Estatuto do Desarmamento e o disparo de advertência por militar na função de sentinela

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06 de abril15 min. de leitura

  1. Introdução:

A Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017, inovou o Direito Penal Militar de forma substancial, havendo, passados dois anos e seis meses de sua vigência, inúmeros trabalhos que discutem sua constitucionalidade, aplicação, reflexos etc.

Neste raciocínio breve que se colocará, será versada uma discussão que pode preocupar alguns atores do Direito Militar, pretensamente ainda não enfrentada, e que consistente na avaliação se o disparo de arma de fogo, como alerta, de militar na função de sentinela, configuraria o delito capitulado no art. 15 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003.

O raciocínio, embora simples, apresentará propostas de atuação para aqueles que enfrentarem a situação-tipo, com o fito de propiciar uma adequada aplicação do Direito Castrense.

 

  1. Delimitando o problema:

De maneira resumida, como um dos eixos da Lei n. 13.491/2017, ocorreu a ampliação no conceito de crime militar em tempo de paz, podendo-se, agora, concluir pela prática de um crime militar em fatos para os quais não haja tipo penal incriminador no Código Penal Militar (CPM), isso com lastro em tipos penais previstos na legislação penal comum e em algumas circunstâncias trazidas pelas alíneas do inciso II do art. 9º do Código Penal Castrense, o que pode perfeitamente ocorrer com os crimes trazidos pelo Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003).

A propósito do mencionado Estatuto, o art. 15 dispõe ser crime:

Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

 

As normas internas das instituições militares, por sua vez, impõem o dever, em algumas situações, de o militar efetuar um disparo de advertência em direção ao alto, para afugentar possível ameaça à segurança das instalações militares e de seu pessoal.

Como exemplo, tem-se o Regulamento Interno dos Serviços Gerais (R-1), aprovado pela Portaria n. 816, de 19 de dezembro de 2003, de lavra do Comandante do Exército Brasileiro.

O art. 221 do R-1 dispõe:

Art. 221. Incumbe, particularmente, à sentinela:

[…];

  • 1º Em situação que exija maior segurança da sentinela para o cabal desempenho de sua missão, incumbe-lhe, especialmente à noite, e de conformidade com as instruções e ordens particulares recebidas, além das prescrições normais estabelecidas, as seguintes:

I – fazer passar ao largo de seu posto os transeuntes e veículos;

[…];

  • 2º Para o cumprimento das disposições constantes do § 1º deste artigo, a sentinela deve adotar os seguintes procedimentos:

I – no caso do inciso I do § 1º deste artigo:

[…];

  1. e) tratando-se de grupo ou de veículos, fazer um primeiro disparo para o ar e, em seguida, caso não seja ainda obedecida, atirar no grupo ou nos veículos;

[…] (g.n.).

 

Inevitavelmente, surge o questionamento se a conduta imposta pelo R-1 pode ser subsumida pelo art. 15 do Estatuto do Desarmamento e quais as medidas o comandante de Unidade, ou quem o represente, deve tomar diante da prática do disparo nos termos regulamentares. Claro, também a discussão aproveitará a atuação ministerial e do Poder Judiciário Castrense nas diversas fases da persecução criminal.

 

  1. Esmiuçando o art. 15 do Estatuto do Desarmamento:

O tipo penal acima transcrito, já era previsto na Lei n. 9.437 de 20 de fevereiro de 1997 (art. 10, § 1º, III), revogada pelo Estatuto do Desarmamento, mas com este ganhou especial gravidade, aliás, o que se teve como muito adequado. Nessa linha, César Dario Mariano da Silva (2013, p. 122) dispõe:

Trata-se de crime de extrema gravidade, principalmente porque projéteis são disparados sem que se saiba ao certo aonde irão cair e o que ou quem poderão atingir. Infelizmente, tornou-se rotina o disparo de arma de fogo por qualquer motivo, inclusive quando de comemorações. Isso fez com que “balas perdidas” atingissem grande número de pessoas, que acabaram morrendo ou sendo lesionadas seriamente.

 

Embora a crítica de comportamento versada pelo autor, óbvio, não se destine às instituições militares, o alerta sobre as “balas perdidas” não pode ser afastado do regulamentar disparo para o ar.

Assim, de partida, altamente recomendável, a mudança de procedimento, por exemplo, possibilitando o disparo de advertência em anteparo alocado nos locais de serviço, como caixas de segurança, ou outra alternativa viável, em vez do disparo para o ar.

