de Parte Geral? Mais especificamente e também em exemplo, poderíamos considerar uma circunstância agravante se o fato for praticado em um domingo, nos termos da alínea “h” do inciso II do art. 15 da Lei n. 9.605/1998, ou devemos nos ater às agravantes do art. 70 do CPM, onde essa circunstância inexiste? Aplicaremos, em outro exemplo, o conceito de reincidência do inciso I do art. 15 da Lei n. 9.605/1998 ou do art. 71 do Código Penal Militar.

Friso que não me refiro a questões processuais, que demandariam construção destacada, mas a questões de direito material, no caso do exemplo, referente à aplicação da pena.

Verdade que o legislador nos deixou esses problemas com a Lei n. 13.491/2017, mas temos que buscar resolvê-los da melhor forma possível, preferencialmente indicando um caminho que implique em uma maior segurança jurídica.

Nesse caminho, primeiro é preciso pensar na higidez sistêmica da lei de origem, ou seja, a lei penal especial donde se bebe, possui – ou deveria possuir – uma lógica internamente sistematizada, em que seus dispositivos, não apenas relativos ao crime em espécie, como majorante e minorantes, mas também aqueles que se aplicam genericamente aos crimes do referido sistema, notadamente normas que podem ser rotuladas como de “Parte Geral”, são inseparáveis da lógica repressiva estabelecida, de maneira que devem também ser respeitadas, sob pena de, por uma forma ou outra, desconstituir a escorreita repressão idealizada.

Claro, não é tarefa fácil fazer isso, pois estaremos inquinados a aplicar o CPM, sem pestanejar, mas não parece ser, sob censura de vocês que comigo refletem, ser um bom caminho negar essa lógica sistêmica.

Mas haveria algum argumento teórico a permitir essa manutenção sistêmica?

A resposta é em sentido afirmativo e está na primeira parte do art. 17 do Código Penal Militar, segundo a qual as “regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei penal militar especial, se esta não dispõe de modo diverso”.

Com redação próxima à do art. 12 do Código Penal, o art. 17 do CPM, comanda que “leis especiais editadas posteriormente ao Código Penal Militar, serão como os dispositivos desse, igualmente regidas pelos mesmos princípios gerais, salvo se expressamente estabelecidas outras normas ou criados diferentes conceitos” (ASSIS, 2017, p. 145).

Claro, o dispositivo do Código Castrense se refere a lei penal militar especial, que, a rigor, não é o caso exato de leis penais comuns extravagantes que “emprestam” seus tipos ao Direito Penal Militar, mas a ratio do art. 17 pode muito bem abrir a possibilidade de mesma compreensão nestes casos.

Preenche-se, assim, a segunda eclusa, ou seja, podemos com mais este degrau continuar a navegação, compreendendo que dispositivos de lei penal especial que digam respeito a uma higidez sistêmica, de direito material, são aplicáveis nos crimes militares extravagantes, em detrimento de regras genéricas do Código Penal Militar.

Assim, apenas para fechar o raciocínio com o exemplo da Lei dos Crimes Ambientais, deve-se aplicar, no crime militar ambiental extravagante, o conceito de reincidência da Lei n. 9.605/1998 e não puramente o do art. 71 do CPM; igualmente, o crime militar ambiental extravagante cometido em um domingo, deve conhecer a agravante específica da Lei dos Crimes Ambientais, em segunda fase de aplicação da pena, ao mesmo passo que as agravantes específicas do CPM não devem ser aplicadas neste caso (ex.: fato praticado em auditório da Justiça Militar ou local onde tenha sede a sua administração, da alínea “n” do inciso II do art. 70 do CPM), sob pena de possibilitar a polêmica e indesejável lex tertia.

Naveguemos, então, no caminho possibilitado pelas eclusas, sem prejuízo de outras interpretações que possam fomentar o debate, que aguardo ansiosamente.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2017.

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