Em 2015 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da tese que discute a constitucionalidade de os Estados e o Distrito Federal, com expressa autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), editarem lei para perdoar dívidas de ICMS decorrentes de incentivos fiscais concedidos, no passado, sem a aludida autorização dos demais entes federativos. O reconhecimento da relevância do tema ocorreu nos autos do recurso extraordinário (RE) 851.421/DF que será analisado pelo Plenário do Tribunal sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.
O caso concreto trata da constitucionalidade da Lei Distrital 4.732/11 que suspendeu a exigibilidade e concedeu a remissão de créditos de ICMS concedidos no âmbito do Programa Pró-DF e dos Termos de Acordo de Regime Especial (TAREs) depois da autorização unânime do Confaz por meio dos Convênios 84/2011 e 86/2011. No passado, os aludidos benefícios haviam sido declarados inconstitucionais, pois foram concedidos pelo Distrito Federal unilateralmente (sem autorização do Confaz), descumprindo-se os artigos 155, § 2º, XII, ‘g’ da CF/88, 1º e 2º, §2º, da LC 24/75.
Em ação cautelar que pretendeu atribuir efeito suspensivo ao referido recurso extraordinário, o Relator do processo de certa forma antecipou sua posição sobre o tema, ao sustentar a “flagrante inconstitucionalidade da Lei distrital 4.732, de 2011 (…) vindo a tornar sem efetividade o comando constitucional do artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, como por afrontar a autoridade interpretativa e decisória do Supremo” (AC 3.802/DF, DJe 24/04/2015, Decisão monocrática).
Nesse mesmo sentido foi o parecer recentemente exarado pela Procuradoria Geral da República. O Procurador Geral da República corretamente verificou a impossibilidade de conhecimento do recurso extraordinário em função de vícios processuais relacionados (i) à falta de impugnação a fundamento autônomo do acórdão recorrido (do TJ-DF) de que a remissão concedida pela Lei 4.732/11 não se confunde com os benefícios originalmente declarados inconstitucionais, os quais foram veiculados por outras leis (Súmula 283/STF) e (ii) à ofensa meramente reflexa à Constituição, considerando que a temática depende da apreciação da LC 24/75. No mérito, entretanto, S. Exa. concordou com a posição externada pelo E. Relator do processo, o que merece crítica pelas razões abaixo[1].
O entendimento de que a Lei Distrital 4732/11 é inconstitucional ancora-se, em síntese, nos seguintes fundamentos: (i) a convalidação de incentivos fiscais concedidos unilateralmente já teria sido julgada inconstitucional pelo Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.906/RJ; (ii) o vício originário, consistente na não aprovação dos benefícios originais pelo Confaz, não seria superado com a edição posterior de Convênio do Confaz, “pois esses atos normativos interestaduais não são capazes de tornar válidas normas nascidas inconstitucionais”[2], conforme alegadamente definido pelo STF nos RE’s 390.840/MG, 357.950/RS, 358.273/RS, 346.084/PR; e (iii) a remissão de créditos de ICMS implicaria modular irregularmente os efeitos das decisões do Judiciário com ofensa ao artigo 8º, I e II da LC 24/75, pois “não há como distinguir a suspensão de exigibilidade e posterior remissão de créditos de ICMS do benefício fiscal declarado inconstitucional”[3].
Ocorre que as decisões proferidas pelo STF na ADI 2.906/RJ e nos REs 390.840/MG, 357.950/RS, 358.273/RS, 346.084/PR, utilizadas como fundamento pelo relator, não são aplicáveis à hipótese. Isso porque, na referida ação direta, a remissão de créditos tributários fora declarada inconstitucional por não ter sido esse perdão precedido de Convênio do Confaz. No processo de repercussão geral, entretanto, a remissão foi concedida pela legislação específica do Distrito Federal após a edição de Convênio unânime do Confaz a autorizá-la. As situações são, dessa forma, opostas e inconfundíveis.
Também não parece possível aplicar ao caso de repercussão geral o decidido pelo STF nos recursos extraordinários suprarreferidos, porque não está em discussão a possibilidade de repristinar as legislações originárias — já declaradas inconstitucionais — que concederam os incentivos fiscais unilaterais no passado. Discute-se outra lei, com objetivo diverso e que não pretende reeditar aqueles mesmos benefícios, mas apenas conceder remissão a determinados créditos tributários em homenagem à segurança jurídica do contribuinte que confiou na legislação do Estado (no caso, do Distrito Federal) e, com base nela, pautou sua estratégia de negócios, instalando ou expandindo empreendimentos no território do ente tributante.
