Entenda o perdão do caso Daniel Silveira

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22 de abril7 min. de leitura

Vamos tratar de um assunto que está em evidência em todos os noticiários. Antes, porém, tenho um pedido especial a fazer: não importa sua ideologia. Pode ser de direita, de esquerda, de centro ou do avesso. Aqui nosso debate será técnico e respeitoso, sem qualquer direcionamento.

Sendo ou não partidário do Presidente; sendo ou não favorável à decisão proferida pelo STF; concordando ou não com as falas de Daniel Silveira, saiba que a análise aqui será estritamente objetiva, voltada para esclarecer a todos, estudem ou não para algum concurso público. Afinal, são questões delicadas, que de um jeito ou de outro mexem com nosso cotidiano.

Vou começar distinguindo quatro institutos jurídicos: anistia, graça, indulto e comutação. Eles são mencionados na Constituição Federal e detalhados pela legislação.

A anistia apaga determinado fato histórico, passando uma borracha nos acontecimentos. Ela faz cessar a pena e seus efeitos secundários, como a reincidência.

A graça, o indulto e a comutação, por sua vez, são concedidos pelo Presidente da República, que é nosso chefe de Estado. Segundo o artigo 84, XII, a concessão de indulto e a comutação de penas estão entre as atribuições presidenciais passíveis de delegação aos ministros de Estado, ao PGR e ao AGU.

Enquanto a graça é perdão é destinado a uma pessoa específica, o indulto é coletivo. Ele pode ser total (indulto pleno), ou parcial (também chamado de comutação).

Feita essa conceituação, passemos a falar um pouco mais de cada um dos institutos, bem assim sobre a controle político ou jurídico.

De acordo com artigo 21, XVII, cabe exclusivamente à União conceder anistia, competência essa indelegável. A materialização da anistia se dá por meio de lei editada pelo Congresso Nacional, sendo necessária a sanção do Presidente da República.

No ano de 1979 houve uma importante Lei de Anistia em nosso país: ela abrangeu todos os crimes políticos e conexos praticados entre 1961 e 1979. Essa norma foi fundamental para o movimento da redemocratização, pondo fim à Ditadura.

Muitos anos depois, em 2010, a OAB ajuizou uma ADPF questionando a lei de anistia, dizendo-a incompatível com a Constituição atual. Num voto histórico, o Relator, Ministro Eros Grau, disse que o que ficou no passado deveria ser deixado no passado e que a anistia deveria ser mantida, de forma ampla, geral e irrestrita, inclusive para crimes hediondos e equiparados, como a tortura.

A aparente incompatibilidade com o dispositivo constitucional que proíbe graça e anistia a crimes hediondos e afins foi afastada ao argumento de que lei concessiva de anistia é lei-medida, que deve ser analisada de acordo com o contexto histórico da época de sua edição. Ali o Brasil renunciava a uma caça às bruxas (STF, ADPF 153).

Embora você tenha visto que a concessão da anistia é de competência exclusiva da União, tal regra se aplica apenas às questões criminais, na medida em que cabe privativamente à União legislar sobre direito penal.

Tratando-se de anistia em relação a punições administrativas, ela também pode ser dada pelas assembleias legislativas. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Espírito Santo no ano de 2019, quando o governador Renato Casagrande anistiou as sanções disciplinares aplicadas a policiais militares envolvidos em movimento grevista ocorrido dois anos antes.

Como sei que você gosta de ficar por dentro do que cai nas provas, anote aí: a lei que concede anistia a policiais estaduais deve nascer a partir de projeto apresentado pelo governador. Caso surja da iniciativa parlamentar, padecerá de vício formal de inconstitucionalidade (STF, ADI 4.928).

Um parêntese: poderia o Congresso Nacional conceder anistia a Daniel Silveira?

Teoricamente, sim. Para isso, a lei precisaria de aprovação da maioria dos membros das Casas Legislativas. Propostas assim chegaram a ser ventiladas na imprensa, após a notícia da condenação do parlamentar.

Hora de tratarmos do indulto!

A primeira coisa que quero é evitar a confusão entre indulto e o benefício das saídas temporárias, chamado popularmente de “saidão”.

São comuns matérias jornalísticas confundindo os institutos. Também ouço pessoas dizendo que a pessoa ganha o “indulto de Natal” e depois não volta…

Veja, nas saídas temporárias espera-se que o detento retorne ao presídio. Elas acontecem durante alguns períodos do ano, como parte do processo de ressocialização e reinserção do apenado ao convívio social.

