É possível cometer o crime do art. 195 do CPM (“Abandono de posto”) sem deixar o espaço geográfico delimitado como posto ou lugar de serviço?

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28 de Junho de 2020

Note bem a especificidade da pergunta.

Não foi perguntado ser é possível cometer crime de abandono de posto sem sair do local do posto ou crime de abandonar lugar de serviço sem sair do lugar de serviço. A questão é se se mostra possível cometer crime do art. 195 do CPM, cujo nomen juiris é abandono de posto, sem sair do espaço delimitado como posto ou lugar de serviço, e, colocada sob esses parâmetros, a resposta à pergunta é em sentido afirmativo.

Vamos analisar o crime, a iniciar pela leitura do tipo penal:

Art. 195. Abandonar, sem ordem superior, o posto ou lugar de serviço que lhe tenha sido designado, ou o serviço que lhe cumpria, antes de terminá-lo:

Pena — detenção, de três meses a um ano.

Como principais características do delito, pode-se, primeiro, apontar que a tutela (objetividade jurídica) recai sobre o serviço militar e o dever militar.

Como sujeito ativo, tem-se apenas o militar, federal ou dos Estados, em uma das condições enumeradas na descrição típica, ou seja, em guarnecimento de posto, com a responsabilidade por um lugar de serviço ou responsável pela execução de um serviço. Esta constatação – passível apenas de ser cometido por militar –, adotando-se a teoria clássica, dá-lhe a classificação de crime propriamente militar. O sujeito passivo é o Estado.

Ainda se pode caracterizar o delito como delito formal, com amparo da doutrina (NUCCI, 2013, p. 259) e da jurisprudência:

APELAÇÃO. ABANDONO DE POSTO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ATIPICIDADE DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. CURTO LAPSO TEMPORAL DE AFASTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. CRIME FORMAL E DE PERIGO ABSTRATO. MOTIVOS INJUSTIFICADOS PARA O COMETIMENTO DO DELITO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA. APELO DEFENSIVO DESPROVIDO. I – O delito de abandono de posto é crime propriamente militar, formal e de perigo abstrato. Para a consumação basta a ausência do local designado para o cumprimento do serviço, mesmo que por curto lapso temporal. […]. (STM, Apelação n. 7000896-04.2018.7.00.0000, Rel. Min. Péricles Aurélio Lima de Queirós, j.26/03/2019). (g.n.).

Também entende-se ser de perigo abstrato, consumando-se no momento do  afastamento do posto ou do lugar de serviço, ou, ainda, no momento em que interrompe a atividade que desempenhava em serviço, sem a necessidade de que haja uma lesão demonstrada aos bens jurídicos tutelados, presumindo-se tal lesão (ASSIS, 2017, p. 621) com igual respaldo jurisprudencial:

APELAÇÃO. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. ABANDONO DE POSTO. ART. 195 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CONDENAÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. PRELIMINAR DE EXTINÇÃO DO FEITO PELA PERDA DO OBJETO EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROSSEGUIBILIDADE. REJEIÇÃO. DECISÃO POR UNANIMIDADE. MÉRITO. CRIME DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO. CONDUTA LESIVA. RECONHECIMENTO. ESTADO DE NECESSIDADE EXCULPANTE. ART. 39 DO CPM. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ALEGAÇÕES DE ORDEM PARTICULAR. NÃO COMPROVAÇÃO. AUTORIA, MATERIALIDADE E CULPABILIDADE COMPROVADAS. RECURSO NÃO PROVIDO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. DECISÃO POR UNANIMIDADE. O licenciamento do Acusado do serviço ativo não constitui ausência superveniente do pressuposto de admissibilidade do Recurso, não ensejando a perda do seu objeto, tampouco afasta a legitimidade da Parte Ré de figurar no polo passivo da presente ação penal militar pela perda de sua condição essencial, haja vista que, ao tempo da consumação do delito, o Acusado ostentava a condição de militar em serviço ativo e em local sujeito à Administração Militar. Preliminar rejeitada. Decisão por unanimidade. O delito descrito no art. 195 do Código Penal Militar é de perigo abstrato, portanto, o sujeito é punido pela simples desobediência à lei, sem a necessidade de efetiva comprovação da existência de lesão ou de ameaça de lesão ao bem juridicamente tutelado pela norma penal. O abandono de posto encerra elevado potencial de perigo, visto que a falha de um posto de serviço, e aí pouco importa a sua natureza, da mais simples à mais sensível atribuição, tem potencial para romper a incolumidade do perímetro vigiado, comprometendo a segurança da Unidade e do próprio efetivo aquartelado. Constitui ônus da Defesa comprovar a excludente de culpabilidade referente ao estado de necessidade exculpante, previsto no art. 39 do Código Penal Militar, utilizando-se de provas idôneas e contundentes, aptas a caracterizar a inexigibilidade de conduta diversa. Apelo a que se nega provimento. Decisão por unanimidade (STM, Apelação n. 7000143-13.2019.7.00.0000, Rel. Min. Carlos Vuyk de Aquino, j.05/06/2019) (g.n.).

Mas o que nos leva a responder a indagação inaugural é a análise dos elementos objetivos.

