Queridas e queridos colegas,
Como vimos no artigo passado, o constitucionalismo moderno nasce vinculado ao Estado, fundado na noção de soberania territorial, buscando garantir os direitos individuais e limitar o poder estatal. Contudo, a intensificação da sociedade mundial torna esse modelo insuficiente, conforme continuaremos a abordar no texto de hoje.
Como adiantamos em outros textos deste blog, apenas após o constitucionalismo revolucionário é que se inicia seu processo de diferenciação funcional entre o direito e a política. Ou seja, o constitucionalismo se relaciona intimamente com as transformações estruturais que estão na base do surgimento da sociedade moderna, fazendo parte de um amplo processo de diferenciação sistêmico-funcional, que passa a caracterizar a sociedade como “multicêntrica” ou “policontextual”, para utilizar a terminologia adotada por Marcelo Neves no seu Transconstitucionalismo.
Dizer que a sociedade se tornou multicêntrica significa, em primeiro lugar, que “a diferença entre sistema e ambiente desenvolve-se em diversos âmbitos de comunicação, de tal maneira que se afirmam distintas pretensões contrapostas de autonomia sistêmica” (NEVES, 2009, p. 23). Em segundo lugar, quer dizer que “toda diferença se torna ‘centro do mundo’, a policontexturalidade implica uma pluralidade de autodescrições da sociedade, levando à formação de diversas racionalidades parciais conflitantes” (NEVES, 2009, p. 23-24).
Em uma linguagem mais simples, é como se cada sistema visse o mundo a partir do seu ponto de observação. Assim, para o sistema jurídico, o direito poderia solucionar todos os problemas sociais, como a falta de recursos para execução de determinadas políticas públicas, ou mesmo o não reconhecimento de grupos discriminados, como é o caso da população negra, por exemplo. De maneira semelhante, para o sistema econômico, tudo em sociedade seria definido pelo ter ou não ter, ou seja, todos os problemas sociais decorreriam da escassez, e só a economia poderia solucioná-los. Contudo, nenhum sistema é capaz de perceber a sociedade como um todo, pois vários são os pontos de vista, e nenhum deles pode ser entendido como O verdadeiro.
Em síntese, dizer que a sociedade é multicêntrica é dizer que não há um centro único que possa ter uma posição privilegiada para observar e descrever a sociedade, ou seja, não há um sistema social que prevalece, a partir do qual todos os demais poderiam ser compreendidos. O que há é uma pluralidade de códigos orientadores da comunicação em variados campos sociais, como, por exemplo, o “ter/não ter” (economia), o “verdadeiro/falso” (ciência), o “belo/feio” (artes), o “aprovação/reprovação” (educação), o “amor/desamor” (amor) e a própria distinção “lícito/ilícito”, do direito (NEVES, 2009, p. 24).
Esses sistemas, muito embora se pretendam autônomos, não podem ser solipsistas, pois a diferenciação entre sistemas não significa o isolamento destes, mas sim uma intensa capacidade cognitiva perante o que está ao seu redor (entorno). No contexto da sociedade multicêntrica, cada sistema social possui como entorno, como meio ambiente, os demais sistemas, não podendo desconsiderá-los diante de suas pretensões de universalidade.
Segundo essa noção de sociedade adotada por Neves, com base na teoria dos sistemas de Luhmann, não haveria qualquer possibilidade de um ponto de observação único e privilegiado da sociedade. Tanto que o próprio Luhmann reconhece que a teoria dos sistemas é apenas uma das possíveis descrições parciais da sociedade.
O fato de existirem diversas descrições possíveis e igualmente válidas da sociedade evidencia o contexto complexo no qual o direito atual se insere, sobretudo quando reconhecemos que além de multicêntrica, a sociedade contemporânea é mundial, o que demanda do direito a necessidade de se adequar, de maneira que possa cumprir o seu papel de estabilizar as expectativas normativas para além dos territórios nacionais. Mas isso é tema para o nosso próximo encontro.
Até breve,
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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