Quanto ao indulto, sendo concedido na forma plena, espera-se que o sujeito nunca mais volte. Afinal, teve o perdão total de sua pena e, se retornar, será por outros fatos.

Avançando, a verdade é que quase sempre ouvimos falar em indulto natalino, mas nada impede que ele seja dado em outro momento do ano.

A tradição constitucional mais recente – ao menos de 1988 para cá – é no sentido de se aproveitar as festividades de Natal para perdoar total ou parcialmente as penas. Isso é viabilizado mediante decreto presidencial.

Usam-se critérios como cumprimento de determinada fração da pena, bom comportamento carcerário nos meses que antecederam à decisão ou mesmo razões humanitárias, quando diante de apenados gravemente enfermos ou deficientes.

Entendem os tribunais superiores que a decisão do juiz da Vara de Execuções Penais que concede o indulto tem natureza declaratória, não podendo criar requisitos diferentes daqueles utilizados pelo Presidente para negar o benefício (STJ, HC 572.802).

Há restrições ao decreto de indulto ou o Presidente tem ampla liberdade?

Embora a concessão seja ato discricionário, há limites impostos pela própria Constituição.

Segundo o artigo 5º, XLIII, a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.

Repare que se falou apenas de graça ou anistia, sem mencionar expressamente o indulto e a comutação.

Porém, a graça mencionada no artigo 5º é gênero, de onde se extraem a graça propriamente dita, o indulto e a comutação como espécies.

Regulamentando o texto constitucional, a Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos –, em seu artigo 2º veda a anistia, a graça e o indulto (a comutação é indulto, concedido parcialmente).

Afora a limitação constitucional, o Presidente teria outra restrição na concessão de indulto?

Essa questão foi enfrentada recentemente pelo STF.

É que a Procuradoria Geral da República questionou judicialmente os termos do indulto concedido pelo então Presidente Michel Temer, no ano de 2017.

À época, a PGR entendeu que o decreto presidencial estava sendo benevolente demais com condenados por crimes do colarinho branco, cabendo lembrar que vários políticos estavam encrencados por escândalos como Mensalão e Petrolão.

Num primeiro momento, a liminar foi concedida, sustando a aplicação do decreto. Porém, dois anos mais tarde, o entendimento majoritário do Plenário do STF foi no sentido de que o tempero mais ou menos carregado era exclusivo do Presidente, sem que sofra interferências do Judiciário. Em outras palavras, o Presidente é livre na extensão dos termos do decreto, desde que observe os limites constitucionais (STF, ADI n. 5.874).

Entendi, então. Isso significa que o STF não pode questionar o benefício dado a Daniel Silveira?

Calma, pois ainda chegarei nesse ponto.

Falando sobre a graça, ela é um benefício individual. Em outros países, como Estados Unidos, é usado com bastante frequência. Donald Trump, por exemplo, perdoou algumas pessoas no final de seu mandato. Mais do que isso: já afirmou aos quatro ventos que, se vitorioso nas próximas eleições, irá perdoar todos os condenados pela invasão ao Capitólio, no comecinho de 2021 – invasão incentivada pelo próprio Trump, que não queria deixar o Poder.

Já no Brasil, o instituto da graça é bem menos usual. De 1988 para cá não há notícia de sua concessão. O último caso que descobri nas pesquisas que fiz foi lá no ano de 1945, para beneficiar os “pracinhas”, militares brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial.

Ou seja, é algo bastante raro e incomum.

Na legislação brasileira, a graça é mencionada no artigo 734 do CPP (dispositivo citado por Bolsonaro no decreto datado de 21 de abril). Contudo, a doutrina indica que o tema deve ser regulado pelo artigo 188 da LEP, que teria revogado essa parte do CPP.

Veja o que diz a Lei de Execução Penal:

Art. 188. O indulto individual poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa.

Aqui, estamos diante de um primeiro obstáculo ao decreto desta semana: a iniciativa foi do próprio Presidente, sem pedido anterior.

Seguindo, há outro ponto que pode ser objeto de questionamento: a condenação ainda era passível de recurso.

É que indulto, comutação e graça recaem para extinguir a pena, sendo institutos próprios da execução penal. E, no caso do Deputado Daniel Silveira, a graça foi concedida horas depois da decisão que o condenou ao cumprimento da sanção de 8 anos e 9 meses de reclusão. Indubitavelmente, caberiam recursos, como é o caso dos embargos de declaração.

Professor, não foi ferido o princípio da impessoalidade?

Veja, a característica da impessoalidade está muito mais relacionada ao indulto, dado o seu caráter coletivo.

