Em que momento se inicia a responsabilização penal militar sob a forma de tentativa?

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31 de Outubro de 2022

Para quem enfrentará o concurso para o cargo de juiz de Direito do Juízo Militar de Minas Gerais alguns pontos devem ser retomados e, certamente, um deles é o momento em que a conduta passa a ter relevância penal militar, ainda que a título de tentativa.

Assim como no estudo do Direito Penal comum, alguns dos elementos da tentativa no Direito Penal Militar são o início da execução, a não consumação e a interferência de circunstâncias alheias à vontade do agente.

O grande problema que se enfrenta está em definir o exato momento em que a execução se inicia. Iniciemos por uma primeira divisão, que prestigia, em polos diversos, o aspecto objetivo e subjetivo. Por essa compreensão, o início da execução seria explicado por três critérios: lógico-formal (objetivo), subjetivo e misto.

Pelo critério lógico-formal (objetivo), o princípio da execução coincide com o início de uma atividade típica, centrando-se, portanto, na atividade inerente ao verbo nuclear do tipo.

Pelo critério subjetivo, deve ser considerado o momento interno do autor, não importando averiguar se o tipo foi parcialmente realizado, mas sim se há subjetivamente a vontade de realização do tipo. Nessa linha de raciocínio, pouco importa o momento de transição dos atos preparatórios, pois “o que importa é a vontade criminosa, que está presente de maneira nítida, tanto na preparação quanto na execução do crime”[1].

À evidência os dois critérios acima possuem críticas plausíveis.

No primeiro, haveria uma multiplicidade de atos que poderiam ficar fora da compreensão de início da execução. Deve-se compreender que “as ações são multiformes e, por esta razão, podem prolongar-se mais ou menos, segundo se exteriorizem desta ou daquela forma. É possível matar-se alguém empregando um procedimento complexo e dilatado ou assestar-lhe uma punhalada por causa da ira que provoca, de súbito, sua atitude. É possível subtrair-se uma coisa mediante um só movimento que aproveita a ocasião inesperada ou recorrendo-se a recursos complicados que exigem uma sucessão de operações preconcebidas.

Como é lógico, a lei não pode – e nem pretende – descrever separadamente todas as formas de exteriorização possíveis. O tipo, em consequência, limita-se a apresentar um esquema de conduta que, na prática, pode adotar modos de realização díspares, cada um dos quais, não obstante, satisfaz as linhas gerais por ele contempladas. Resulta daí a conclusão de que o conteúdo executivo dos tipos é muito variável e depende da forma em que o agente se proponha a consumá-lo. Assim, o que determina, em cada caso concreto, é o plano individual do autor. A tentativa começa com aquela atividade com a qual o autor, segundo seu plano delitivo, se põe em relação imediata com a realização do tipo delitivo”[2].

Do outro lado, o critério subjetivo possibilita que o agente responda por fatos que nem sequer geram riscos a bem jurídicos. Assim, por exemplo, poderia se ter como início da execução o ato de colocar veneno em um copo para servir a alguém, mas sem que o ato de servir a bebida, dependente do próprio agente, fosse efetivado.

Diante dessas dificuldades, alguns entendem haver um critério misto, em que se busca temperar as duas posições anteriores[3], ou, então, entendem que a teoria objetiva possui divisões que a condicionam, surgindo várias teorias decorrentes, das quais as principais seriam a teoria objetivo-formal, a teoria objetivo-material e a teoria objetivo-individual[4].

A teoria objetivo-formal (Liszt) postula que “a ação de execução é exclusivamente aquela descrita pelo verbo do tipo. Ensina Hungria que ‘dentro do tipo legal do crime há um ‘núcleo’ constituído pelo conjunto de atos que realiza o verbo ativo principal do tipo; mas há uma zona (zona periférica), mais ou menos extensa, que está fora do ‘núcleo’: todo o primeiro grupo de atos, isto é, todos os que estão dentro do ‘núcleo’, são atos de execução, e todos os que estão fora dele são preparatórios’”[5].

A teoria objetivo-material, teoria da hostilidade ao bem jurídico (Frank e Mayer) “vê o elemento diferencial no ataque direto ao objeto da proteção jurídica, ou seja, no momento em que o bem juridicamente protegido é posto realmente em perigo pelo atuar do agente. Assim, o crime define-se, materialmente, como lesão ou ameaça a um bem jurídico tutelado pela lei penal. O ato que não constitui ameaça ou ataque direto ao objeto de proteção legal é simples ato preparatório”[6]. Considera como relevante para início da execução a realização de ato imediatamente anterior e necessário à conduta típica, que já signifique perigo ao bem jurídico[7], segundo a avaliação de um terceiro observador[8].

Por fim, a teoria objetivo-individual ou teoria objetivo-subjetiva (Welzel) parte do conceito objetivo-formal, mas busca delimitar melhor o perigo ao bem jurídico, considerando como relevante para o início da execução o ato imediatamente anterior e necessário à conduta típica, mas conforme um plano individual do autor. Essa compreensão, não é obtida por um terceiro observador, mas por prova que indique o plano concreto do agente[9].

