Pela decisão, em um processo em que é requerente a Justiça Pública (Ministério Público), a juíza Sandra Regina Nostre Marques determina, por meio de ofício judicial às operadoras, a suspensão por 48 horas do acesso através das empresas prestadoras ao WhatsApp, devendo as mesmas bloquearem todo o tráfego existente em relação aos domínios do aplicativo, que sabemos, é de propriedade do Facebook, que tem sua filial no Brasil.
A coerção vem em decorrência do suposto descumprimento de uma ordem judicial de julho deste ano. Assim, descarta-se a princípio qualquer pressão das operadores de telefonia, que sabe-se, vêem com maus olhos o crescimento da aplicação que lhes subtraem diariamente cifras e cifras em comunicação por voz e mensagens.
A ordem que determinou a suspensão do aplicativo vem embasada nos artigos 2º parágrafo primeiro e 21 da Lei de Organizações Criminosas, Lei 12.850/2013, que disciplina:
Art. 2º – Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
Art. 21 – Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação ou do processo:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa
A lei em comento criminaliza a recusa em cooperar com Judiciário ou Ministério Público no fornecimento de dados cadastrais, registros e informações, mas em nenhum momento prevê a suspensão das atividades de um serviço de internet como pena aplicável.
É aí que entra a Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet e sua redação nebulosa e pendente de regulamentação. Ao verificar que mesmo incidindo em multa e crime o Facebook não atendia a determinação judicial, o Ministério Público requereu a suspensão dos serviços com base no Marco Civil, sob pena de crime de desobediência dos provedores de acesso, pedido acolhido pela juíza em questão.
O Marco Civil dispõe sobre o assunto da seguinte forma, ao disciplinar a pena para aquele provedor de serviço que não guardar o “conteúdo das comunicações privadas” ou mesmo não disponibilizá-las mediante ordem judicial:
Art. 12 – Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;
III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou
IV – proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.
Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.
Por outro lado, a decisão é absolutamente desproporcional, não seguindo a progressão da norma e não foi direcionada ao próprio Facebook, mas às operadoras de telefonia móvel, sem relação alguma com a lide. Logo, as operadoras terão dificuldades técnicas e não são obrigadas a cumprir uma decisão que viola o próprio Marco Civil da Internet.
Isto porque, para bloquear um tráfego relacionado a determinada aplicação, o provedor deverá registrar e conhecer o que seu cliente acessa na web previamente, o que em tese é vedado pela norma, vejamos:
Art. 14 – Na provisão de conexão, onerosa ou gratuita, é vedado guardar os registros de acesso a aplicações de internet.
Não bastasse, ao cumprir a ordem judicial expedida neste caso, os provedores violam o próprio princípio da neutralidade da rede, também previsto no Marco Civil, vejamos:
Art. 9º – O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
Deste modo, os provedores de conexão não são obrigados a cumprir ordem que embora judicial é manifestamente ilegal e sobretudo, desproporcional, atingindo inclusive terceiros estranhos à lide, no caso, os próprios provedores. Se bloquearem, correm o risco muito maior de sofrerem ações de reparação pelos danos causados a usuários e empresas
Soma-se a tudo que a ordem tal como emanada é absolutamente ineficaz, considerando que a aplicação, utilizando os números de celulares apenas como “indexador” de usuários, tem a capacidade de ser processada via conexão wi-fi por exemplo, sem interferência de um provedor específico ou que tenha recebido formalmente ofício judicial. Ainda, pode o aplicativo rodar via proxy, impedindo ao provedor detectar o tráfego WhatsApp e consequentemente bloqueá-lo.
Alguns anos após decisão em caso célebre que buscou bloquear o Youtube no Brasil, mais um vez nos deparamos com nítido caso de má interpretação e aplicação das normas relativas aos direitos e deveres dos atores de Internet, ao sermos surpreendidos com uma decisão ilegal, desproporcional, abusiva e ineficaz, mas absolutamente danosa, a qual esperamos, será rapidamente reformada pelas instâncias superiores do Judiciário Paulista.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2015
Confira abaixo a explanação do professor Mauro Moreira sobre esse assunto:
Participe da conversa