Na graça, estamos diante de perdão individual. O fato de ser alguém conhecido ou integrante do grupo político do Presidente, por si só, não anula o benefício.

A título ilustrativo, cito mais uma vez Donald Trump, que perdoou o coordenador de sua campanha à Presidência e o banqueiro que é pai de seu genro.

Muito se falou sobre desvio de finalidade. Ele pode ser cogitado mesmo para atos discricionários?

Não há dúvidas de que a concessão da graça, resquício dos poderes imperiais, é ato discricionário.

Porém, ser discricionário não é sinônimo de inquestionável juridicamente.

Para explicar melhor, usarei a atribuição presidencial de nomear e exonerar ministros de Estado, prevista no artigo 84, I, da CF.

No ano de 2016, Dilma nomeou Lula como seu ministro da Casa Civil, mas o ato foi anulado pelo STF; mais à frente, Temer nomeou Cristiane Brasil como ministra do Trabalho, mas o ato também foi anulado. Recentemente, após a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, Bolsonaro nomeou Alexandre Ramagem para o cargo. Uma vez mais, o STF vetou a escolha.

Veja, então, que atos administrativos discricionários ou vinculados, quando eivados de vício – dentre os quais, o desvio de finalidade –, podem ser objeto de questionamento na via judicial, atuação própria do mecanismo de freios e contrapesos.

Opa, mas e o Legislativo? Ele também pode fazer algum tipo de controle sobre o decreto presidencial?

A esse respeito, poucas horas depois de publicizado o decreto de Bolsonaro, o Senador Rodrigo Pacheco, que preside o Senado e o Congresso Nacional, emitiu nota dizendo que “não é possível ao Parlamento sustar o decreto presidencial, o que se admite apenas em relação a atos normativos que exorbitem o poder regulamentar ou de legislar por delegação”.

Sua Excelência ainda acrescentou: “Há uma prerrogativa do presidente da República prevista na Constituição Federal de conceder graça e indulto a quem seja condenado por crime. Certo ou errado, expressão de impunidade ou não, é esse o comando constitucional que deve ser observado e cumprido”.

Ou seja, o Presidente do Congresso Nacional deixou claro que não iria entrar nessa bola dividida.

Seguiram-se várias ações manejadas diretamente no STF. Há de tudo um pouco: reclamação proposta por senador, ADPFs ajuizadas por partidos políticos.

Há alguns caminhos possíveis: o tribunal pode manter ou anular o decreto presidencial.

Seja lá qual for o desfecho, uma coisa é certa (ao menos, dentro do que se tem na jurisprudência até hoje): Daniel Silveira continuará inelegível e poderá sofrer a perda de seu mandato.

Uai, professor, mas ele não foi beneficiado com a graça, que significa o perdão?

Sim, pequeno gafanhoto.

Acontece que o perdão viabilizado pelo indulto ou pela graça extingue somente os efeitos primários da condenação, não atingindo os efeitos secundários, penais ou extrapenais. É o que diz a Súmula 631, editada pelo STJ no ano de 2019.

Ou seja, o beneficiado continuaria a ser considerado reincidente, se fosse condenado por novo delito.

No caso de Daniel Silveira, certamente o que mais impacta sua situação é o afastamento do pleito eleitoral deste ano, operado por conta do dispositivo da Lei da Ficha Limpa, segundo o qual são inelegíveis os condenados por órgãos colegiados, como é o caso do Plenário do STF.

Última coisa: a conduta de Bolsonaro ao editar o decreto concessivo de graça pode ser considerada crime de responsabilidade?

É prematuro dizer, mas provavelmente, não. As condutas que configuram crime de responsabilidade estão descritas no artigo 85 da Constituição e na Lei 1.079/50.

Por ser uma acusação de natureza política, precisaria que eventual denúncia fosse acolhida por 2/3 da Câmara dos Deputados e a condenação também pelo quórum qualificado de 2/3 dos membros do Senado Federal.

Num cenário em que o Presidente da República conta com maioria em ambas as Casas, o impeachment soa bastante improvável.

Espero, de coração, ter contribuído para esclarecer o assunto.

Agora, cabe-nos aguardar as cenas dos próximos capítulos. Confesso estar apreensivo e desejando a volta do ambiente de normalidade institucional, indispensável para os rumos de nosso país.

Querido gafanhoto, conte sempre comigo e com toda a equipe do Gran!

Aragonê Fernandes

Juiz de Direito do TJDFT; ex-Promotor de Justiça do MPDFT; ex-Assessor de Ministros do STJ; ex-Analista do STF; aprovado em vários concursos públicos. Professor de Direito Constitucional do Gran Cursos Online.

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