Caras e caros colegas,
É comum que surjam questionamentos sobre datas simbolicamente atribuídas a parcelas estruturalmente excluídas (ou subincluídas) da sociedade, não sendo diferente com o 25 de julho, dia internacional da mulher negra latino-americana e caribenha e dia nacional da mulher negra. “Não seria segregar demais?”, perguntam uns. “Isso não é um exagero, existe mesmo essa discriminação toda?”, questionam afirmativamente outros. E é exatamente sobre essas questões que vamos falar no artigo de hoje.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer o porquê da escolha da data. Você já ouviu falar de Tereza de Benguela? Provavelmente não, mas já ouviu e leu sobre a luta pelo direito, não? Segundo Ihering, o fim do direito é a paz, mas não há conquista da paz sem que haja luta. Em um dos trechos mais citados da sua obra, ele afirma:
O fim do Direito é a paz; o meio de atingi-lo, a luta. O Direito não é uma simples ideia, é força viva. Por isso a justiça sustenta em uma das mãos a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança.
Ihering, quando fala da espada da justiça o faz em clara referência à deusa Dike, que na mitologia romana é representada empunhando uma espada na mão direita, enquanto na esquerda segura uma balança de prata. A espada, quando associada à ideia de Justiça, simboliza não apenas a decisão, mas também a separação entre o bem e mal, sendo misericordiosa com o primeiro e golpeando e punindo o segundo. É a força máxima para punir o culpado e perdoar o inocente. (BECKER, 1999, p. 101).
De forma semelhante, na mitologia Iorubá, Xangô é representado segurando um machado de dois gumes, com o qual administra a justiça. O corte duplo do machado, que também venda os olhos de Xangô em algumas representações, significa tanto a força da justiça, quanto a sua imparcialidade, pois o equilíbrio só se reestabelece com a isonomia.
Tudo isso para dizer que Tereza de Benguela, líder quilombola do século XVIII, é uma figura histórica que muito bem representa a luta pelo direito. A Rainha Tereza, como era conhecida, administrou o Quilombo de Quariterê, próximo ao rio Galera, não muito distante da fronteira de Mato Grosso com a Bolívia. Segundo o historiador Clóvis Moura, na sua obra clássica Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Tereza de Benguela, também conhecida como Tereza de Quariterê, foi por duas décadas a chefe incontestável desse ajuntamento de negros fugidos. Segundo se supõe, era procedente de Benguela, como também pode ter nascido no Brasil”.
Sob o seu comando, o referido quilombo teve uma complexa e diferenciada estrutura político-social, possuindo um parlamento e um conselho da rainha, prevendo um encontro semanal dos deputados em um ambiente designado exclusivamente para as sessões, o Negral Senado, no qual se discutiam tanto questões relacionadas ao cotidiano, definindo as regras sociais para a convivência, quanto as estratégias de luta, resistência e sobrevivência do grupo.
O referido quilombo tinha agricultura desenvolvia, produzindo algodão e alimentos. Também contava com duas tendas de ferreiro, que, utilizando-se das correntes e algemas trazidas para o quilombo, fundiam e forjavam os instrumentos necessários para o preparo da terra. Além disso, confeccionavam seus próprios tecidos, com o algodão plantado, dominando uma tecnologia avançada para a época, o tear.
Suas armas eram adquiridas pela troca, pela fundição ou mesmo pela compra, já que havia a comercialização dos excedentes não apenas da agricultura, mas dos belos tecidos produzidos em Quaritetê. Essa desenvolvida dinâmica social e estratégia de sobrevivência foi estruturada sob o comando político e militar de uma mulher, que lutou até a morte pelo direito de ser livre.
Em reconhecimento à sua luta, o dia 25 de julho foi instituído no Brasil como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, pela Lei n° 12.987/14. Até a sanção da lei em 2014, o Brasil era o único país da América Latina que não comemorava oficialmente o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, proposto em 1992, durante o I Encontro de Mulheres Afro-latinoamericana e Caribenha, em Santo Domingo, na República Dominicana.
A escolha do nome de Tereza de Benguela, segundo Serys Slhessarenko, ex-senadora e autora do projeto de lei 5746-B/2009, que deu origem ao texto da lei, teve por objetivo valorizar sua existência, reforçar sua importância para a sociedade, tornar visível as demandas e sua situação da mulher negra no Brasil. Em suas palavras, “este é o significado da data, celebrar a existência e dar voz e forma aos anseios da mulher negra”.
A justificativa do projeto reafirma a importância simbólica de fixar datas que tenha por finalidade básica “resgatar o papel de luta em prol da conquista da cidadania de determinados segmentos da sociedade que, no decorrer de nosso processo histórico, foram marginalizados e excluídos”, reforçando que a necessidade de “garantir a reflexão e o debate pela inserção de temáticas voltadas para o enfrentamento do racismo, sexismo, discriminação, preconceito e demais desigualdades raciais e sociais ainda presentes na sociedade brasileira”.
E para quem pergunta se isso era mesmo necessário, recomendo a leitura da justificativa do projeto esclarece que a discriminação racial e de gênero não é mera figura de retórica, mas se evidencia através de números e estatísticas que mostram a perversa realidade social brasileira. Dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), revelam que 26% dos domicílios são chefiados por mulheres negras, mas são elas que tem as piores condições de renda. Apesar de maior nível de escolaridade do que os homens negros (7,4 anos de estudo contra 6,3, em média), as negras tem o maior índice de desemprego da sociedade (cerca de 12,2%), atrás das mulheres brancas (9,2%), dos homens negros (6,4%) e dos homens brancos (5,3%). “Esses dados refutam o mito da democracia racial, ao mostrar, de forma contundente, a dura realidade da mulher negra em nosso país”.
Dito isso, espero ter contribuído de alguma forma para o debate e finalizado parabenizando todas as mulheres negras pela luta, pela garra, pela força e pela resistência, pois toda mulher negra é em si um quilombo.
Até breve,
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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