Excesso exculpável e crime militar doloso contra a vida de civil

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31 de maio9 min. de leitura

Nessa nossa jornada de estudo, seja para atividade profissional, para concursos, para a docência ou por puro prazer, estamos, felizmente, em dinâmico crescimento.

Toda vez que releio um dispositivo, discuto um assunto ou respondo uma questão de um aluno, novas ideias, novos enfrentamentos vêm à cabeça, tornando a viagem saborosa.

Isto aconteceu comigo, recentemente, com a interação com o caro aluno do Gran Cursos On Line, Josimar Belarmino da Silva Filho – que autorizou a divulgação de seu nome – quando me fez uma pergunta inusitada.

Disse ele, em aproximadas palavras, que ao assistir a uma de minhas aulas de Direito Penal Militar surgiu a seguinte indagação: No caso de um militar estadual se exceder na legítima defesa, por perturbação de ânimo ou surpresa, conforme art. 45, p.u., CPM, praticando crime de homicídio contra um civil, estando o autor em serviço, como não há dispositivo correlato no CP, como ficaria o julgamento na Justiça Comum, onde seria processado o fato diante do disposto no § 1º do art. 9° do CPM?

A questão, de muita perspicácia, não contém, obviamente, única resposta, mas vamos tentar inaugurar algumas linhas de raciocínio.

Vamos identificar, antes, o problema para que possamos construir o raciocínio.

No recente legislativo do Brasil, conheceu-se a redação trazida pelo Projeto de Lei n. 882/2019, que substituía o parágrafo único do art. 23 do Código Penal comum, acrescentando os seguintes parágrafos:

1º O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.” (NR)

A alternação não passou pela Câmara dos Deputados, vingando a Lei n. 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”), sem estas disposições, remanescendo o antigo e ainda atual parágrafo único com a seguinte redação: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.

Em outros termos, não vingou, no Direito Penal comum, a possibilidade de não aplicação de pena quando o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.

A justificativa dos parlamentares para a não assimilação do “excesso exculpável” no Código Penal comum foi exposta na imprensa, podendo-se, por exemplo, trazer reportagem da Gazeta do Povo, de 7 de dezembro de 2019, com o seguinte teor:

Impactados por caso Ágatha, deputados tiram excludente de ilicitude do pacote anticrime.

O texto de Moro previa que o juiz poderia reduzir a pena de policiais até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorresse de ‘escusável medo, surpresa ou violenta emoção’. O trecho foi retirado do projeto quatro dias depois do assassinato da menina Ágatha Felix, de 8 anos, que morreu depois de levar um tiro nas costas durante ação policial no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Ao justificar o pedido de retirada do excludente do pacote, Freixo argumentou que as expressões ‘surpresa’ e ‘violenta emoção’ são ruins, já que são vagas e cheias de lacunas. O relatório final aprovado pelo grupo, que deve ficar pronto ainda nesta semana, ainda precisa ser aprovado no plenário da Câmara (Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/deputados-tiram-excludente-ilicitude-pacote-anticrime-moro/. Acesso em: 31 mai. 2020.

Note-se, no entanto, que a possibilidade de exculpação desejada na lei penal comum já existe, desde 1969, no Código Penal Militar, especificamente, no já mencionado parágrafo único do art. 45, que consigna que “Não é punível o excesso quando resulta de escusável surpresa ou perturbação de ânimo, em face da situação” (g.n.).

Portanto, nos casos de julgamento em que se aplique o Código Penal Militar, será possível esta exculpante, mas nos casos em que o Código Castrense não é aplicado não há dispositivo legal no Código Penal comum que permita moldura idêntica.

Anote-se, no entanto, que o parágrafo único do art. 45 do CPM está adstrito ao seu caput, que trata do excesso culposo, fugindo à discussão do crime doloso contra a vida de civil. Ainda assim, a pergunta é pertinente pois a classificação como crime doloso ou culposo ocorre em vários momentos, inclusive podendo haver situações em que a discussão se reinstale em plenário, diante, por exemplo, de uma desclassificação justamente em função de o fato não ter sido doloso.

Para inaugurar o raciocínio de resposta à indagação inicial, elejamos a premissa de que o crime de que trata o § 1º do art. 9º do CPM se trata de crime militar, porém processado e julgado perante o Tribunal do Júri. Essa discussão era muito intensa antes da Lei n. 13.491/2017 – que trouxe a redação do § 1º do art. 9º do CPM –, mas, após sua entrada em vigor, deve ser esvaziada diante da previsão do § 2º do mesmo art. art. 9º.

Melhor explicando, os §§ 1º e 2º do art. 9º do CPM referem-se ao crime doloso contra a vida de civis, que esteja enquadrado em uma das hipóteses de caracterização de crime militar, enumeradas nos incisos do próprio art. 9º, especialmente, no caso, no inciso II. Dessa maneira, um crime de homicídio praticado por um militar do Estado em serviço de policiamento, por exemplo, encontrará subsunção na alínea “c” do inciso II do art. 9º do CPM e será crime militar, mas, por imposição do § 1º do mesmo art. 9º do CPM, deverá ser processado e julgado pelo Tribunal do Júri. Ocorre que, se este mesmo crime doloso contra a vida de civil for praticado por um militar federal em garantia da lei e da ordem, também por subsunção à alínea “c” do inciso II do art. 9º do CPM, será um crime militar, contudo, processado e julgado pela Justiça Militar da União, por imposição da alínea “b” do inciso III do § 2º mais uma vez do art. 9º.

