Art. 9º do Código Penal Militar e a distinção entre militar da ativa e militar em serviço no Superior Tribunal de Justiça

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O art. 9º do Código Penal Militar, especialmente o inciso II, traz a possibilidade de subsunção mediata para a configuração de crime militar, ganhando muito mais importância o dispositivo com a alteração que lhe promoveu a Lei n. 13491/2017, que possibilitou que um crime previsto apenas na legislação penal comum seja adjetivado como crime militar em tempo de paz.

Nesse inciso, duas alíneas ganham especial interesse, pois, embora tragam hipóteses diversas, têm sido confundidas em algumas decisões judiciais.

Tratam-se das alíneas “a” e “c”, que dispõem:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I- […];

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) [..];

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil.

A questão foi reaquecida no “Tribunal da Cidadania” recentemente, por força de uma decisão monocrática do Ministro Ribeiro Dantas, especificamente no Habeas Corpus n. 700150-RJ, decidido em 7 de fevereiro de 2022, que voltaremos a comentar abaixo.

Naturalmente, não se deve confundir a expressão “em situação de atividade” com a expressão “em serviço”, porquanto é possível estar na ativa sem estar em serviço militar (policial militar, dos Corpos de Bombeiros ou das Forças Armadas).

Entretanto, por vezes, como acima suscitado, as expressões são confundidas. Exemplificativamente, foi o que ocorreu, no Superior Tribunal de Justiça (Terceira Seção), no Conflito de Competência n. 26.986/SP, sob relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14 de março de 2007, que considerou as expressões em análise sinônimas, lavrando a seguinte ementa:

Processo penal. Homicídio culposo. Policial militar. Veículo particular. Acidente de trânsito fora do período de caserna. Competência da justiça comum.

Cabe à Justiça Comum Estadual julgar homicídio decorrente de acidente automobilístico em que o acusado e a vítima, embora agentes militares, não se encontravam em exercício militar.

Ademais, diante de atividade de natureza individual e particular não se há por correto cogitar-se de atividade militar ratione materiae. (Precedentes).

Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direto do Foro Distrital de Ipuã, da Comarca de São Joaquim da Barra, SP.

Embora fosse possível – na época, antes da Lei n. 13.491/2017 – construção acerca da competência da justiça comum para julgar acidentes de trânsito, o foco da decisão foi a discussão acerca de não estar o militar da ativa em função militar, o que é indiferente para a alínea a do inciso II do art. 9º.

Em outro julgado, agora em face de um homicídio praticado por militar da ativa contra outro militar da ativa com emprego de arma de fogo, durante uma confraternização fora do quartel, mais uma vez sob relatoria da Ministra Maria Thereza, em sede de Habeas Corpus (HC 119813/PR), julgado pela Sexta Turma em 16 de dezembro de 2008, entendeu-se novamente que as expressões “em situação de atividade” e “em serviço” são sinônimas:

Processo penal. Habeas corpus. Policial Militar. Homicídio contra colega. Uso de farda e arma da Corporação. Churrasco fora das instalações castrenses. Imprudência alheia ao exercício da função. Justiça Militar. Incompetência.

O crime militar, definido no art. 9º do Código Militar, deve ser entendido de forma restritiva, sempre tendo em conta a razão de ser da justiça especializada. Quando o militar se encontra fora de situação de atividade, entendida como tal sua efetiva atuação funcional, ou seja, nas ocasiões em que age como civil, não há se estender a competência da justiça militar, visto que não há se lhe exigir o mesmo padrão de conduta, de hierarquia e disciplina.

Ordem concedida para, reconhecendo a incompetência da Justiça Militar, anular a ação penal n. 6/05, distribuída à Vara da Auditoria da Justiça Militar do Paraná – Conselho Permanente da Justiça Militar Estadual, a partir do oferecimento da denúncia, inclusive, sem prejuízo do envio dos autos ao Ministério Público do Estado do Paraná para que, se o caso, ofereça nova exordial acusatória.

Por vezes, a visão do Superior Tribunal de Justiça, embora não confunda a expressão “em serviço” com a expressão “em situação de atividade”, nega a objetividade da alínea “a” do inciso II do art. 9º do CPM, entendendo que não basta para caracterizar o delito militar que ambos sejam militares da ativa. Nessa linha, na Terceira Seção, temos o Conflito de Competência n. 149.487-RJ, de relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca (Dje de 13/02/2017):

[…].1. Desavença entre condôminos que ostentam a condição de militar da ativa e residem no mesmo prédio e que culminou em agressões físicas recíprocas, nas dependências do edifício. […]. 3. Se o ilícito investigado não foi cometido em detrimento de interesses ou bens de instituições militares, tampouco é expressamente tipificado no Código Penal Militar, relacionando-se, nitidamente, a desentendimento de natureza privada, a mera circunstância de ambos os envolvidos na desavença ostentarem patentes militares, por si só, não se revela suficiente para atrair a competência da Justiça Militar especializada, tanto mais quando não há infração penal em que a condição de militar se afigure essencial ao tipo da lesão corporal (ou mesmo da contravenção de vias de fato). Precedentes. […] (g.n.).

