Considerações sobre o importante TEMA 1003 (STF) – Repercussão Geral.

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24 de Agosto de 2022

Olá pessoal, tudo certo?

Falaremos hoje sobre um importantíssimo tema aprovado em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, mas que apresenta sutilezas em relação à compreensão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Se há (ainda que parcial) divergência (ou diferenças) entre os Tribunais Superiores, já sabemos que isso deve obrigatoriamente figurar no nosso radar em expectativas de cobrança em certames públicos, mormente de carreiras jurídicas.

O teor da repercussão geral (TEMA 1003) é o seguinte:

É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do artigo 273 do Código Penal, com a redação dada pela Lei 9.677/1998 – reclusão de 10 a 15 anos – à hipótese prevista no seu parágrafo 1º-B, inciso I, que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o preceito secundário do artigo 273, na redação originária – reclusão de um a três anos e multa (RE 979962/RS, 24.03.2021).

Vale anotar que esse debate não é novo. Mesmo antes da deliberação – via repercussão geral – pelo Supremo, o tema já tinha sido enfrentado especificamente pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. O fato é que o crime de “Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, tipificado no art. 273 do Código Penal Brasileiro[1] sempre foi envolto a grandes críticas quanto à constitucionalidade de seu preceito secundário. Aliás, a bem da verdade, nem sempre. Isso veio à baila a partir da Lei 9.677/98, que recrudesceu significativamente a intensidade punitiva, estando atualmente etiquetado como crime hediondo.

Vejamos esquematicamente a mencionada alteração normativa:

Antes da Lei nº 9.677/98 Depois da Lei nº 9.677/98
A pena do art. 273 era de 1 a 3 anos e multa. A pena passou a ser de 10 a 15 anos e multa.

Ao analisar especificamente a constitucionalidade do art. 273, § 1º-B, V, do CP, que prevê semelhante sanção aquele que importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo produtos de procedência ignorada, a Corte Especial do STJ apontou que a intervenção estatal por meio do Direito Penal deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, incumbindo também ao legislador o dever de observar esse princípio como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.

Nesse sentir, sob o viés da razoabilidade e proporcionalidade, revelar-se-ia necessária a atuação do Poder Judiciário para retificar e adequar o exagero da pena cominada em abstrato ao mencionado crime. A infração penal consistente em ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada é de perigo abstrato e independe da prova da ocorrência de efetivo risco para quem quer que seja. A dispensabilidade do dano concreto à saúde do pretenso usuário do produto evidencia ainda mais a falta de harmonia entre o delito e a pena abstratamente cominada (de 10 a 15 anos de reclusão) se comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas – notoriamente mais grave e cujo bem jurídico também é a saúde pública.

A partir desse raciocínio, em fevereiro de 2015, o órgão máximo do STJ concluiu que a carência de relevância penal da conduta e a sobredita desproporcionalidade do preceito secundário do tipo penal revela inadmissível descompasso constitucional, uma vez que a restrição da liberdade individual não pode ser excessiva[2]. A solução apontada pelo órgão colegiado foi no sentido de, reconhecendo tal inconstitucionalidade, deve-se aplicar ao condenado a pena prevista no caput do art. 33 da Lei n.° 11.343/2006 (Lei de Drogas), com possibilidade de incidência da causa de diminuição de pena do respectivo § 4º[3].

Entretanto, um novo capítulo acerca desse crime foi trilhado no ano de 2021, desta feita pelo Supremo Tribunal Federal, que também reconheceu a inconstitucionalidade da pena em abstrato prevista para o crime de Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273 do CPB).

Contudo, a tese aprovada em sede de repercussão geral pelo STF, difere-se quanto à solução adotada. Além de reconhecer a inconstitucionalidade, em face da desproporcionalidade da pena para a conduta tipificada no dispositivo, equiparável à punição de crimes como estupro de vulnerável, extorsão mediante sequestro e tortura seguida de morte, a solução encontrada pela maioria dos ministros foi de repristinar a redação original, que trazia a punição de reclusão de 1 a 3 anos.

O raciocínio esposado pautou-se na percepção de que a Lei nº 9.677/98 foi declarada inconstitucional no que tange às alterações da pena, razão pela qual o preceito secundário anteriormente vigente deveria voltar a produzir efeito (gerando, pois, o efeito repristinatório do reconhecimento da inconstitucionalidade).

CUIDADO! Ao contrário do que fez o STJ, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade exclusivamente do 273, § 1º-B, I do Código Penal e não da íntegra do dispositivo, mantendo-se o debate quanto a extensão ou não da solução aventada para os demais incisos. Percebe-se, pois, que há sensível diferença em relação ao que deliberara a Corte Especial do STJ, em 2015.

A fim de facilitar a compreensão, vejamos:

STJ – Corte Especial, AI no HC 239.363/PR STF (TEMA 1011) – RE 979962/RS
(i) Reconheceu-se a inconstitucionalidade do preceito secundário referente a todos os incisos do § 1º-B do art. 273.

(ii) A solução encontrada foi de aplicar a pena do crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006), com base em aplicação analógica.

(i) Reconheceu-se a inconstitucionalidade exclusivamente do preceito secundário vinculado ao inciso I do § 1º-B do art. 273.

(ii) A solução encontrada foi de aplicar a pena prevista antes da alteração promovida pela Lei nº 9.677/98 (1 a 3 anos).

Muito atenção a esses detalhes, porque – com absoluta certeza – eles serão cobrados em provas vindouras!

Espero que vocês tenham gostado e, sobretudo, compreendido.

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 

[1] Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.677/98) § 1º-B – Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; II – em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V – de procedência ignorada; VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

[2] ATENÇÃO! Apesar de a decisão do caso concreto envolver objetiva e exclusivamente o art. 273, § 1º-B, V, do CP, a partir da leitura dos votos dos Ministros do STJ, dúvidas não há quanto à extensão de raciocínio semelhante a todas as hipóteses do § 1º-B.

[3] AI no HC 239.363/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, CORTE ESPECIAL, julgado em 26/02/2015.

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24 de Agosto de 2022