Distinguishing sobre o cabimento de astreintes no processo penal!

Tudo sobre a lógica da “regra e exceção” no Tribunal Superior.

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25 de fevereiro4 min. de leitura

Fala pessoal, tudo certo?

O Superior Tribunal de Justiça, através da 3ª Seção, exarou entendimento no julgamento do REsp 1.568.445/PR indicando a possibilidade de fixação de astreintes em desfavor de terceiros no âmbito do processo penal. Como sabemos, na legislação processual penal não há previsão da chamada multa cominatória, mas – para sua incidência no âmbito criminal – a Corte Superior tem invocado o sempre polêmico “poder geral de cautela” – de aplicabilidade limitada e controversa no âmbito criminal, como arrimo argumentativo para tal conclusão.

O que tem prevalecido no STJ é a compreensão de que ao juiz somente foi obstado o emprego de cautelares inominadas que atinjam a liberdade de ir e vir do indivíduo. Ademais, a teoria dos poderes implícitos também é um fundamento autônomo que, por si só, justificaria a aplicação de astreintes pelos magistrados. De acordo com o referido Tribunal, é possível aplicar astreintes em desfavor de terceiros que NÃO participaram da relação processual. Segundo os Ministros da 3ª Seção, no processo penal, a irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro. Haveria, sim, invalidade se ela incidisse sobre o réu, pois ter-se-ia clara violação ao princípio do nemo tenetur se detegere. Rememorou-se que o Marco Civil da Internet traz expressamente a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de suas normas quanto à guarda e disponibilização de registros conteúdos.

Bacana, Pedro! Posso memorizar isso e seguir feliz?

NÃO! É que tivemos novidades recentes, da lavra da mesma 3ª Seção, que fora divulgada no Informativo 684 do STJ. Ao julgar o RMS 60.531/RO[1], em 09 de dezembro de 2020,

[1] 1. A possibilidade de aplicação, em abstrato, da multa cominatória foi reconhecida, por maioria, nesta Terceira Seção (REsp 1.568.445/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Rel. p/ Acórdão Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/6/2020, DJe 20/8/2020). 2. No caso concreto, porém, há de se fazer uma distinção ou um distinguishing entre o precedente citado e a situação ora em análise. Diversamente do precedente colacionado, a questão posta nestes autos objeto de controvérsia é a alegação, pela empresa que descumpriu a ordem judicial, da impossibilidade técnica de obedecer à determinação do Juízo, haja vista o emprego da criptografia de ponta a ponta (…)RMS 60.531/RO, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2020).

 

O colegiado estabeleceu uma importantíssima distinção (distinguishing) relacionado a esse tema.

Vamos compreender com um exemplo. Imagine que, em um processo criminal, uma das partes indique ao juízo que precisa (com)provar uma tese a partir de documento ou informação que está em posse do Google? Nesse caso, o juiz pode determinar que essa informação ou documento seja entregue pela empresa. Mas e se ela se negar? Poderá haver a incidência de multa (astreintes). Essa é a regra já firmada no STJ.

No entanto (ATENÇÃO), se a razão da negativa de fornecimento por parte do Google for a impossibilidade técnica, considerando que os dados estão criptografados. A fixação da multa seria razoável?

Como bem destacado pelo STJ, a criptografia de ponta a ponta é a proteção dos dados nas duas extremidades do processo, tanto no polo do remetente quanto no outro polo do destinatário. Nela, há “dois tipos de chaves são usados para cada ponta da comunicação, uma chave pública e uma chave privada. As chaves públicas estão disponíveis para as ambas as partes e para qualquer outra pessoa, na verdade, porque todos compartilham suas chaves públicas antes da comunicação. Cada pessoa possui um par de chaves, que são complementares. […] O conteúdo só poderá ser descriptografado usando essa chave pública (…) junto à chave privada (…). Essa chave privada é o único elemento que torna impossível para qualquer outro agente descriptografar a mensagem, já que ela não precisa ser compartilhada“.

No julgamento da ADPF 403 e da ADI 5527, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, respectivamente, entenderam que se trata de forma de proteger a liberdade de comunicação e expressão, concluindo que o ordenamento jurídico brasileiro não autoriza, em detrimento da proteção gerada pela criptografia de ponta a ponta, em benefício da liberdade de expressão e do direito à intimidade, sejam os desenvolvedores da tecnologia multados por descumprirem ordem judicial incompatível com encriptação.

Assim, em ponderação de valores os benefícios advindos da criptografia de ponta a ponta se sobrepõem às eventuais perdas pela impossibilidade de se coletar os dados das conversas dos usuários da tecnologia.

Em um trecho do voto da Ministra Rosa Weber no precedente acima citado, ela destaca o seguinte:

se aos cidadãos não for assegurada uma esfera de intimidade privada, livre de ingerência externa, um lugar onde o pensamento independente e novo possa ser gestado com segurança, de que servirá a liberdade de expressão? O direito à privacidade tem como objeto, na quase poética expressão de Warren e Brandeis, ‘a privacidade da vida privada’. O escopo da proteção são os assuntos pessoais, em relação aos quais não se vislumbra interesse público legítimo na sua revelação, e que o indivíduo prefere manter privados. ‘É a invasão injustificada da privacidade individual que deve ser repreendida e, tanto quanto possível, prevenida’. Vale observar, ainda, que os maiores desafios contemporâneos à proteção da privacidade nada têm a ver com a imposição de restrições à liberdade de manifestação, enquanto relacionados, isto sim, aos imperativos da segurança nacional e da eficiência do Estado, à proliferação de sistemas de vigilância e à emergência das mídias sociais, juntamente com a manipulação de dados pessoais em redes computacionais por inúmeros, e frequentemente desconhecidos, agentes públicos e privados. Nesse contexto, pertinente, ainda, a contribuição de Alan Westing à doutrina jurídica da privacidade no mundo contemporâneo, ao caracterizar a estrutura desse direito como controle sobre os usos da informação pessoal. Nesse sentido, a privacidade, afirma, ‘é a pretensão de indivíduos, grupos ou instituições de determinarem para si quando, como e em que extensão a informação sobre eles será comunicada a outros’. Tal concepção do direito à privacidade está alinhada com o reconhecimento do seu papel social na própria preservação da personalidade e no desenvolvimento da autonomia individual.” (Voto da em. Min. Relatora Rosa Weber na ADI 5527).

Temos, pois, que o ordenamento jurídico brasileiro não autoriza, em detrimento da proteção gerada pela criptografia de ponta a ponta, em benefício da liberdade de expressão e do direito à intimidade, sejam os desenvolvedores da tecnologia multados por descumprirem ordem judicial incompatível com encriptação.

Ou seja, é legítima a fixação de astreintes em desfavor de terceiros para fornecimento de dados relevantes ao processo penal. Entretanto, tal possibilidade deve ser afastada quando a negativa da entrega se pautar em impossibilidade técnica, como, por exemplo restrições de criptografia.

Espero que tenham entendido! Tema com cara de prova, hein?

 

Vamos em frente!

 

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

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