Há, como ratio nestes dois últimos julgados, uma compreensão mais substancial do crime militar, negando-se, repetimos, a objetiva previsão do Código Penal Militar no texto claro da alínea “a” do inciso II do art. 9º.

Apesar dos julgados acima, o próprio STJ, em outras decisões, seguiu por outro caminho. No Conflito de Competência n. 96.330/SP, sob relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado pela Terceira Seção em 22 de abril de 2009, a decisão daquela Corte, em face de um homicídio doloso de policiais militares da ativa contra outro policial militar em situação de atividade, foi em sentido oposto. Vejamos:

Conflito positivo de competência. Processual Penal. Crime praticado por militar em atividade contra militar em idêntica situação. Competência da Justiça Militar.

Compete à Justiça Castrense processar e julgar crime praticado por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado. (CC 85.607/SP, Rel. Min. OG FERNANDES, DJ 8/9/08)

Militar em situação de atividade quer dizer ‘da ativa’ e não ‘em serviço’, em oposição a militar da reserva ou aposentado.

Conheço do conflito para declarar competente o Juízo de Direito da 3ª Auditoria da Justiça Militar do Estado de São Paulo, ora suscitado.

Acerca ainda desse julgamento, duas observações são importantes. Em primeiro plano, no texto do Acórdão verifica-se que a decisão foi unânime e contou, inclusive, com o voto da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, que capitaneou, em dois dos julgados anteriormente mencionados, a visão oposta. Em segundo momento, deve-se notar que o fato se trata de duplo homicídio, em que os policiais militares da ativa foram acusados de praticá-lo não só contra outro policial militar da ativa, mas também contra a sua irmã, que não era militar, havendo o desmembramento que resultou em processo a cargo da 3ª Auditoria da Justiça Militar do Estado de São Paulo, para julgar o homicídio contra o outro militar da ativa, e no Tribunal do Júri, para julgar o homicídio contra a sua irmã, em observância ao disposto na alínea a do art. 102 do Código de Processo Penal Militar e no inciso I do art. 79 do Código de Processo Penal comum.

Em outro exemplo no Superior Tribunal de Justiça, a “pureza” da alínea “a” do inciso II do art. 9º do CPM foi respeitada. Trata-se do Ag. Rg. No RHC n. 91.473-RJ, de relatoria do Min. Rogério Schietti Cruz, julgado pela Sexta Turma em 15/03/2018, em que se decidiu:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Não há incompetência da Justiça Militar, uma vez que tanto o recorrente quanto as vítimas eram policiais militares da ativa, embora o acusado estivesse de folga durante a prática delitiva. 2. Agravo regimental não provido (g.n.).

Frise-se, para que não confundamos as palavras, que, ao mencionar que “não há incompetência da Justiça Militar”, o julgado, em verdade, diz que é competente a Justiça Militar nos casos simples e puros de crimes perpetrados por militar da ativa contra militar na mesma situação.

Como se percebe, muito difícil é indicar uma visão predominante no Superior Tribunal de Justiça, pois, por vezes, a mesma Turma – ou mesmo a Terceira Seção que condensa as Quinta e Sexta Turma – possui decisões conflitantes, ora num viés restritivo de aplicação da alínea “a”, ora prestigiando a literalidade e objetividade da mesma alínea.

Entretanto, de maneira muito didática, a divergência naquela Corte Superior foi apontada na já mencionada decisão monocrática, de 7 de fevereiro de 2022, do Ministro Ribeiro Dantas, no Habeas Corpus n. 700150-RJ. Após resumir as posições conflitantes encontradas naquela Corte, tendo os termos por sinônimos ou não, o culto Magistrado identifica uma via intermediária, calcada fortemente não apenas no bem jurídico tutelado, mas também nele. Posiciona-se em favor dessa posição, dispondo:

Com efeito, parece-nos correta a adoção do critério subjetivo, considerando militar em atividade todo aquele agente estatal incorporado às Forças Armadas, em serviço ou não, aliado ao critério objetivo, do bem ou serviço militar juridicamente tutelado.

De todo modo, vale o destaque de que, em muitos casos, o bem jurídico protegido pelo Código Penal Militar encontra igual guarida no Código Penal comum. Exemplo claro dessa situação é o art. 205 do CPM, que tipifica o delito de homicídio simples, tutelando, portanto, o direito à vida, também protegido pelo art. 121 do CP. Por isso, é importante ressaltar que a análise não pode se esgotar no bem jurídico tutelado pura e simplesmente. Deve-se necessariamente averiguar, na situação concreta, a existência ou não de vulneração, a partir da conduta, da regularidade das instituições militares, cujo pilar constitucional se baseia em dois princípios: hierarquia e disciplina.

A mencionada decisão[1], ressalte-se, é de fundamental leitura para os concursandos, especialmente aqueles que enfrentarão a segunda fase do concurso para Promotor de Justiça Militar, em abril de 2022.

[1] Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1374852451/habeas-corpus-hc-700150-rj-2021-0329060-1/decisao-monocratica-1374852507. Acesso em 28. Fev. 2022.

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