O exemplo clássico da aplicação da teoria é o seguinte: colocar veneno no copo da vítima pode ser, de acordo com o plano individual do autor, tanto ato preparatório quanto ato já executivo. Se X, secretária, coloca veneno na xícara que ela mesma servirá logo mais a Y, seu chefe, a colocação do veneno é mero ato preparatório, pois ainda falta, segundo o plano individual de X, um último ato, que é o de servir efetivamente o café. Mas se X coloca veneno na xícara e vai embora, pois Y irá servir-se sozinho, o ato de colocar veneno já é executivo[10].

Assentimos na posição de que o Código Penal comum[11] adotou o critério lógico-formal ou objetivo, assim como o fez o Código Penal Militar[12], ao grafarem a expressão “iniciada a execução” – no caso do CPM no inciso II do art. 30 – sendo relevante a conduta com a prática de ato idôneo para a consumação do delito. Descarta-se, claro, o critério subjetivo.

Mas essa conclusão é insuficiente, pois deve-se averiguar quando tem início essa idoneidade, dada a amplitude de condutas que o verbo nuclear pode encerrar. Na aguçada crítica de Bitencourt:

Há entendimento de que a teoria objetiva (formal) necessita de complementação, pois, apesar de tê-la adotado e de o Código afirmar que o crime se diz tentado ‘quando, iniciada a execução, não se consuma…’, existem atos tão próximos e quase indissociáveis do início do tipo que merecem ser tipificados, como, por exemplo, alguém que é surpreendido dentro de um apartamento, mesmo antes de ter subtraído qualquer coisa; poder-se-á imputar-lhe a tentativa de subtração? Mas se pode afirmar que ele teria iniciado a subtração de coisa alheia? \por isso, se tem aceito a complementação proposta por Frank, que inclui na tentativa as ações que, por sua vinculação necessária com a ação típica , aparecem como parte integrante dela, segundo uma concepção natural, como é o caso do exemplo supra referido[13].

Essa solução não é dada pelo Código Penal Militar, devendo ser cunhada pela doutrina e pela jurisprudência.

Nesse caminho, malgrado a dificuldade de se fixar uma teoria única, entendemos mais adequado sustentar a teoria objetivo-individual, claro, desde que haja demonstração inequívoca nos autos do plano individual do autor. Essa, por exemplo, também é a visão de Nucci[14], além de poder ser encontrada no Superior Tribunal Militar:

1. PRAZO RECURSAL. TEMPESTIVIDADE. MÚLTIPLAS INTIMAÇÕES. Em se tratando de réu solto, o CPPM dispõe que basta a intimação do Defensor dativo para que se inicie o prazo recursal. Todavia, realizado novo ato intimatório, reabre-se o lapso temporal em homenagem à garantia da ampla defesa. Assim, se o advogado e seu cliente forem intimados do decisum em dias diversos, o prazo somente se iniciará a partir do último ato intimatório. 2. ROUBO DE ARMAMENTO. TENTATIVA. INÍCIO DA EXECUÇÃO. PLANO CONCRETO DO AUTOR. TEORIA OBJETIVO-INDIVIDUAL. Incorrem em crime de roubo tentado, indivíduos que, de posse de arma de fogo, com numeração raspada, e trajando indevidamente uniformes militares, ingressam, de madrugada, em Complexo Naval, iludindo a ação do identificador do pórtico, e se escondem em veículo anteriormente roubado, estrategicamente posicionado próximo ao posto de sentinela armado, sendo descobertos e presos por militares de serviço, minutos antes da consumação do delito. Circunstâncias de tempo, lugar e de execução – perfeitamente alinhadas com as minúcias constantes dos depoimentos dos autuados, prestados durante a prisão em flagrante -, que autorizam o reconhecimento do “plano concreto dos autores”, em conformidade com a teoria objetivo-individual, defendida por WELZEL. 3. PENA. DOSIMETRIA. CAUSAS GERAL DE DIMINUIÇÃO E ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA. EQUIVALÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. Ante a falta de previsão legal, não se pode compensar uma causa especial de aumento com uma causa geral de diminuição de pena, conforme ocorre com as circunstâncias atenuantes e agravantes. Necessidade de reforma da dosimetria da pena para aplicar a causa especial de aumento e, em seguida, a causa geral de diminuição de pena, acarretando a redução da pena aplicada aos réus. 4. NOMES DOS ACUSADOS. GRAFIA. ERRO MATERIAL. Apresenta-se como erro material pequenos equívocos observados nos nomes dos Acusados, podendo ser corrigido de ofício. (STM, Apelação n. 68-06.2009.7.01.0101, rel. Min. Fernando Sérgio Galvão, j. 03/02/2014).

[1]    NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo, Forense, 2014, p. 60.

[2]    URZÚA, Enrique Cury apud CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 244-5.

[3]    CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 244.

[4]    NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo, Forense, 2014, p. 60-2.

[5]    VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 309.

[6]    BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. I, p. 467.

[7]    VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 310.

[8]    NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo, Forense, 2014, p. 61.

[9]    VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 310.

[10]  VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 310.

[11]  CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 245.

[12]  NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo, Forense, 2014, p. 60.

[13]  BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. I, p. 467.

[14]  NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo, Forense, 2014, p. 61.

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31 de Outubro de 2022