Olá pessoal, tudo certo?
Vamos falar sobre um tema importante, pertinente e que já apareceu em provas de múltiplas maneiras, conferindo ênfase a uma nomenclatura específica: “Double jeopardy clause”.
Nunca me esqueço quando, em um grupo de pesquisa na faculdade de direito (UFPE), levantaram a questão trabalhada no filme (de duvidosa qualidade) “Risco Duplo” à luz do direito constitucional e penal brasileiro. No enredo da obra, uma mulher é condenada pelo suposto assassinato do marido, motivada pelo recebimento de alguns milhões de dólares de seguro.
Todavia, durante o período de encarceramento, ela descobre que a morte do marido fora uma farsa, forjado pelo próprio “falecido” para usufruir do prêmio do seguro enquanto ela cumpria pena!
Saída da prisão, a personagem central do filme passa a buscar incessantemente o ex-marido para matá-lo! Por que isso?
É que, diante da ideia do “DOUBLE JEOPARDY CLAUSE”, previsto também na Constituição dos EUA, ninguém pode ser processado e condenado pelo mesmo fato duas vezes (fim do spoiler)!
Esse raciocínio está correto, Pedro?
Não. Antes de entendermos a razão da negativa, algumas considerações precisam ser feitas. A ideia consubstanciada no DOUBLE JEOPARDY é aquela que conhecemos por princípio do non bis in idem, ou seja, o réu não pode ser processado ou condenado novamente pelo mesmo fato delitivo!
São diferentes nomenclaturas para o mesmo fenômeno! Essa constatação, inclusive, fora externada em emblemático voto do ex-ministro do STF Francisco Rezek, no julgamento do pedido de Extradição 688, quando asseverou que “ninguém pode expor-se, em tema de liberdade individual, à situação de duplo risco. Essa é a razão pela qual a existência de situação configuradora de ‘double jeopardy’ atua como insuperável causa obstativa do atendimento do pedido extradicional. Trata-se de garantia que tem por objetivo conferir efetividade ao postulado que veda o ‘bis in idem “[1].
Voltando ao filme, se a personagem principal já havia sido condenada por um fato, constatando na prática que ele não ocorreu, ela não estaria legitimada a efetuá-lo? Nova condenação não encontraria óbice no princípio do non bis idem[2]?
Em primeiro lugar, essencialmente não estaríamos falando de exatamente sobre “mesmos fatos”, pois motivação, circunstância, ambiente e tudo mais seriam diferentes. “Apenas” a conduta e consequência, além de agentes ativos e passivos, seriam iguais.
Não estamos falando, pois, de mesmos fatos, mas apenas de mesma tipificação, autor e vítima!
Ademais, o desenho constitucional brasileiro prima pela defesa da dignidade da pessoa humana e autorizar a prática de qualquer conduta criminosa, ainda que posterior a uma injusta condenação, seria autorizar uma violação normativa bastante séria, o que não parece compatível com o “espírito da Constituição de 1988”.
O que se verifica no caso narrado, em verdade, é a presença de manifesto, triste e inadmissível ERRO JUDICIAL, lastimavelmente bastante frequente no dia a dia judiciário. Ora, é verdade também que a condenação de um inocente em face de erro judicial é sim violação ao dever fundamental do cidadão condenado, sobretudo quando tem sua liberdade de locomoção tolhida temporalmente, mas a solução ideal não parece ser a concessão de uma “carta branca para o cometimento do delito pelo qual injustamente fora condenado o cidadão”.
O caminho a ser adotado em casos tais deve ser representado pela (i) Revisão Criminal na esfera penal, a fim de rescindir a sentença condenatória e todos os seus efeitos penais e extrapenais, bem como (ii) a indenização por perdas e danos (cumulativamente ou não com a revisão criminal).
De toda forma, a double jeopardy clause não autoriza simplesmente, em qualquer hipótese, impunidade para o cometimento de crimes de qualquer espécie!
Esse é um excelente tema para ser cobrado em concursos! Espero que tenha ficado claro!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] BRAGA, Sérgio Jacob. Direito e ficção:. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1215, 29 out. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9099>.
[2] A fórmula latina “non bis in idem“, cuja tradução literal pode ser “não duas vezes sobre a mesma coisa“, exprime o princípio jurídico segundo o qual uma pessoa que já tenha sido julgada por um facto delituoso não pode ser perseguida de novo pelo mesmo facto.
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