Enquanto viger a norma regulamentar, entretanto, há de se verificar se a conduta do disparo, em si, sem que o projétil tenha atingido alguém, configura o grave delito do art. 15 do Estatuto do Desarmamento, impondo-se o dever de esmiuçar suas características.

O objeto jurídico do delito é, notadamente, a incolumidade pública, ou seja, busca-se, com a incriminação, tutelar a integridade corporal e a vida dos cidadãos, sem a identificação de uma pessoa específica. Essa primeira característica leva à necessidade de se vincular a caracterização como crime militar à alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Em outras palavras, para que o disparo de arma de fogo seja crime militar, somente pode ser considerada a mencionada alínea, já que as demais alíneas exigem pessoa natural no polo passivo (outro militar da ativa, militar da reserva, militar reformado ou civil).

Na alínea “e” do inciso II do art. 9º do CPM, particularmente, deve-se ter por elemento a ser preenchido pela conduta a lesão à ordem administrativa militar, que deve, então, ser delineada.

A expressão é idêntica à que existia na alínea “e” do inciso II do art. 6º do anterior Código Penal Militar, o Decreto-Lei nº 6.227, de 24 de Janeiro de 1944, e, partindo deste ponto, lembra Enio Luiz Rossetto (ROSSETTO, 2015, p. 125-6):

O legislador não foi feliz ao utilizar a expressão ordem administrativa militar. Silvio Martins Teixeira, ao comentar o Código Penal Militar de 1944, lembrava que no Código Penal Militar de 1891 havia o Título denominado Dos crimes contra a ordem econômica e administrativa militar, que o Código de 1944 mudou para Dos crimes contra a administração militar. Há controvérsia na doutrina. Jorge Alberto Romeiro entende que são crimes contra a ordem administrativa militar  os crimes dos Títulos VII (Dos crimes contra a administração militar) e VIII (Dos crimes contra a administração da Justiça Militar) e conclui que a expressão não pode ser aceita porque os bens jurídicos tutelados nos dois Títulos acima referidos são diversos, não se confundem: no primeiro, é o funcionamento da Administração Militar; no segundo, é o funcionamento da Justiça Militar. Nesse passo, com a devida vênia, tem razão Célio Lobão quando define que o crime contra a ordem administrativa militar é aquele que “atinge a organização, a existência e a finalidade das Forças Armadas, bem como seu prestígio moral”. A expressão ordem administrativa militar tem sentido mais amplo.

 

Com efeito, Jorge Alberto Romeiro (1994, p. 82) prefere o caminho da enumeração dos crimes contra a ordem administrativa militar e não o da definição da expressão, opção diversa de Célio Lobão (2011, p. 120) que busca conceituar na forma apontada por Rossetto ou, mais recentemente, como “conjunto de leis, regulamentos, atos legais de autoridade militar competente, indispensável ao funcionamento das instituições militares, ao cumprimento da sua destinação constitucional ou legal”.

Cláudio Amin Miguel e Ione de Souza Cruz (2008, p. 47) unem os dois critérios, ou seja, buscam definir a expressão, mas indicam também quais crimes a preencheriam:

A ordem administrativa militar diz respeito às infrações que atingem a organização,  existência e finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar. Esses delitos encontram-se elencados nos artigos 298 a 339 do Código Penal Militar.

 

Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas (2015, p. 125) incursionaram com mais detalhes na expressão, na seguinte senda:

O conceito de ordem administrativa militar é um pouco mais amplo e vai versar sobre tudo que puder causar transtorno à administração militar, ou, no dizer de Célio Lobão:

“(…) segundo decidiu o Supremo Tribunal Federal, são infrações que atingem a organização, a existência e finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar (HC n. 39.412, RTJ 24/39”.

Bem elucidativo e difícil de refutar, ao menos racionalmente. Dentre outras hipóteses, podemos destacar a fé pública da administração militar que estará em xeque sempre que houver um crime de falsum relativo a documentos cuja expedição caiba à administração militar, ainda que em atribuições diversas de sua atividade-fim […].

 

Assiste razão a Marreiros, Rocha e Freitas, assim como a Rossetto, ao buscarem ampliar a compreensão da expressão, de maneira que não se deve limitar sua aplicação apenas em determinados tipos de crimes, com foco na capitulação trazida pelo CPM, mormente após a Lei n. 13.491/17, que permite a configuração de crimes militares sequer previstos no Código Castrense. Os que buscavam a limitação pela enumeração de um rol, em outros termos, perderam a premissa de raciocínio, qual seja, a de que todo crime militar deveria estar capitulado no CPM.