Costumo dizer – em tom de brincadeira – que o crime de abandono de posto (nomen juris) é o crime “3 em 1”, pois há três delitos abarcados pelo mesmo rótulo.

“Abandonar”, núcleo do tipo, significa deixar, desin­cumbir-se do posto no qual presta serviço, lugar em que o presta ou o serviço prestado em si, desde que não haja autorização de autoridade competente nesse sentido.

“Posto” – e aqui há o primeiro delito “encapsulado” no rótulo do abandono de posto – é o local certo e determinado, fixo ou não (se não for fixo deve ter percurso demarcado e limitado), onde se cumpre determinada missão, seja de vigilância, controle, segurança (cercanias da Unidade militar), seja de guarda (de local de crime ou de custódia de presos), ou qualquer outra afeta à Força Militar. Está em posto, por exemplo, aquele militar na função de sentinela no serviço de dia do quartel, durante o seu período de vigilância (“quarto de hora”), que pode simplesmente se desincumbir de seu dever militar de prestar a vigilância e deixar o espaço geográfico que lhe é definido, potencialmente lesando a estratégia de segurança da Unidade (serviço militar).

Como segunda possibilidade, está o abandono de “lugar de serviço”. “Lugar de serviço” é a área geográfica delimitada, maior que o posto, a qual impede que o militar possa lhe dar cobertura permanente, embora não afaste a missão de vigilância ou guarda. São exemplos de lugar de serviço a área de toda Unidade, para o Oficial de Dia, responsável pela condução da segurança da Organização Militar. Também parece-nos lugar de serviço, passível de abandono, a delimitação geográfica de policiamento ostensivo, por exemplo, para o oficial que o comanda, denominado na Polícia Militar do Estado de São Paulo – também a título de exemplo – de Comandante de Força Patrulha (CFP).

No caso específico do abandono de posto ou de lugar de serviço, é irrelevante o tempo de abandono, podendo se dar por breve espaço de tempo ou por um tempo longo. Nessa linha:

APELAÇÃO. ABANDONO DE POSTO.CRIME DE PERIGO ABSTRATO. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ATIPICIDADE DA CONDUTA.  PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. CURTO LAPSO TEMPORAL DE AFASTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. CRIME FORMAL E DE PERIGO ABSTRATO. MOTIVOS INJUSTIFICADOS PARA O COMETIMENTO DO DELITO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA. APELO DEFENSIVO DESPROVIDO. I – O delito de abandono de posto é crime propriamente militar, formal e de perigo abstrato. Para a consumação basta a ausência do local designado para o cumprimento do serviço, mesmo que por curto lapso temporal. Ademais, tanto a jurisprudência desta Corte castrense, como do Supremo Tribunal Federal reconhecem a recepção de tal espécie delitiva pela Constituição Federal de 1988, haja vista que determinadas condutas exigem uma proteção prévia, de forma a evitar um mal maior. Precedentes. […] (STM, Apelação n. 7000896-04.2018.7.00.0000, Rel. Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, j. 26/03/2019) (g.n.).

Por fim, pode ocorrer que a atividade desempenhada pelo militar não tenha uma delimitação espacial ou, se o tiver, essa limitação não é tão importante para o desempenho da função confiada ao militar no momento da prática delitiva. Nesse caso, há a terceira modalidade, o abandono de “serviço”.

Nessa construção, como um exemplo, é importante mencionar recente julgado do Superior Tribunal Militar reconhecendo a prática do crime do art. 195 do CPM no caso de um sargento, integrante do serviço de dia, que, no período de sua ronda, com duração de duas horas, passou a maior parte do tempo no interior de um automóvel particular, no estacionamento do quartel – portanto, dentro da Unidade Militar – acompanhado de uma civil, apenas cumprindo sua ronda nos instantes finais do período. Trata-se a Apelação n. 7001373-90.2019.7.00.0000, rel. Min. William de Oliveira Barros, j. 04/05/2020 a 07/05/2020.

Na decisão, partiu-se da premissa de que o serviço de “rondante deve ser dedicado, integralmente, à segurança da OM, sendo que o agente, mesmo que por breve instante, não dispõe da renúncia dessa obrigação”. Em razão disso, o incumbido da ronda “deve ocupar todo o tempo previsto para supervisionar a segurança da OM. Se os rondantes,  no  seu  quarto  de  hora,  fiscalizassem  uma  única  vez  os  postos,  os  guardas conheceriam a rotina de cada um deles e encontrariam brechas para relaxar a segurança, tornando a OM vulnerável, em frontal ataque ao Plano de Segurança”.

Concluiu-se que, “se o rondante, ao invés de prosseguir na fiscalização dos postos, interromper as suas obrigações públicas para priorizar interesses privados, cometerá o crime previsto no art. 195 do CPM”, forte na concepção de que, sendo “o art. 195 do CPM classificado como delito de perigo abstrato, a possiblidade de haver danos materiais e morais irreparáveis  independe do tempo que perdurou o abandono da ronda”.

Concluindo, com base nesta última forma do “Crime 3 em 1”, respondendo a inicial indagação, é perfeitamente possível cometer o crime do art. 195 do CPM (“abandono de posto”) sem deixar o espaço geográfico delimitado como posto ou lugar de serviço.

REFERÊNCIAS:

ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo: RT, 2013, p. 259.

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28 de Junho de 2020