Confrontando as duas situações, tem-se que a regra referente ao militar do Estado encontra validade no § 4º do art. 125 da Constituição Federal, que excepciona da competência das Justiças Militares dos Estados o crime de competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil. A regra para o militar federal, igualmente, encontra respaldo no art. 124 da Constituição Federal, que não excepciona da competência da Justiça Militar da União crimes de competência do Tribunal do Júri.

Pois bem, como os parágrafos tratam da mesma espécie de crime – crime doloso contra a vida de civil –, deve-se compreender, nos exemplos, que o crime doloso contra a vida de civil praticado pelo policial militar na preservação da ordem pública consiste em crime militar processado e julgado perante o Tribunal do Júri, enquanto o crime doloso contra a vida de civil praticado pelo militar federal em garantia da lei e da ordem caracteriza-se como crime militar julgado pela Justiça Militar da União, tudo com respaldo constitucional.

Não se pode dizer que o disposto no § 1º se refere a crime comum e que o disposto no § 2º é crime militar, pois a categorização do delito nos dois dispositivos é única, qual seja, o crime doloso contra a vida de civil de que trata o Código Penal Militar (note-se a expressão “Nos crimes de que trata este artigo”, constante no início tanto do § 1º como do § 2º do art. 9º do CPM).

Surge, entretanto, um problema referente aos militares federais que não estejam nas situações enumeradas no § 2º do art. 9º do CPM, que, no cometimento de crime doloso contra a vida de civil não serão processados e julgados na Justiça Militar da União. Com efeito, apenas irão para a Justiça Castrense Federal os casos do rol taxativo do § 2º, verbis:

2oOs crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:

a) Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica;

b) Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999;

c) Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e

d) Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.

Mas não estando nessas situações, como ficaria a questão do militar federal no crime doloso contra a vida de civil? Exemplificativamente, o militar federal que mata dolosamente um civil no interior do quartel estará em prática de crime militar, nos termos da alínea “b” do inciso II do art. 9º, mas não estará em uma das hipóteses enumeradas no § 2º do mesmo artigo.

A solução é remeter a situação ao § 1º do art. 9º do CPM, ou seja, será processado e julgado perante o Tribunal do Júri. É de se notar que o § 2º utiliza a expressão “cometidos por militares das Forças Armadas”, excluindo os militares do Estado para sua aplicação, mas o § 1º utiliza da expressão “cometidos por militares”, sem excluir os militares federais, levando á conclusão de que sua abstrata previsão pode ser aplicada tanto em casos de militares dos Estados, como de militares federais não incluídos nas hipóteses do § 2º.

O problema aqui é que, eleita a premissa de que o crime tratado nos §§ 1º e 2º é um crime militar, submeter o militar federal ao julgamento do Tribunal do Júri no crime doloso contra a vida de civil é ferir a previsão do art. 124 da Constituição Federal, pois todo crime militar em âmbito federal deve ser julgado pela Justiça Militar da União. Retoma-se, neste ponto, a discussão que já existia sobre o antigo parágrafo único do art. 9º do CPM, trazido pela Lei n. 9.299/96, parágrafo este que deu lugar aos mencionados §§ 1º e 2º em enfoque.

Para solucionar este problema há dois caminhos.

Primeiro, entender que o § 1º do art. 9º do CPM é inconstitucional à luz do art. 124 da Constituição Federal e submeter o caso à competência da Justiça Militar. Essa visão, anote-se é perfeitamente possível e já foi adotada pelo Superior Tribunal Militar em um caso de homicídio contra um civil, em tese praticado por um militar do Corpo de Fuzileiros Navais, durante uma ação militar realizada em abril de 2014, após um confronto entre criminosos e uma patrulha do Grupamento de Fuzileiros Navais – pertencente à Força de Pacificação São Francisco –, no Complexo da Maré (RSE n. 144-54.2014.7.01.0101/RJ, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 9/06/2016). Claro, hoje o caso seria tranquilamente de competência da Justiça Militar da União, pois encontraria amparo em uma das situações do § 2º do art. 9º do CPM, mas, na época, não existia esse dispositivo e o cotejo constitucional se dava com a redação do antigo parágrafo único do art. 9º do CPM, em frontal descompasso com o art. 124 da CF. Na ementa, destaca-se que a “competência do Júri quando a vítima for civil faz referência às Justiças Militares dos estados, e não à Justiça Militar da União”.