Vencida esta necessária abordagem, insta esclarecer os sujeitos do delito.

Trata-se de crime comum, pois o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusive, claro, o militar que estiver de serviço, na função de sentinela. O sujeito passivo, tradicionalmente, é apontado como sendo a coletividade, configurando-se em um crime vago, mas com a roupagem da alínea “e” do inciso II do art. 9º, no caso do crime militar, o sujeito passivo imediato será o Estado, pois afetada a ordem administrativa da instituição militar.

Ingressando pelos elementos objetivos, as condutas nucleares são disparar (arma de fogo) ou acionar (munição), interessando à discussão em curso a primeira conduta.

Disparar arma de fogo significa propiciar o arremesso do projétil por esse instrumento, ou seja, inaugurar a deflagração da carga de projeção constante do cartucho, impulsionando, pela queima de gases, o projétil à frente. Geralmente, essa conduta coincide com a pressão do dedo na tecla do gatilho de uma arma.

O objeto material do delito é arma de fogo ou munição, interessando ao presente raciocínio a arma de fogo. Trata-se de elemento normativo, cuja definição é encontrada no glossário constante do anexo III do Decreto n. 10.030, de 30 de setembro de 2019, que aprovou o Regulamento de Produtos Controlados, na seguinte conformidade:

Arma de fogo: arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases, gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara, normalmente solidária a um cano, que tem a função de dar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil.

 

Trazendo a definição para o tema em curso, obviamente, o instrumento nas mãos do militar de serviço a quem se dirige o comando do R-1, enquadra-se no conceito de arma de fogo.

Prosseguindo na análise dos elementos objetivos do delito, a conduta deve ser praticada em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela.

Lugar habitado deve ser compreendido como “aquele que possui qualquer pessoa lá morando, mesmo que de forma eventual, como as cidades, vilas, fazendas, dentre outros locais análogos. Suas adjacências são os locais próximos ao habitado” (SILVA, 2013, p. 125). Via pública, por seu turno, “é o local pertencente ao poder público, como as ruas, parques e estradas. O disparo poderá ocorrer na própria via pública ou em direção a ela, mesmo que efetuado de dentro de uma casa” (Idem, ibidem).

Entende-se que o disparo efetuado na unidade militar, por exemplo, no muro da guarita em que está o militar sentinela, preenche a elementar local habitado, pois, por exemplo, a organização militar estará situada em uma cidade, em que pessoas residem e onde o disparo para o alto implica risco à incolumidade pública.

Finalizando os elementos objetivos, há a subsidiariedade do crime (expressa), pois o tipo consigna “desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime”, ou seja, se o disparo for na direção de alguém com a intenção de matar, por exemplo, o mote de análise será o crime de homicídio e não o de disparo de arma de fogo. Discute-se, entretanto, se a subsidiariedade estaria presente em um crime mais brando, como o de lesão corporal, quando, para sofrer menor reprimenda, bastaria ao autor sempre alegar que tentou lesionar alguém (SILVA, 2013, p. 126).

No que se refere ao elemento subjetivo, o crime somente admite a forma dolosa, mas não se exige um elemento subjetivo especial do tipo ou do injusto. Assim, os disparos acidentais de arma de fogo, eventualmente ocorridos em quartéis, não configuram o delito pela atipicidade subjetiva da conduta.

O crime se consuma com o efetivo disparo de arma de fogo (crime de mera conduta) e, como crime plurissubsistente, admite-se a tentativa quando, por exemplo, o disparo, apesar da conduta do agente o buscando, não ocorre.

 

  1. As possíveis soluções para a indagação proposta:

Em primeira observação, deve-se ter em mente que se trata da análise da conduta de um militar que segue prescrição regulamentar e, nessa obediência à norma, dispara arma de fogo.

Não havendo essa premissa fática, ocorrerá certamente o crime militar extravagante de disparo de arma de fogo, a ter sua tipicidade complementada pela alínea “e” do inciso II do art. 9º do CPM, na agressão à ordem administrativa militar. Assim, por exemplo, o militar que, no jogo de futebol de seu time do coração, estando de serviço na Guarda do Quartel, dispara para o alto o fuzil que tem em razão do serviço, em comemoração a um gol feito, incorrerá no delito do art. 15 da Lei n. 10.826/2003, crime militar nos termos da citada alínea, podendo ser preso em flagrante delito (ou ter contra si instaurado um inquérito policial militar), denunciado, processado e julgado na Justiça Militar.