Em acréscimo, aqueles precedentes julgaram caso de inconstitucionalidade material (alargamento da base de cálculo prevista constitucionalmente para a Confins), ao passo que as leis que editaram os incentivos fiscais, no passado, foram declaradas inconstitucionais em função de vício formal, isto é, por não ter sido obedecido o procedimento previsto para a sua formação, consistente na edição de Convênio do Confaz a autorizá-las, já que não há dúvida acerca da competência impositiva dos Estados e do Distrito Federal para legislarem sobre o ICMS.
Nesse sentido, e considerando que a inconstitucionalidade formal é sanável, legislação superveniente que tenha obedecido ao procedimento previsto constitucionalmente não poderia ser taxada de inconstitucional em função de vícios de forma presentes nas legislações anteriores.
De fato, se outros veículos introdutores de normas obedeceram ao procedimento constitucionalmente previsto, não se poderia imputá-los a inconstitucionalidade verificada nas normas anteriores que não obedeceram o disposto no artigo 155, § 2º, XII, ‘g’ da CF/88.
Não se trata de modular a eficácia das leis anteriormente declaradas inconstitucionais. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade daqueles diplomas normativos ocorreram, tanto que as empresas e os responsáveis solidários foram, em muitos casos, condenados a pagar a diferença de ICMS em função da fruição dos benefícios inconstitucionais.
As leis mais recentes, com amparo no princípio da separação dos poderes, da segurança jurídica e no pacto federativo (artigos 1º, 2º, 5º, caput, da CF/88), possibilitaram apenas a mitigação de alguns dos efeitos concretos e deletérios decorrentes dos atos legislativos anteriores, mediante a edição de remissão condicionada de créditos tributários.
A Lei Distrital 4.732/11 não reiterou os mesmos incentivos fiscais concedidos pelas legislações anteriores que foram declaradas inconstitucionais (financiamento de até 70% do ICMS, no caso do Pró-DF[4] ou abatimento de percentagem fixa concedida a título de crédito do imposto, no caso dos TAREs[5]). A nova lei instituiu incentivo fiscal diverso: a remissão de créditos tributários (artigo 156, IV do CTN). Esse incentivo só foi concedido após o DF percorrer todo o procedimento legal e constitucionalmente previsto, isto é, depois de obter autorização de todos os Estados por intermédio dos Convênios 84 e 86/2011.
Os Convênios do Confaz e a Lei Distrital dispuseram sobre matéria que estava no âmbito de suas competências, eis que a outorga de remissão mediante condição é expressamente admitida pelo artigo 10 da Lei Complementar 24/1975, norma especial que rege a concessão de incentivos e benefícios de ICMS, nos termos dos artigos 150, § 6° combinado com 155, § 2°, XII, “g” da CF/88, sendo, ainda, espécie autônoma de benefício fiscal nos termos do artigo 156, IV, do CTN.
Ademais, não há que se falar em ofensa ao artigo 8º, I e II da LC 24/75. Referida norma apenas dispõe que será ineficaz a remissão de créditos de ICMS decorrentes de atos que não observarem o procedimento previsto na lei para a concessão de incentivos fiscais. A intenção do dispositivo é evitar que o Estado conceda unilateralmente um incentivo e depois, também unilateralmente, perdoe os créditos tributários decorrentes de eventual declaração de ilegalidade/ inconstitucionalidade do ato. Em outras palavras, o dispositivo impede que um único Estado burle o sistema de edição de Convênios. Na situação em análise a remissão outorgada pela Lei 4.732/11 observou o procedimento da LC 24/75 e da Constituição, pois foi acordada com todos os demais Estados mediante a edição de Convênios. Se a remissão fosse concedida unilateralmente pelo Distrito Federal haveria afronta ao artigo 8º da LC 24/75. Isso, no entanto, não se verifica na hipótese.
Portanto, ao contrário do que afirmou o Parecer da PGR, há sim como distinguir a remissão de créditos de ICMS outorgados por lei que cumpriu o disposto na Constituição Federal dos benefícios fiscais unilateralmente concedidos no passado.
Impedir a remissão de créditos tributários decorrentes da denominada “guerra fiscal” significaria retirar dos Estados um dos poucos instrumentos que possibilitam a negociação dos entes subnacionais em torno do referido e grave problema federativo.
O próprio termo “Guerra Fiscal” só tem sentido quando há um conflito entre os Estados, o que resta afastado na hipótese em que todos os entes subnacionais concordam com a concessão de remissão de créditos tributários sob a condição de que não sejam instituídos novos benefícios de forma unilateral.
Além de atentar contra a separação dos poderes e o pacto federativo, a invalidação da remissão em tela ofenderia os primados da segurança jurídica e boa-fé dos contribuintes que acreditaram na legislação dos Estados e, a partir dos incentivos concedidos, instalaram empreendimentos que geraram empregos, receita e renda.
Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas[6], a criação de doze plantas industriais incentivadas em regiões diversas do país (inclusive no Distrito Federal) gerou um valor adicionado de R$ 10,3 bilhões ao PIB Nacional, angariando mais de 220 mil empregos e R$ 2 bilhões de arrecadação tributária ao longo do período de implantação dos projetos. Durante a operação das plantas, houve um efeito multiplicador de 4,42 sobre a economia, significando um impacto total sobre o PIB Nacional da ordem de R$ 35,8 bilhões. Além do incremento do PIB Nacional, as economias estaduais foram direta e indiretamente afetadas pelos projetos incentivados, “devido às interconexões regionais da economia[7]”.
Especificamente em relação aos denominados “TAREs”, um dos programas de incentivos concedidos pelo Distrito Federal, “a Diretoria de Arrecadação do DF explicitou que, entre 1999 a 2002, houve o incremento na receita média mensal da ordem de R$ 2 milhões, considerando o ano de 2000 contra o de 1999; de R$ 3,5 milhões, no ano de 2001, ante o de 2000; e de R$ 3,2 milhões, em 2002, em comparação a 2001. Em termos nominais, a receita do Setor Atacadista cresceu cerca de 74% entre 1999 e 2001. Houve, ainda, crescimento da participação percentual do Setor no total da Arrecadação do ICMS nos percentuais de 8,7% em 1999; 8,9% em 2000; 10,6% em 2001 e 12,3% até junho de 2002. Por fim, o volume da receita do Setor Atacadista passou de um patamar de R$ 97 milhões para R$ 167 milhões em 2001, chegando a R$ 103 milhões no acumulado de janeiro a junho de 2002”[8].
O conhecimento desses dados da realidade tem levado o STF a modular os efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade em questões relacionadas a incentivos fiscais em atendimento ao primado da segurança jurídica e da boa-fé dos contribuintes que acreditaram nos programas instituídos pelos entes subnacionais.
Com efeito, em 2014, na ADI 429/CE, o STF declarou a inconstitucionalidade da isenção de ICMS sobre a aquisição de veículos e equipamentos destinados a deficientes físicos, mas concedeu o prazo de 12 meses de modulação temporal para permitir a realização de Convênio que autorizasse tal incentivo no âmbito do Confaz.[9] Além disso, em 2015, na ADI 4.481/PR, modulou os efeitos de sua decisão para que valesse apenas a partir da data de julgamento. Considerou, no referido julgamento, que o incentivo fiscal, apesar de inconstitucional, fora concedido há quase oito anos, produzindo, assim, inúmeros efeitos jurídicos que não poderiam ser simplesmente ignorados, sob pena de acarretar enorme insegurança jurídica aos contribuintes[10]. Em 2016, na ADPF 190, o STF julgou inconstitucional lei municipal que havia excluído determinadas parcelas da base de cálculo do ISSQN, mas modulou a eficácia de sua decisão para preservar os efeitos concretos da legislação do município de Poá até a data do aludido julgamento.
Os precedentes mais recentes do STF demonstram uma tendência do Poder Judiciário de proteção à confiança dos contribuintes em detrimento da regra da nulidade ab initio.
Trata-se exatamente do mesmo fundamento que possibilitou a aprovação dos Convênios 84/11 e 86/11 no Confaz (Poder Executivo) e da Lei 4.732/11 na Câmara Legislativa do DF (Poder Legislativo). Essa solução negociada pelos Estados federados, longe de ser refutada, deveria ser valorizada pelo tribunal responsável pela preservação da Federação brasileira[11], o que implicaria a improcedência do recurso apresentado pelo MP-DF. Com isso, o STF prestigiaria o “diálogo institucional”[12] entre os poderes da república que é salutar para o desenvolvimento da democracia, especialmente em tema de inegável complexidade relacionado ao federalismo fiscal brasileiro.
- De acordo com o estudo, “em termos percentuais, 1,2% do produto interno bruto do país em 2010 foi viabilizado, direta ou indiretamente, pelos 12 projetos analisados neste estudo. Vale apontar o substancial efeito multiplicador sobre o emprego, de 85,6, em função da substancial ativação de setores mais intensivos em mão de obra. É notável também a contribuição para a arrecadação tributária, uma vez que 2,0% dos impostos sobre a produção arrecadados no país são gerados direta ou indiretamente pelos projetos em questão” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Impactos socioeconômicos da suspensão de incentivos fiscais. Produto 2 A: Relatório Final (Impactos Socioeconômicos l dos Incentivos Fiscais Estaduais). Federação das Indústrias do Estado de Goiás – FIEG. Rio de Janeiro, 2011, p. 23).
Fonte: http://www.conjur.com.br
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