O segundo caminho seria a implantação do Tribunal do Júri – que se trata de órgão de julgamento e não de uma “Justiça” – na Justiça Militar da União. Esta saída seria constitucional, pois não afrontaria o art. 124 da CF e estaria em alinho com a dinâmica dos §§ 1º e 2º do art. 9º do CPM. Há, entretanto, uma questão infraconstitucional interessante que se resume na ausência de previsão do Tribunal do Júri como órgão da Justiça Militar da União na Lei n. 8.457/1992 (Lei de Organização da Justiça Militar da União – LOJMU), o que poderia ser contemplado pela Lei n. 13.774/2018, que inovou a LOJMU com o novo órgão de julgamento monocrático do juiz federal da Justiça Militar e poderia tê-lo feito com o Tribunal do Júri, mas, mesmo sendo posterior à Lei n. 13.491/17 e, portanto, conhecendo o problema, não o fez.

Estabelecidas premissas importantes, retomemos a questão do caro aluno.

Qual solução seria possível em caso de crime militar doloso contra a vida de civil, praticado por militar do Estado, em que se verificasse o excesso exculpável?

Bom, claro, várias soluções podem ser idealizadas, e não se pretende aqui encerrar o assunto – em Direito isso é um verdadeiro mito –, mas apenas indicar possibilidade, escolhendo as que parecem mais sensatas.

A primeira solução é a mais ortodoxa, mantendo os sistemas isolados, com a remessa da investigação ao Tribunal do Júri, onde seria aplicado o Código Penal comum, sem a possibilidade da aplicação da eximente expressa no CPM. Não se pode descartar, entretanto, que, mesmo com a aplicação do Código Penal comum, seria possível, em casos extremos, reconhecer a inexigibilidade de conduta diversa – elemento da culpabilidade pela teoria normativa pura – como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Esta solução, entretanto, esbarraria na questão da competência, pois, uma vez reconhecida a hipótese da excludente, partindo-se da premissa de que o excesso não foi doloso para sua aplicação, a competência seria da Justiça Militar, do escabinato.

Outra possibilidade seria impor aos §§ 1º e 2º do art. 9º do CPM uma compreensão técnico-jurídica do termo “crime”, compreendendo-o como fato típico, ilícito e culpável, encerrando-se a questão na Justiça Militar Estadual. Por esse viés, apenas seriam remetidos ao Tribunal do Júri – art. 82, § 2º, do CPPM – os casos em que se constatasse, ainda que precariamente, ter havido um crime nesta acepção, portanto, havendo uma causa exculpante expressa no p. u. do art. 45 do CPM, a afastar a culpabilidade, não se trataria de crime e, portanto, o membro do Parquet poderia promover o arquivamento na Justiça Militar, ou mesmo arquivar no âmbito do Ministério Público se a nova redação do art. 28 do Código de Processo Penal comum vingar – atualmente o dispositivo está suspenso, sine die, por decisão do Ministro Luiz Fux, em medida cautelar na ADI n. 6.298 – e admitirmos sua aplicação no processo penal militar. Ademais, reconhecida a hipótese do p.u. do art. 45, estaria afastado excesso doloso, portanto, não se trataria de responsabilização por fato típico doloso contra a vida de civil.

Terceira solução seria a aplicação do CPM no Tribunal do Júri, possibilitando a aplicação da exculpante expressa. Ora, se se está diante de um crime militar julgado pelo Tribunal do Júri, logicamente, a denúncia deveria se dar como crime militar, por exemplo, com arrimo no art. 205 do CPM e não no121 do CP, salvo se hipótese de crime militar extravagante. Com a fixação do sistema normativo do CPM, todas as previsões da Parte Geral do Código Castrense seriam trazidas a reboque, o que implicaria na aplicação do p. u. do art. 45. Claro, surgiriam alguns pontos a serem debatidos, por exemplo, seria, ao nosso sentir, impossível a interrupção da prescrição pela pronúncia (art. 117, II, CP), já que ausente no CPM e diante da vedação à analogia in malam partem. Mais uma vez, a questão nesta solução seria a competência, pois, repita-se, a competência seria do escabinato.

Uma outra solução possível seria, no Tribunal do Júri, mesmo com a aplicação do Código Penal comum, trazer a exculpante do CPM por analogia in bonam partem. Tratando-se de um fato originariamente compreendido como crime militar, faria todo sentido aplicar o CPM por analogia, embora a operação mais comum seja o contrário, aplicar o CP no Direito Militar por analogia in bonam partem, como nos casos de perdão judicial previstos no CP e ausentes no CPM. Novamente, a questão encontraria obstáculo na competência da Justiça Militar Estadual para julgar crime culposo, pelo escabinato.

Das soluções apresentadas, assim, parece mais adequada a segunda, em função de o p. u. do art. 45 se aplicar apenas na hipótese do caput, ou seja, no excesso culposo, afastando a hipótese de responsabilização dolosa por crime contra a vida de civil, trazida pela moldura dos §§ 1º e 2º do art. 9º do CPM, assim como por não ser hipótese de crime.

O objetivo aqui, claro, não é assentar posição, e sim fomentar a discussão podendo surgir outras linhas de raciocínio.

Obrigado, Josimar, pela oportunidade de reflexão e vamos aos debates!

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