Por outro lado, o militar que cumpre a prescrição regulamentar, disparando para o alto, não cometerá crime de disparo de arma de fogo, inaugurando-se algumas possibilidades de interpretação, que serão expostas a seguir.

 

4.1. Exclusão da ilicitude:

A primeira possibilidade é a exclusão da ilicitude.

Esta construção será possível tanto na aplicação dos dogmas finalistas, influenciadores do Código Penal comum, como dos dogmas neokantistas, que dão a moldura do Código Penal Militar.

É sabido que o crime, em seu conceito analítico, minimamente, constitui-se de fato típico e ilícito. A culpabilidade, a depender da teoria adotada (bipartida ou tripartida), integrará ou não o conceito de crime. Assim, há adeptos do Finalismo que adotam um conceito tripartido de crime (fato típico, ilícito e culpável), mas há outros finalistas que adotam um conceito bipartido (fato típico e ilícito). Há, ainda, a moldura causalista neoclássica (neokantista), influenciadora do CPM, que por imposição sistêmica assimila um conceito tripartite de crime (fato típico, ilícito e culpável).

Seja como for, repita-se, a ilicitude informa o conceito analítico de crime em qualquer vertente.

Ilicitude (ou antijuridicidade) constitui-se na “oposição entre a ação típica realizada e as exigências do ordenamento jurídico, o desvalor de um determinado fato humano, ao ferir uma norma de agir no ordenamento jurídico” (FIGUEIREDO, 2004, p. 66). Esse desvalor do fato, no entanto, não pode ser compreendido apenas em uma análise objetiva, mas também sob o prisma subjetivo.

Entre idas e vindas sobre a discussão da relação entre tipo e ilicitude, prevalece hoje o entendimento de que a tipicidade é indício da antijuridicidade (ratio cognoscendi), ou seja, tudo aquilo que é típico, em princípio é ilícito, mas essa presunção pode ser afastada por causas que justifiquem a conduta, as causas justificantes ou excludentes da ilicitude.

Tanto no Código Penal comum (art. 23, III) como no Código Penal Militar (art. 42, III), uma das causas que afastam a ilicitude é o estrito cumprimento do dever legal.

Os agentes públicos, no desempenho de suas atividades, não raras vezes devem agir interferindo na esfera privada dos cidadãos, exatamente para assegurar o cumprimento da lei (em sentido lato). Essa intervenção redunda em agressão a bens jurídicos como a liberdade de locomoção, a integridade física, a incolumidade e até mesmo a própria vida.

Dentro de limites aceitáveis, tal intervenção é justificada pelo estrito cumprimento do dever legal, não se consubstanciando, portanto, em crime. Assim, o estrito cumprimento do dever legal consiste em uma ação praticada em obediência a um dever imposto por lei ou por outra norma de observância obrigatória, ainda que isso cause lesão ou risco de lesão a bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal.

O problema é que a lei penal (comum ou militar) não define o estrito cumprimento do dever legal, devendo-se lançar mão de aportes doutrinários para seu torneamento, sendo propícia a lição de Telma Angélica Figueiredo (2004, p. 99):

O cumprimento do dever legal limita-se pelo adjetivo ‘estrito’, obrigando ao agente, tal como na legítima defesa, o uso moderado dos meios necessários para o alcance do dever imposto pela norma. O cumprimento do dever legal pressupõe vínculo de subordinação oriundo do Poder Público. O autor dessa conduta justificada só poderá ser um agente da autoridade pública, e não qualquer pessoa. A norma jurídica obriga o agente do Poder Público a fazer ou deixar de fazer ‘algo’ a terceiro. O militar, sujeito a um vínculo de subordinação maior, por força dos princípios de hierarquia e disciplina, deve obedecer aos regulamentos militares com rigor, objetivando garantir tanto a liberdade individual, quanto a defesa da Pátria. Infere-se que o militar, em serviço, acoberta-se por essa excludente.

 

Entende-se, na linha apontada pela autora, que o reconhecimento desta justificante está condicionado à existência de competência territorial e material para a ação, oriunda de um vínculo com o Poder Público, delineado por forma prescrita em lei e com a observância da necessidade e da proporcionalidade.

