Sou mulher, negra e de uma família simples da zona rural do Nordeste. Tinha tudo para me curvar
Amada,
Eu nunca fui militante feminista ou de esquerda, nem ao menos me considero “politizada”. Pode ficar chocada, caso queira, mas eu não sei distinguir as siglas e as ideologias dos partidos políticos do Brasil, muito menos entender o que significa direita ou esquerda nesse cenário institucional extremamente complexo.
Afinal, sou procuradora federal, uma das carreiras da Advocacia-Geral da União, que é uma Advocacia de Estado e não de Governo (existem outras três carreiras na AGU: Procurador da Fazenda Nacional, Advogado da União e Procurador do Banco Central).
O que eu posso dizer é que sou uma mulher, negra, nascida no interior do Nordeste, no seio de uma família simples, e que conheço e sinto a discriminação desde sempre. Ou seja, eu tinha tudo para me curvar às “leis naturais” e à “realidade”, que nos oprimem dia-a-dia, e paralisar diante dos obstáculos. O problema (ou solução) é que já nasci com a convicção de que qualquer ser humano pode ser o que quiser ser, independentemente de gênero, de raça, de origem, condição sexual, etc.
Eu cresci com a convicção de que ter nascido mulher não me diminuía, não me obrigava a aceitar os papéis sociais pré-determinados pelas estruturas do patriarcado canavieiro do interior de Pernambuco. Quantas batalhas eu travei com parentes por não aceitar servir aos meus primos homens ou por me recusar a lavar os seus pratos? Quantas vezes fui chamada de preguiçosa por odiar afazeres domésticos, mesmo tirando excelentes notas no colégio?! Quantas vezes escutei que deveria me comportar como uma mocinha? E quantas vezes eu fui desacreditada quando falava que estudaria na gloriosa e concorrida Faculdade de Direito do Recife (UFPE)? Quantos me disseram que isso era impossível? Quantos duvidaram da minha capacidade? Por sorte minha, meus pais acreditavam nos meus sonhos e na minha capacidade.
Apesar das dificuldades, como a de morar na zona rural e de às vezes ter que atravessar o lamaçal pós-chuva em cima de um trator para poder chegar à escola, eu acredito que saí na frente da maioria. Sabe aquelas frases de autoajuda do tipo: quanto mais cedo você define aonde quer chegar mais rápido você chega? Pois bem, eu decidi que iria fazer Direito aos nove anos de idade e jamais duvidei de que fosse conseguir. Com essa mesma idade iniciei uma filosofia de vida, que também é um esporte olímpico: o judô (que era coisa de menino, segundo me diziam). Mas Chiara, qual a relevância disso? Calma, eu vou contar.
O esporte me fortaleceu ainda mais, me trouxe disciplina e desenvolveu minha determinação e autoconfiança. Eu viajei por várias capitais do país para representar o meu estado desde muito nova e os bons resultados alcançados foram fundamentais para me garantir uma bolsa integral em um dos melhores colégios de Recife (o Colégio Boa Viagem que me acolheu, por meio da intervenção do coordenador de esportes Tulio Ponzi e do Sensei Nagai, aos quais serei eternamente grata). Isso mudou a minha vida e me aproximou do meu sonho. Aos 14 anos fui morar na capital mais linda do Brasil: Recife, e meus pais não mediram esforços para que eu aproveitasse essa oportunidade.
Não foi fácil morar na cidade, muito pelo contrário, mas quando se tem um objetivo firme, as dificuldades impulsionam o caminhar. Após quatro anos de estudo, eu conquistei minha tão sonhada vaga na “Casa de Tobias”, o que considero motivo de orgulho até hoje. E foi na Faculdade de Direito do Recife que me envolvi com a pesquisa e com o ensino (monitoria), desde os primeiros semestres de faculdade. Passei a ter certeza de uma coisa: minha vocação era acadêmica. Nessa idade nós costumamos ter muitas certezas e eu estava feliz, alegre e satisfeita.
Agora, finalmente, eu vou contar para você como eu decidi fazer concurso público e como eu me preparei para isso!
Eu estava cursando o 9º semestre quando, numa não-tão-bela noite, após sair da faculdade, fiquei sozinha em uma parada de ônibus, por volta das 23 horas (o que representa um grande perigo, nós mulheres sabemos). Eu estava morta de fome (era final do mês e eu não tinha um real para contar a história), cansada (tinha trabalhado três turnos, entre monitoria, estágio, pesquisa e aulas) e o meu maior desejo era chegar em casa sã e salva (a onda de estupros em Recife estava assustadora). Não sei o que doía mais, a fome ou o cansaço dos pés esmagados pelo salto alto. Eu já estava lá há cerca de meia hora e aquele seria meu 8º ônibus do dia (isso mesmo: oitavo).
Mas quando você acha que nada pode piorar, Murphy prova que você estava errada. O que aconteceu? Começou a chover torrencialmente, mas lá vem vindo meu ônibus. Eu suspirei aliviada, agradeci a Deus, o motorista me viu, nossos olhares se cruzaram (eu tenho certeza disso, eu não estou inventando, não foi culpa da fome. Eu juro!), mas ele passou direto. Ele não parou para mim. Lembro de um sorriso sarcástico, mas isso sim pode ter sido alucinação em razão da fome.
Primeiro, eu fiquei sem reação. Em seguida, eu me questionei: “como é possível um ser humano assim?”. Depois, eu passei uma hora, que me pareceu uma eternidade, chorando na chuva (parece até nome de filme) e esperando o próximo ônibus passar (a periodicidade daquele ônibus era terrível – o velho Residencial Boa Viagem, quem conhece tá ligada). Enfim, chegou o outro ônibus, enxuguei as lágrimas e entrei, com a cara toda inchada e a roupa encharcada, mas entrei com firmeza (ao menos foi o me pareceu).
Durante todo o trajeto de volta para casa, eu fui me questionando: “Chiara, você precisa passar por isso?”, “Menina, deixa dessa ideologia besta de transformar o mundo através da docência e da ciência”, “Mulher, acorda e faz igual a metade da tua turma da faculdade: estuda para passar em um concurso”, “Criatura divina, nunca mais se sinta tão humilhada e com tanto medo”.
Cheguei em casa determinada. Tinha cansado de não ter dinheiro e iria fazer todos os concursos que aparecessem. Nesse dia eu não consegui dormir. Eu vi todos os editais abertos: Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), Tribunal Regional do Trabalho da 6a Região (TRT-6) e Polícia Civil de Pernambuco.
Analisei os conteúdos dos editais, procurei saber tudo sobre a banca (Fundação Carlos Chagas – FCC), entrei em todos os fóruns de concurseiros que você possa imaginar. Eu precisava conhecer o inimigo, que para mim era a FCC. Eu nunca adotei a ideia de competir com os(as) colegas, nunca pensei em quantas horas quem estuda o que, há quantos anos fulano(a) estava estudando e não conseguia passar. Nada disso me interessava! Eu precisava entender as estratégias da FCC, como ela estruturava a prova, quais eram as “pegadinhas”, qual a metodologia utilizada, qual a média de questões para cada disciplina, etc.
Passei a primeira semana estudando a banca, lendo dezenas de provas, questionando os amigos e amigas que já tinham sido aprovados e acompanhando as discussões nos fóruns. Com isso, eu defini minha estratégia: decorar todos os pontos do edital conforme o previsto em leis, súmulas e enunciados (esse era o perfil da FCC à época).
Com isso criei um cronograma para ler todo o conteúdo do edital para o TJ-PE repetidas vezes. Eu só dispunha de 4 horas diárias (das 3 às 7 da manhã… sim, eu estudava de madrugada e dormia em média 3 horas por noite), faltavam 45 dias para a prova do TJ-PE e poucos meses para as provas da Polícia Civil e do TRT-6.
Eu tenho dificuldade de concentração, escuto o tique-taque de relógio de pulso e isso me desconcentra, para você ter uma ideia. Passar muito tempo na mesma atividade é um tormento para mim. O estudo para concurso, amada, foi uma tortura sem igual. Não que eu não gostasse de estudar. Pelo contrário, eu sempre amei aprender, mas eu estava na transição da leitura de Habermas para Luhmann, discutindo comunicação, consenso, direito e sociedade (olha a viagem da pessoa). Aí de repente, vejo-me sentada, durante a madrugada, lendo letra de lei e preocupada em decorar todos os prazos possíveis, todas as exceções imagináveis.
Quantas vezes acordei de madrugada para confirmar um prazo? Ou para saber se a competência era exclusiva ou privativa? Quantas vezes chorei, senti taquicardia, falta de ar, crises de ansiedade violentas? Mas eu tinha um objetivo: ser aprovada o quanto antes; e uma motivação: nunca mais precisar andar de ônibus na vida, nunca mais sofrer tentativas de abusos e esfregões em ônibus lotado e nunca, jamais, voltar a me sentir sozinha e com medo no meio da rua. Colei três coisas na parede em frente à minha mesa de estudos: o edital do TJ, o cronograma de estudos e a foto de um carro.