Nessa moldura, o militar em serviço de sentinela, como se discute neste raciocínio, está vinculado ao Poder Público pela condição de militar da ativa e, mais, por estar no desempenho do serviço.

O seu dever de cumprir a norma de regulamento interno (como o já apontado art. 221 do R-1), decorre de imposição legal, como atuação inerente à “disciplina”, definida, por exemplo, pelo Estatuto dos Militares (Lei n. 6.880, de 9 de dezembro de 1980) em seu art. 14, § 2º, como “a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo” (g.n.).

Da “disciplina”, o militar não pode se esquivar, pois, além de ser valor estruturante das instituições militares (arts. 42 e 142 da Constituição Federal), sua observância constitui-se em dever inafastável da carreira das armas (v.g. inciso IV do art. 31 do Estatuto dos Militares).

O disparo único para o ar, ademais, mostra-se necessário e moderado em relação ao fim pretendido, o que não ocorreria, por exemplo, com uma rajada de disparos para o ar.

Compondo os elementos traçados, portanto, o militar que dispara arma de fogo em estrita observância ao disposto na alínea “e” do § 2º do art. 221 do R-1, poderá até ter praticado o fato típico do art. 15 da Lei n. 10.826/2003, mas sua conduta não poderá estar contra o ordenamento jurídico, já que cumpre um mandamento normativo.

Não haverá, em resumo, crime de disparo de arma de fogo, pela exclusão da ilicitude diante do estrito cumprimento do dever legal.

Nestes casos, o procedimento do comandante de unidade, ou de quem lhe faça as vezes, é o de considerar a conduta do militar como um fato adstrito ao Direito Administrativo e não ao Direito Penal, prescindindo-se da apuração de polícia judiciária militar, mas apenas adotando as providências que a instituição definir em suas normas como medidas administrativas gerais. No plano do Ministério Público e do Poder Judiciário Castrense, entende-se, com todo respeito à independência funcional e ao livre convencimento motivado, que eventual inquérito (ou outro procedimento) que chegue à apreciação com os elementos bem definidos, deva ser arquivado.

Claro, a análise está adstrita ao tipo penal do Estatuto do Desarmamento. Caso haja, pela queda do projétil, o ferimento ou a morte de alguém, o foco de análise muda e, diante da possibilidade de prática de homicídio ou de lesão corporal, faz-se necessário instaurar inquérito policial militar.

Uma outra possibilidade no contexto de discussão é o erro de percepção fática do militar em serviço, levando-o ao disparo. Já se ouviu ter havido disparo por militar na função de sentinela, diante de uma pretensa aproximação indevida do local do posto, que a ameaça não se confirmou, pois houve a constatação de que se tratava de um animal a se aproximar que, obviamente, não atendeu aos comandos verbais orais.

Neste caso, haverá erro de fato essencial da segunda hipótese do art. 36 do Código Penal Militar (ou erro sui generis do § 1º do art. 20 do CP), configurando as chamadas descriminantes putativas fáticas, que importam, se o erro for invencível, em isenção de pena, ou seja, ausência de responsabilização penal do agente por exclusão, no Código Penal Militar, por exemplo, da culpabilidade.

Diante de situações como estas, a instauração de inquérito policial militar mostra-se recomendável, pois o fato carecerá de apuração mais acurada, a verificar a inexistência da situação fática, a equivocada crença na sua existência pelo agente e a vencibilidade ou não do erro. Uma vez demonstrados esses elementos, o destino do procedimento, mais uma vez com o devido respeito à independência funcional e ao livre convencimento motivado, deve ser o arquivamento.

 

4.2. Tipicidade conglobante:

A natureza jurídica do estrito cumprimento do dever legal como causa de justificação não é pacífica, pois setor doutrinário o considera como causa a excluir a própria tipicidade.

Ensinam Zaffaroni e Pierangeli (2002, p. 551) que, embora um bom número de autores considere tratar-se de causa de justificação, não o é, “porque as causas de justificação são geradas a partir de um preceito permissivo, enquanto no cumprimento de um dever jurídico há somente uma norma preceptiva (uma ordem)”. Em suma, os autores ponderam que na legítima defesa e no estado de necessidade o direito faculta a ação de proteção ao bem jurídico, tendo o agente a possibilidade de assim não agir. Por essa razão, se optar pela ação, terá sua conduta justificada. No caso do cumprimento de um dever, o agente não tem outra opção senão agir, já que o direito assim impõe, sob pena de responsabilização.