Para encurtar a história: após poucos meses, eu passei para Oficial de Justiça do TJ-PE (como eu não tinha me formado ainda, tive que colar grau antecipado para assumir), também passei para técnica do TRT (também fui nomeada, mas preferi o TJ) e para Escrivã da Polícia Civil de Pernambuco (mas não fui fazer a prova física, que foi no mesmo dia da Prova de Procurador Federal). Meninas, eu consegui “fechar” todas as provas de Direito da FCC, eu consegui vencer a banca. Eu comprei meu primeiro carro com a publicação da minha nomeação no Diário Oficial e esse foi um dia muito feliz!
Durante toda essa preparação, surgiu o concurso para Procurador Federal (no masculino, como a maioria dos editais) e eu decidi que não iria fazer. Eu nem sabia quem era CESPE, muito menos o que fazia um Procurador Federal. Por sorte, eu tinha amigas verdadeiras e parceiras, que me obrigaram a fazer a inscrição, em especial Natália Brito e Marcela Baudel.
Continuei utilizando a mesma metodologia: primeiro conhecer a banca, depois definir cronograma de metas a serem cumpridas. Mas como faltavam apenas 60 dias para a primeira fase do concurso, eu não tinha como estudar todo o conteúdo do edital, então decidi focar nas disciplinas estruturais para a Advocacia Pública Federal (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Processo Civil, Direito Previdenciário e Tributário).
E não é que deu certo? Consegui me livrar do ponto de corte e passei para a segunda fase. O cronograma do concurso estava muito apertado e a prova prática-dissertativa ocorreria menos de um mês depois. Não havia muito mais o que fazer, além de verificar as estruturas das peças e pesquisar as principais atuações da Advocacia-Geral da União. Essa foi a prova mais exaustiva que eu fiz, saí de lá destruída, parecia que tinha sido atropelada por uma carreta e, sinceramente, não fazia ideia de como eu tinha me saído.
O resultado definitivo do concurso saiu no dia do nosso baile de formatura. Meu nome estava lá entre os aprovados, Marcela e Natália também passaram. Eu não consigo descrever como me senti naquele dia, o quanto foi maravilhoso ver nos olhos dos meus pais aquele orgulho da filha que tinham, o quanto eu me sentia feliz, capaz e empoderada.
Eu lembro que me vinham flashes de tudo o que havíamos passado e falo no plural, já que sem os sacrifícios de painho e mainha, dificilmente eu teria conseguido. Lembrei de minha mãe chorando por não poder me proporcionar uma festa de 15 anos e só poder me presentear com um batom. Lembrei das sabotagens que meu pai passou a sofrer após tomar a decisão de dar aos filhos a oportunidade que não teve. Lembrei dos dias de moedas contadas para pagar a passagem de ônibus para o colégio. Lembrei de mainha chorando por não ter dinheiro para o lanche. Tantas coisas passavam pela minha cabeça, mas lembrei de agradecer a Deus por tudo, inclusive por aquele motorista de ônibus, que me deixou sozinha na parada.
Enfim, apesar de todas as adversidades e das “leis naturais” atuando em contrário, cá estou eu, Procuradora Federal, doutoranda em Direito por duas Universidades Europeias (Universidade de Lisboa e Universidade de Roma-Sapienza), professora, pesquisadora e Diretora da Escola do maior escritório de Advocacia do Mundo: a Advocacia-Geral da União. A Escola da AGU fará 17 anos em novembro e durante esse tempo se estabeleceu como Escola de Governo de excelência, ofertando cursos não apenas para seus membros e servidores, mas também para a sociedade em geral (Momento Merchandising: siga nossa página no Facebook e saiba onde e quando serão os próximos eventos! Venha nos conhecer).
Hoje eu sou uma apaixonada pela minha carreira. Realizo-me diariamente por integrar uma instituição que advoga para o Estado e para o povo brasileiro, que viabiliza a execução das políticas públicas em conformidade com a Constituição e com as leis, que luta contra a corrupção no país, que evita danos ao patrimônio do povo brasileiro, que recupera e economiza bilhões de reais anualmente para os cofres públicos (no ano de 2016, foram R$ 78,13 bilhões!!! Isso mesmo) e que hoje é chefiada por uma mulher extremamente competente: a Ministra Grace Mendonça, primeira mulher a ocupar este cargo.
Por fim, só quero dizer uma coisa: por mais difícil que seja, lute. Torne-se referência para suas filhas, sobrinhas, amigas, etc. Tenha foco para definir aonde quer chegar, tenha força para superar as dificuldades e, sobretudo, tenha fé, não apenas em Deus, mas principalmente em si mesma. A Advocacia-Geral da União a espera de braços abertos.
Boa sorte, minha querida. Foco, Força e Fé.
Um forte abraço.
Chiara Ramos, Professora do Gran Cursos Online
Publicado em 12 de setembro no JOTA
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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