Para os autores (2002, p. 457), a tipicidade penal é integrada pela tipicidade legal, entendida como individualização da conduta feita pela lei mediante o conjunto de elementos descritivos e valorativos, e pela tipicidade conglobante, traduzida pela comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pelo ordenamento jurídico como um todo.

A tipicidade penal, integrada pela tipicidade conglobante, dessa forma, solucionaria a questão do disparo de arma de fogo por sentinela, em cumprimento a norma regulamentar, por outro caminho, o da ausência de antinormatividade, já que fomentada pelo próprio direito, levando à atipicidade do fato.

Em que pesem as considerações de Zaffaroni e Pierangeli, entende-se, como a maior parte da doutrina, que o estrito cumprimento do dever legal é justificante da conduta, porquanto podem ser identificadas zonas desse dever em que o cunho discricionário pode facultar a ação, isentando o agente de responsabilidade. É o caso típico do exercício do poder de polícia, que tem a discricionariedade como um de seus atributos.

Seja como for, para os adeptos desta linha de raciocínio, o caso colocado em estudo não se configuraria em crime, razão pela qual também seria prescindível medida de polícia judiciária militar, salvo em caso do já apontado erro de fato, e, no plano da atuação na Justiça Militar, arquivamento de eventual inquisa instaurada.

 

4.3. Outras possibilidades de análise:

As duas soluções acima apontadas não são as únicas possíveis, mas talvez sejam as duas mais seguras.

É possível, por exemplo, buscar uma exclusão direta do dolo, no Código Penal Militar, pela não consciência da ilicitude, já que o agente militar, ao disparar a arma, dado o seu adestramento intenso, não concebe a ilicitude do fato. No Código Penal Militar, presumindo a adoção da teoria extremada do dolo, a consciência da ilicitude integra o conceito de dolo, como seu elemento normativo, configurando o que se intitula dolo normativo ou dolus malus. A exclusão do dolo, no sistema neokantista do CPM, importa em exclusão da culpabilidade, portanto do próprio crime.

Em outra roupagem, ainda afeta ao dolo, pode-se dizer que, embora o delito de disparo de arma de fogo não exija um elemento subjetivo especial, um fim específico, o fato de disparar a arma de fogo como o fim de repelir aproximação indevida do posto afastaria o dolo do crime. Neste caso, o afastamento do dolo no Direito Penal comum implicaria em atipicidade (subjetiva) do fato, enquanto no Código Penal Militar, exclusão da culpabilidade, e do próprio crime.

Uma outra possibilidade concreta é a incidência da obediência hierárquica em alguns casos, com arrimo no art. 38, “b”, do Código Penal Militar, sendo certo que uma ordem para o disparo nas condições pressupostas pelo regulamento (por exemplo, o R-1), embora para alguns possa configurar ordem ilegal, não se configura em ordem manifestamente criminosa, fins de responsabilização nos termos do § 2º do art. 38 do Código Penal Militar.

Enfim, várias soluções poderiam ser idealizadas, mas ainda parece mais segura, imune a críticas, aquela que prestigia a exclusão da ilicitude ou da antijuridicidade.

 

  1. Conclusão:

O militar da ativa, em observância à disciplina, deve cumprir não apenas imposições previstas em lei em sentido estrito, mas também aquelas impostas por regulamentos, instruções, ordens etc.

Entre essas disposições impositivas, causa espécie aquela que, durante o serviço de segurança das instalações das instituições militares, comanda o disparo de arma de fogo para o alto – a exemplo da alínea “e” do § 2º do R-1 do Exército Brasileiro –, o que poderia, em primeira análise, configurar crime do art. 15 da Lei n. 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento.

Tal compreensão, entretanto, mantidas as premissas fáticas de imposição (aproximação indevida do posto, por exemplo), não é a mais correta, pois, em verdade, o militar que assim atua, está adstrito a um dever de ação, que redunda em estrito cumprimento do dever legal.

O estrito cumprimento do dever legal, nestes casos, embora existam outras possibilidades interpretativas, importará na exclusão da ilicitude do fato e, portanto, do próprio crime, de maneira que não será necessário, em princípio, proceder a persecução criminal.

 

REFERÊNCIAS

 

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ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2017.

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